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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Decadência

 

Iguais às linhas perpendiculares

Caíram, como cruéis e hórridas hastas,

Nas suas 33 vértebras gastas

Quase todas as pedras tumulares!

 

 

A frialdade dos círculos polares,

Em sucessivas atuações nefastas,

Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,

Estragara-lhe os centros medulares!

 

 

Como quem quebra o objeto mais querido

E começa a apanhar piedosamente

Todas as microscópicas partículas,

 

 

Ele hoje vê que, após tudo perdido,

Só lhe restam agora o último dente

E a armação funerária das clavículas!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Depois da orgia

 

O prazer que na orgia a hetaíra goza

Produz no meu sensorium de bacante

O efeito de uma túnica brilhante

Cobrindo ampla apostema escrofulosa!

 

 

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,

O sistema nervoso de um gigante

Para sofrer na minha carne estuante

A dor da força cósmica furiosa.

 

 

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia

Que ao comércio dos homens me traz presa,

Livre deste cadeado de peçonha,

 

 

Semelhante a um cachorro de atalaia

Às decomposições da Natureza,

Ficar latindo minha dor medonha!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Duas estrofes

 

A queda do teu lírico arrabil

De um sentimento português ignoto

Lembra Lisboa, bela como um brinco,

Que um dia no ano trágico de mil

E setecentos e cincoenta e cinco,

Foi abalada por um terremoto!

 

 

A água quieta do Tejo te abençoa.

Tu representas toda essa Lisboa

De glórias quase sobrenaturais,

Apenas com uma diferença triste,

Com a diferença que Lisboa existe

E tu, amigo, não existes mais!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Ecos d’Alma

 

Oh! madrugada de ilusões, santíssima,

Sombra perdida lá do meu Passado,

Vinde entornar a clâmide puríssima

Da luz que fulge no ideal sagrado!

 

 

Longe das tristes noutes tumulares

Quem me dera viver entre quimeras,

Por entre o resplandor das Primaveeras

Oh! madrugada azul dos meus sonhares;

 

 

Mas quando vibrar a última balada

Da tarde e se calar a passarada

Na bruma sepulcral que o céu embaça,

 

 

Quem me dera morrer então risonho,

Fitando a nebulosa do meu Sonho

E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Soneto


Ao meu prezado irmão Alexandre Júnior, pelo término dos seus estudos neste ano, em troféu de homenagem ao grande aproveitamento que deles soube tirar; a aplicação será sempre a "alma mater" da inteligência humana, e o caminho mais perfeito que nos pode levar à tortuosa via da Ciência.

 

Ergue, criança, a fronte condorina
Que é tua fronte, oh!, genial criança,
É como a estrela-d’alva da esperança,
Do talento sagrado que a ilumina!

 

Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina
Do Sol da Ciência, o rútilo tesouro
Do Estudo - o Grande Mestre - que te ensina,
Chova sobre ela suas gemas d’ouro!

 

E hoje que colhes um laurel bendito,
Aceita a saudação que num contrito
Fervor, eleva, qual penhor sincero

 

Um peito amigo a outro peito amigo,
A um gênio que desponta e que eu bendigo,
A um coração de irmão que tanto quero!

 

Engenho Pau d’Arco - 14 de dezembro de 1901.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Eterna mágoa

 

O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!

 

 

Não crê em nada, pois, nada há que traga

Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.

Quer resistir, e quanto mais resiste

Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

 

 

Sabe que sofre, mas o que não sabe

E que essa mágoa infinda assim não cabe

Na sua vida, é que essa mágoa infinda

 

 

Transpõe a vida do seu corpo inerme;

E quando esse homem se transforma em verme

É essa mágoa que o acompanha ainda!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Soneto


Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me,
Leva-me o esp’rito dessa luz que mata,
E a alma me ofusca e o peito me maltrata,
E o viver calmo e sossegado tolhe-me!

 

Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me
N’asa da Morte redentora, e à ingrata
Luz deste mundo em breve me arrebata
E num pallium de tênebras recolhe-me!

 

Aqui há muita luz e muita aurora,
Há perfumes d’amor - venenos d’alma -
E eu busco a plaga onde o repouso mora,

 

E as trevas moram, e, onde d’água raso
O olhar não trago, nem me turba a calma
A aurora deste amor que é o meu ocaso!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Gemidos de arte

 

I

 

 

Esta desilusão que me acabrunha

É mais traidora do que o foi Pilatos!...

