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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Ave dolorosa


Ave perdida para sempre - crença
Perdida - segue a trilha que te traça
O Destino, ave negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!


Dos sonhos meus na Catedral imensa
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça
Onde o teu vulto lúrido esvoaça,
Seja-te a vida uma agonia intensa!


Vives de crenças mortas e te nutres,
Empenhada na sanha dos abutres,
Num desespero rábido, assassino...


E hás de tombar um dia em mágoas lentas,
Negrejadas das asas lutulentas
Que te emprestar o corvo do Destino!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Ave libertas


Ao clarão irial da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.


É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro
Da República a nova sublimada.


E ali, do despotismo entre os escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;


Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A Liberdade assoma majestosa,
- Estrela d’Alva imaculada e pura!


É livre a Pátria outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.


Não! Que esse ideal puro, risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!


Esplende, pois, oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.


Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,
Caia do Santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A Bênção do valor dos vossos filhos!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Barcarola


Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
-Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.


Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.


Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.


Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.


Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...


Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.


Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.


Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofír
Imita a curva de um arco.


A Lua — globo de louça —
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!


Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.


Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.


É como um réquiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.


Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!


Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!


Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte!


— E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!


Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!


Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Budismo moderno

 

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!


Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!


Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;


Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Soneto

 

Ao meu prezado irmão
Alexandre Júnior
pelas nove primaveras
que hoje completou.

 


Canta no espaço a passarada e canta
Dentro do peito o coração contente.
Tu’alma ri-se descuidosamente,
Minh’alma alegre no teu rir s’encanta.

 

Irmão querido, bom Papá, consente
Que neste dia de ventura tanta
Vá, num abraço de ternura santa,
Mostrar-te o afeto que meu peito sente.

 

Somente assim festejarei teus anos;
Enquanto outros que podem, dão-te enganos,
Jóias, bonecos de formoso busto,

 

Eu só encontro no primor de rima
A justa oferta, a jóia que te exprima
O amor fraterno do teu mano

 

Augusto.

Em 28 de abril de 1901

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Canto de onipotência

 

Cloto, Átropos, Tifon, Laquesis, Siva...
E acima deles, como um astro, a arder,
Na hiperculminação definitiva
O meu supremo e extraordinário Ser!


Em minha sobre-humana retentiva
Brilhavam, como a luz do amanhecer,
A perfeição virtual tornada viva
E o embrião do que podia acontecer!


Por antecipação divinatória,
Eu, projetado muito além da História,
Sentia dos fenômenos o fim.. .


A coisa em si movia-se aos meus brados
E os acontecimentos subjugados
Olhavam como escravos para mim!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Caput Immortale

 

Na dinâmica aziaga das descidas,
Aglomeradamente e em turbilhão
Solucem dentro do Universo ancião,
Todas as urbes siderais vencidas!


Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas,
Sobre a pancosmológica exaustão
Reste apenas o acervo árido e vão
Das muscularidades consumidas!


Ainda assim, a animar o cosmos ermo,
Morto o comércio físico nefando,
Oh! Nauta aflito do Subliminal,


Como a última expressão da Dor sem termo,
Tua cabeça há de ficar vibrando
Na negatividade universal!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Ceticismo

 

Desci um dia ao tenebroso abismo,
Onde a dúvida ergueu altar profano;
Cansado de lutar no mundo insano,
Fraco que sou, volvi ao ceticismo.
 


Da Igreja - a Grande Mãe - o exorcismo
Terrível me feriu, e então sereno,
De joelhos aos pés do Nazareno
Baixo rezei, em fundo misticismo:
 


- Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.
 


Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,
Não sei se viva p’ra morrer na terra,
Não sei se morra p’ra viver no Céu!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Contrastes

 

A antítese do novo e do obsoleto,

O Amor e a Paz, o ódio e a Carnificina,

O que o homem ama e o que o homem abomina,

Tudo convém para o homem ser completo!

 

 

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,

Uma feição humana e outra divina

São como a eximenina e a endimenina

Que servem ambas para o mesmo feto!

 

 

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!

Por justaposição destes contrastes,

junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

 

 

As alegrias juntam-se as tristezas,

E o carpinteiro que fabrica as mesas

Faz também os caixões do cemitério!...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Debaixo do tamarindo
 


No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
 


Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!
 


Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,
 


Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!