Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Anseio
 


Que sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
— Trinta triliões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.

 

Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumitúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!


Alta noite, esse mundo incoerente
Essa elementaríssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...


Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
Não poder dar-lhe vida material!



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Anseio

 

Nessas paragens desoladas, onde
O silêncio campeia soberano
Morreram notas do bulício humano,
Nem vibra a corda que a saudade esconde.
 

Anseios d’alma aqui se perdem. Donde
Fluiu outrora a luz dum doce engano,
Hoje é trevas, é dor, é desengano,
E eu ergo preces que ninguém responde.

Triste criança virginal, quem dera
Voar est’alma a ti, longe dos laços
Dessa jaula de carne que a encarcera!

Ah! Que unidos assim, lá nos espaços,
Cantarias do amor a primavera,
Tendo a minh’alma presa nos teus braços!

Pau d’Arco - 1902

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Ao luar

 

Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tactil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

 

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!


Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...


Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Aos meus filhos

 

Na intermitência da vital canseira,
Sois vós que sustentais ( Força Alta exige-o ... )
Com o vosso catalítico prestígio,
Meu fantasma de carne passageira!

 

Vulcão da bioquímica fogueira
Destruiu-me todo o orgânico fastígio ...
Dai-me asas, pois, para o último remígio,
Dai-me alma, pois, para a hora derradeira!


Culminâncias humanas ainda obscuras,
Expressões do universo radioativo,
Ions emanados do meu próprio ideal,


Benditos vós, que, em épocas futuras,
Haveis de ser no mundo subjetivo,
Minha continuidade emocional!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Apocalipse

 

Minha divinatória Arte ultrapassa
os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.

 

É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!


São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adeante,


Espião da cataclísmica surpresa
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Apostrofe à carne

 

Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
— Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...
 


E o Homem — negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
 


Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,
 


Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Ariana


Ela é o tipo perfeito da ariana,
Branca, nevada, púbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essência que de si dimana.


As níveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.


Dorme talvez. Em flácido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana,


Enquanto o amante pálido, a seu lado
Medita, a fronte triste, o olhar velado
No Mistério da Carne Soberana


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

As cismas do destino


I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!


Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.


Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!


A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!


Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!


Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.


E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.


Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.


Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!


Mostravam-rne o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade egualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!


A corrente atmosférica mais forte Zunia.

E, na ígnea crostra do Cruzeiro,
julgava eu ver o fúnebre candieiro
Que há de me alumiar na hora da morte.


Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.


A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.


Ali! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!


Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignís sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.


É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!


Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma creança
E um pedaço de víscera escarlate.


Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.


Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!


E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.


Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma taça
Que, violou as leis da Natureza!


Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!


E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptisis!


Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de tinia artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.


Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!


Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!


Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!


Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!



II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!


Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!


Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.


Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.


Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.


Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampeão, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!


Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
A anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!


Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!


Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!


Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

 

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

 

Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contracção dos gritos instintivos!


Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes
Como bolhas febris de água, fervendo!

 

Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Creariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!


Almas pigméas! Deus subjuga-as, cinge-as
A imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéas carolíngias!


Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos polipos.


Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.

 

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

 

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!


E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!

Mas, reflectindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amneota subterrâneo,
jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!


A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!


Nas agonias do delíríum-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!


Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.


Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.


Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espectáculo
De uma progênie idiota de palermas.


Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!


Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!


Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!


Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!


Deante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!


E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!


Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstracta do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!


Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:


 

III

"Homem! por mais que a Idéa desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!


Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada ôca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.


Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!


Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!


A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!


Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tactos
Veio e vai desde os tempos mais transactos
Para outros tempos que hão de vir ainda!


Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéa
Dás ao sôfrego estudo da ninféa
E de outras plantas dicotiledôneas!


A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;


As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem,


O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha.
Na sangueira concreta dos massacres;


Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;


O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;


As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;


O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;


A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;


As projecções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;


O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;


Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;


O instinto de procrear, a ânsia legitima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;


As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;


E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
A morte desgraçada dos açougues...


Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!


Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!


Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;


Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!


O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
 

 

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!


O Espaço — esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!


As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.


Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!


A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!


Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!


Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!


Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!


Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!


 

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!


Maldizia, com apóstrofes veementes,
No stentor de mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!


Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.


Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa,
Vinha me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.


O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!


O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

 

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Tôdas as impressões do mundo externo!


Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

As montanhas


I

Das nebulosas em que te emaranhas
Levanta-te, alma, e dize-me, afinal,
Qual é, na natureza espiritual,
A significação dessas montanhas!


Quem não vê nas graníticas entranhas
A subjetividade ascensional
Paralisada e estrangulada, mal
Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!


Ah! Nesse anelo trágico de altura
Não serão as montanhas, porventura,
Estacionadas, íngremes, assim,


Por um abortamento de mecânica,
A representação ainda inorgânica
De tudo aquilo que parou em mim?!


 

II

Agora, oh! deslumbrada alma perscruta
O puerpério geológico interior,
De onde rebenta, em contrações de dor,
Toda a sublevação da crusta hirsuta!


No curso inquieto da terráquea luta
Quantos desejos férvidos de amor
Não dormem, recalcados, sob o horror
Dessas agregações de pedra bruta?!


Como nesses relevos orográfícos,
Inacessíveis aos humanos tráficos
Onde sóis, em semente, amam jazer,


Quem sabe, alma, se o que ainda não existe
Não vive em gérmen no agregado triste
Da síntese sombria do meu Ser?!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

 

Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Asa de Corvo


Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...


Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!


É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

 

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!