Por causa disto, eu vivo pelos matos,

Magro, roendo a substância córnea da unha.

 

 

Tenho estremecimentos indecisos

E sinto, haurindo o tépido ar sereno,

O mesmo assombro que sentiu Parfeno

Quando arrancou os olhos de Dionisos!

 

 

Em giro e em redemoinho em mim caminham

Ríspidas mágoas estranguladores,

Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras

Brônzeas, também giram e redemoinham.

 

 

Os pães — filhos legítimos dos trigos —

Nutrem a geração do ódio e da Guerra...

Os cachorros anônimos da terra

São talvez os meus únicos amigos!

 

 

Ah! Por que desgraçada contingência

A híspida aresta sáxea áspera e abrupta

Da rocha brava, numa ininterrupta

Adesão, não prendi minha existência?!

 

 

Por que Jeová, maior do que Laplace,

Não fez cair o túmulo de Plínio

Por sobre todo o meu raciocínio

Para que eu nunca mais raciocinasse?!

 

 

Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles

Carinhos, com que guarda meus sapatos,

Por que me deu consciência dos meus atos

Para eu me arrepender de todos ele?!

 

 

Quisera, antes, mordendo glabros talos,

Nabucodonosor ser no Pau d'Arco,

Beber a acre e estagnada água do charco,

Dormir na manjedoura com os cavalos!

 

 

Mas a carne é que é humana!  A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

Beija a peçonha, e não se contamina!

 

 

Ser homem! escapar de ser aborto!

Sair de um ventre inchado que se anoja,

Comprar vestidos pretos numa loja

E andar de luto pelo pai que é morto!

 

 

E por trezentos e sessenta dias

Trabalhar e comer!  Martírios juntos!

Alimentar-se dos irmãos defuntos,

Chupar os ossos das alisarias

 

 

Barulho de mandíbulas e abdomens!

E vem-me com um desprezo por tudo isto

Uma vontade absurda de ser Cristo

Para sacrificar-me pelos homens!

 

 

Soberano desejo!  Soberana

Ambição de construir para o homem uma

Região, onde não cuspa língua alguma

O óleo rançoso da saliva humana!

 

 

Uma região sem nódoas e sem lixos,

Subtraída à hediondez de ínfimo casco,

Onde a forca feroz coma o carrasco

E o olho do estuprador se encha de bichos!

 

 

Outras constelações e outros espaços

Em que, no agudo grau da última crise,

O braço do ladrão se paralise

E a mão da meretriz caia aos pedaços!

 

 

II

 

 

O sol agora é de um fulgor compacto,

E eu vou andando, cheio de chamusco,

Com a flexibilidade de um molusco,

Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!

 

 

Reunam-se em rebelião ardente e acesa

Todas as minhas forças emotivas

E armem ciladas como cobras vivas

Para despedaçar minha tristeza!

 

 

O sol de cima espiando a flora moça

Arda, fustigue, queime, corte, morda!...

Deleito a vista na verdura gorda

Que nas hastes delgadas se balouça!

 

 

Avisto o vulto das sombrias granjas

Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,

Das laranjeiras eu admiro os cachos

E a ampla circunferência das laranjas.

 

 

Ladra furiosa a tribo dos podengos.

Olhando para as pútridas charnecas

Grita o exército avulso das marrecas

Na úmida copa dos bambus verdoengos.

 

 

Um pássaro alvo artífice da teia

De um ninho, salta, no árdego trabalho,

De árvore em árvore e de galho em galho,

Com a rapidez duma semicolcheia.

 

 

Em grandes semicírculos aduncos,

Entrançados, pelo ar, largando pêlos,

Voam à semelhança de cabelos

Os chicotes finíssimos dos juncos.

 

 

Os ventos vagabundos batem, bolem

Nas árvores.  O ar cheira.  A terra cheira...

E a alma dos vegetais rebenta inteira

De todos os corpúsculos do pólen.

 

 

A câmara nupcial de cada ovário

Se abre.  No chão coleia a lagartixa.

Por toda a parte a seiva bruta esguicha

Num extravasamento involuntário.

