Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Blanchard Girão

[1929-2007]

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quatro amigos de Blachard Girão:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk

 

Xenia Antunes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cussy de Almeida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antônio Houaiss

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ricardo Santhiago

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Lívio Dantas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pedro Nunes Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Edmilson Caminha

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

29.3.2007

 

Edmilson Caminha

Com a morte de Blanchard Girão, desaparecem não apenas o jornalista brilhante, o político sério, o escritor de talento, mas também o ser humano que, pela nobreza espiritual e pela generosidade dos sentimentos, fazia o mundo melhor e a vida mais bela. Em um meio onde freqüentemente prevalecem o interesse e o arrivismo, deu-nos a todos uma admirável lição de inteireza moral, de rigor profissional, de conduta ética, com que se fez digno da admiração dos companheiros e do respeito da sociedade.

Homem de imprensa, honrou o jornalismo brasileiro, pela coragem pessoal e pela bravura cívica que o levaram a defender a liberdade e a justiça a que todos os povos têm direito. Quando muitos se curvavam à prepotência dos tiranos, Blanchard foi a voz dos que não podiam falar, ao dizer das arbitrariedades e das infâmias que se sucediam nos bastidores do governo. Deputado estadual, pagou com a cassação e a cadeia o atrevimento de provar que política não é, obrigatoriamente, uma arte menor para homens pequenos, mas pode - e deve ser - um trabalho edificante para cidadãos decentes. Escritor, inclui-se na mais notável galeria da literatura cearense, com obras como O Céu é muito alto, O Liceu e o bonde, Sessão das quatro e Passageiros do ontem e do sempre, volumes que se põem na tênue fronteira entre a reportagem e a crônica, o memorialismo e a história.

Mais do que uma simples lembrança, Blanchard Girão nos deixou um legado e um exemplo. Legado de sabedoria, de lucidez e de retidão intelectual; exemplo de cordialidade humana, de solidariedade fraterna e de amor ao próximo. Morto, continuará, por isso, a viver na saudade dos amigos e na memória do seu povo.
 

 

Lustosa da Costa

Lustosa da Costa

 

Uma das boas emoções do inicio de minha atividade jornalística ocorreu quando fui ao gabinete de Eduardo Campos, na sede dos Diários Associados, à rua senador Pompeu, onde funcionavam "Unitário" e "Correio do Ceará" para lhe agradecer haver publicado tópico que redigira, defendendo a imediata implantação do curso jurídico noturno de nossa Faculdade de Direito. Ele me pegou de supetão: "Quer trabalhar comigo, escrevendo a "Crônica do Ceará"?"

Era demais para meu pobre coração. A crônica era o editorial da Ceará Rádio Clube, disparado a primeira emissora cearense. Interpretada por João Ramos.  tinha o rimbombar de um canhão. Eu ,menino amarelo, recém aprovado no vestibular de Dreito, ia substituir um profissional com o nome, a tradição, a respeitabilidade de Blanchard Girão que aceitara convite de Moises Pimentel para ingressar nos quadros da Rádio Dragão do Mar.

O tempo rolou. Veio a ditadura.Os militares tiraram de Blanchard,o mandato de deputado estadual, a profissão e até o pai que, respeitado juiz de direito, morreu de desgosto de ver o filho preso. Blanchard ganhava o pão, escrevendo,inclusive, o texto de matéria paga de Eme Socorro que fazia reportagens no norte do pais. Eu habitava a casa de Blanchard na avenida Antonio Sales. Falei com Manoelito Eduardo que,apesar de seu antípoda ideológico, concordou em que viesse escrever, no Correio,  crônicas diante do falecimento do mestre Caio Cid.

Escrevendo,posteriormente, sobre o fato, Blanchard Girão elogiou-me por pagar regularmanente o aluguel de seu único imóvel. Pintou-me como herói que, desafiando as forças armadas, lhe dera vez e voz num jornal assumidamente conservador. Não teve heroísmo nenhum. Pagar o aluguel constituía obrigação elementar. Trazer o Blanchard para o Correio do Ceará não era favor, era esperteza. Quem ganhava com isso era o jornal.

Anos depois,olhando pra trás, eu,com minha falta de modos habitual,lhe dizia: "Blanchard, como é que uma besta , como tu, chegou tão alto na vida?"

Queria dizer que ele jamais fizera sacanagem com alguém, nunca atropelara colega, jamais fizeram uma felonia a serviço do êxito.O sucesso que conquistou, muito inferior,a seu talento, se deveu,unicamente,a ele. Sem macula-lo com  oportunismo. Nem com manobras menos licitas. Enfim Blanchard deixou imagem do colega de bom caráter, correção moral e coerência política. Um homem. Um cara que fará falta ao gênero humano.