 

 

Eu, depois de morrer, depois de tanta

Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,

Possuir aí o nome dum arbusto

Qualquer ou de qualquer obscura planta!

 

 

III

 

 

Pelo acidentadíssimo caminho

Faísca o sol.  Nédios, batendo a cauda,

Urram os bois.  O céu lembra uma lauda

Do mais incorruptível pergaminho.

 

 

Uma atmosfera má de incômoda hulha

Abafa o ambiente.  O aziago ar morto a morte

Fede.  O ardente calor da areia forte

Racha-me os pés como se fosse agulha.

 

 

Não sei que subterrânea e atra voz rouca.

Por saibros e por cem côncavos vales,

Como pela avenida das Mappales,

Me arrasta à casa do finado Tôca!

 

 

Todas as tardes a esta casa venho.

Aqui, outrora, sem conchego nobre,

Viveu, sentiu e amou este homem pobre

Que carregava canas para o engenho!

 

 

Nos outros tempos e nas outras eras,

Quantas flores!  Agora, em vez de flores,

Os musgos, como exóticos pintores,

Pintam caretas verdes nas taperas.

 

 

Na bruta dispersão de vítreos cacos,

À dura luz do sol resplandecente,

Trôpega e antiga, uma parede doente

Mostra a cara medonha dos buracos.

 

 

O cupim negro. broca o âmago fino

Do teto.  E traça trombas de elefantes

Com as circunvoluções extravagantes

Do seu complicadíssimo intestino.

 

 

O lodo, obscuro trepa-se nas portas.

Amontoadas em grossos feixes rijos,

As lagartixas dos esconderijos

Estão olhando aquelas coisas mortas!

 

 

Fico a pensar no Espírito disperso

Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,

Como um anel enorme de aliança,

Une todas as coisas do Universo!

 

 

E assim pensando, com a cabeça em brasas

Ante a fatalidade que me oprime,

julgo ver este Espírito sublime,

Chamando-me do sol com as suas asas!

 

 

Gosto do sol ignívomo e iracundo

Como o reptil gosta quando se molha

E na atra escuridão dos ares, olha

Melancolicamente para o mundo!

 

 

Essa alegria imaterializada.

Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,

É o pedaço já podre de pão duro

Que o miserável recebeu na estrada!

 

 

Não são os cinco mil milhões de francos

Que a Alemanha pediu a Jules Favre... 

É o dinheiro coberto de azinhavre

Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

 

 

Seja este sol meu último consolo;

E o espírito infeliz que em mim se encarna

Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,

Só, com a misericórdia de um tijolo! ...

 

 

Tudo enfim a mesma órbita percorre

E as bocas vão beber o mesmo leite...

A lamparina quando falta o azeite

Morre, da mesma forma que o homem morre.

 

 

Súbito, arrebentando a horrenda calma,

Grito, e se grito é para que meu grito

Seja a revelação deste Infinito

Que eu trago encarcerado na minh'alma!

 

 

Sol brasileiro! Queima-me os destroços! 

Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,

De pé, à luz da consciência infame,

À carbonização dos próprios ossos!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Guerra

 

Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte...

E a dramatização sangrenta e dura

Vir Deus num simples grão de argila errante,

Da avidez com que o Espírito procura

 

 

É a Subconsciência que se transfigura

Em volição conflagradora... E a coorte

Das raças todas, que se entrega à morte

Para a felicidade da Criatura!

 

É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo

De subir, na ordem cósmica, descendo

A irracionalidade primitiva...

 

 

É a Natureza que, no seu arcano,

Precisa de encharcar-se em sangue humano

Para mostrar aos homens que está viva!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Hino à dor

 

Dor, saúde dos seres que se fanam,

Riqueza da alma, psíquico tesouro,

Alegria das glândulas do choro

De onde todas as lágrimas emanam..

 

 

És suprema!  Os meus átomos se ufanam

De pertencer-te, oh!  Dor, ancoradouro

Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro

De que as próprias desgraças se engalanam!

 

 

Sou teu amante!  Ardo em teu corpo abstrato.

Com os corpúsculos mágicos do tacto

Prendo a orquestra de chamas que executas...

 

 

E, assim, sem convulsão que me alvorece,

Minha maior ventura é estar de posse

De tuas claridades absolutas!