 

 

Juarez Leitão

Juarez Leitão

 

 

Lançamento do livro

PASSAGEIROS DO ONTEM E DO SEMPRE,

de Blanchard Girão, em 31.7.2001,

saudação do poeta Juarez Leitão

                    

 

Carlos Drumond de Andrade conclui seu poema “Mãos Dadas” com esta fala de eternidade:

NÃO SEREI O CANTOR DE UMA SÓ HISTÓRIA,

NÃO DIREI OS SUSPIROS AO ANOITECER,

A PAISAGEM VISTA DA JANELA,

NÃO DISTRIBUIREI ENTORPECENTES

OU CARTAS DE SUICIDA,

NÃO FUGIREI PARA AS ILHAS

NEM SEREI RAPTADO POR SERAFINS.

O TEMPO É MINHA MATÉRIA,

O TEMPO PRESENTE,

OS HOMENS PRESENTES,

A VIDA PRESENTE.

Esta noite estamos mais uma vez diante de BLANCHARD GIRÃO, um homem que tem o tempo como a matéria-prima de sua escritura. O tempo, que outro poeta, Augusto dos Anjos, chamou de ‘este operário da ruína’, nas mãos de Blanchard ganha fulgor e vida, ilumina-se de paixão, solfeja saudades e ardentes emoções, chora e ri, faz-se manhã e noite, canta pesaroso ou frenético como as coisas vivas movimentando-se nas estações da sorte.

Tornar o tempo um eterno presente, como quer o poema de Drummond, não é tarefa que qualquer um possa executar. A maioria dos homens fica amarga na segunda metade de seu tempo. A idade às vezes engelha a alma e acinzenta o coração.

Por isso é imensamente compensador quando percorremos um livro como o que saudamos nesta noite, um livro de relembranças, e nele encontramos o tempo sem mágoas e sem rancores, cheio da luz intensa do altruísmo, das alegrias da infância, do calor da família, da paz serena e doce que as velhas cantigas murmuravam em franco enternecimento. 

Imagino o escritor Blanchard Girão, como um artesão meticuloso, iniciando em sua oficina de idéias a reconstrução do tempo. As pastas empoeiradas guardam a memória de algumas décadas, desde os anos 40, quando os registros emocionais tornaram-se necessários e intensos, talvez indispensáveis. E dessas pastas, amarelecidas sossegadamente por longos anos de espera, evola um cheiro memorial, um cheiro conhecido das saudades, ruas e becos da meninice, noites adolescentes, as ânsias líricas, as amizades definitivas, sabores e saberes, olhos e bocas cheios de ternura e gosto, gestos maiores ou menores, vida. Das velhas pastas, de dentro delas, salta a vida.

Lento é o processo de emendar o passado, de recompor os pedaços da experiência, enfrentando as ausências e as contrafações. Os retalhos da vida, novamente manuseados, doem tanto quanto aquela fotografia de Itabira na parede do poeta Drummond.

Blanchard é uma inteligência-fonte, um olho d’água histórico-sentimental, desses que começam borbulhando e depois viram rio num caudal formidável.

E vem,  como esse rio, descendo da vertente, ganhando corpo e força à medida que percorre os territórios da paixão. Um rio límpido, de puras e verdadeiras águas, que se somando aos afluentes, se consolida e ganha veemência emocional. Caudaloso, seu destino é o mar. E ele  vem molhando da poesia essencial todos os solos, várzeas, desertos, lavras, calcários e massapês. Descansa no anteparo das barragens, nas depressões do relevo, mas logo que as preenche, prossegue em sua rota telúrica, contornando a montanha ou se precipitando nas cachoeiras compulsivas do entusiasmo.

Como o denominamos no prefácio, Blanchard Girão é “testemunha ocular da História” e este livro, um documento vivo de suas impressões sobre a cidade de Fortaleza, interpretada a partir de seu olhar sobre as pessoas, seus “Passageiros do Ontem e do Sempre”.  Aqui, faz uma leitura do espaço urbano que se transformava em metrópole, colhendo com mão caprichosa os momentos rutilantes do comportamento humano.

O livro é a própria cidade, mapeada pela admiração blanchardiana. Ou, quem sabe, um trem, para melhor se ajustar à metáfora da viagem e de seus passageiros. No primeiro vagão estão as imagens da infância, seguido do das marcas de influência sobre sua formação, em que se sobressai fortemente a personalidade de Américo Barreira. O terceiro vagão está repleto de homenagens a figuras como Antônio Girão Barroso, Perboyre e Silva, Raimundo Girão, Milton Dias, Odalves Lima, Caio Cid, Aymoré de Paula e Evandro Ayres de Moura. Em sua melhor extravasão emocional, instala no que chama de Crônicas Escritas com o Coração, sua colaboração em diversos jornais da época, principalmente no Correio do Ceará, para onde foi levado por Lustosa da Costa, outro exuberante narrador do cotidiano. Segue-se a opinião de vários escritores sobre sua obra, uma pequena amostra de sua fortuna crítica. E no último vagão  sentam-se os  mestres e os cearenses que, pelo mundo afora, se destacaram e elevaram o nome do Ceará.

Blanchard viveu, nos últimos 50 anos, intensamente este País, em momentos terríveis de sua história, como analista, crítico, protagonista e vítima. Conheceu duas ditaduras e, como o Mito de Osires, o deus do Nilo, assistiu aos ciclos da morte e da ressurreição. Esteve, sempre como participante ativo, no centro das contradições, desavisos e aflições da oscilante vida política nacional, reportando e vivendo na própria pele as incertezas e esperanças da sociedade.

Pertenceu àquela geração que, desde sua primeira juventude, aderiu à idéia da militância política: adesão voluntária e generosa, a entrega do que tinha de melhor para dar – as melhores energias intelectuais e físicas – à luta contra a dominação, contra a exploração e contra a alienação.

Jornalista desde os 14 anos, quando foi levado ao GAZETA DE NOTÍCIAS pelo Ari Cunha, escalou todos os degraus da profissão, transformando-se, apesar de sua proverbial modéstia, numa estrela destacada da imprensa do Ceará.

Não havia entre os jovens jornalistas dos anos 40 e 50, egressos quase todos do Liceu do Ceará, a preocupação pelo destino individual. Aqueles jovens afilhados da audácia, dentre eles Odalves Lima, Manoel Lima Soares, Olavo Sampaio, Aloísio Medeiros, Dorian Sampaio e Blanchard, estavam possuídos do grande sonho da liberdade, esta peregrina e espezinhada condição humana, que sempre teve na juventude sua melhor aliada.

Sua experiência jornalística, que lhe aperfeiçoou a vocação do bom texto e lhe deu o magma das palavras, a crônica limpa das antigas gorduras retóricas, mas cheia de poesia e sedução, também lhe consolidou a consciência política e, principalmente, por intermédio do rádio, lhe deu um mandato de deputado estadual. 

Esse mandato lhe foi rudemente arrebatado, já nas primeiras brutalidades do regime militar de 1964. E, como não tivesse um dispositivo legal para lhe enquadrar e lhe tomar a delegação do povo, a genuflexa  e apavorada Assembléia Legislativa alegou que o nosso elegante e gentil Blanchard Girão era um praticante contumaz da falta de decoro parlamentar, talvez um desbocado, um arauto do baixo-calão ou, quem sabe, um menestrel das obscenidades. Nessa mesma lista de acusados de praticar a inconveniência vocabular e moral figuraram outros ilustres deputados que a sociedade conhecia como verdadeiros “varões de Plutarco”. Seus nomes, faço questão de ressaltar nesta apresentação, estão entre os que enchem de dignidade e orgulho a história de nossa terra: Pontes Neto, Aníbal Bonavides, Raimundo Ivan Barroso, Amadeu Arrais, José Fiúza Gomes e Blanchard Girão.

Em dias do mês de Junho, deste ano de 2001,  a Assembléia Legislativa do Ceará, por iniciativa extremamente lúcida de seu presidente Wellington Landin, reparou esta grande injustiça , este inominável disparate histórico. Ali, de cabelos grisalhos, na seara da maturidade, três daqueles deputados (Blanchard, Amadeu e Fiúza) eram acolhidos para receber as desculpas da Casa do Povo pelo equívoco vergonhoso. Pontes Neto, Aníbal e Raimundo Ivan, infelizmente,  só através do remorso das rezas podem ser alcançados para o pedido de desculpas.

Este livro de Blanchard Girão bem poderia ser um relato amargo, um itinerário de morbidez e de dor. Razões não lhe faltavam para as lamentações sombrias, pois o caminho foi áspero e por ele foram ficando pedaços de sua alma, grandes e dolorosas perdas: a prisão descabida que levou sua família a viver vexames financeiros e emocionais, a fatalidade que atingiu seu pai, destruído pela injustiça contra o filho, a cara virada de alguns amigos assustados, a porta fechada dos empregos, a aflição da esposa, a valente Cleide, que virou pai e mãe em sua ausência, o nascimento de Martha Vanessa, enquanto estava preso...e outras tantas vicissitudes e fragilidades que  a  filosofia do tíbios em vão tenta explicar.

Mas Blanchard se acostumou a em tudo enxergar o melhor ângulo, o prisma iluminado, procurando o passado menos no drama que no encantamento. PASSAGEIROS DO ONTEM E DO SEMPRE  enquanto faz a vigilância cognitiva da cidade que se construía e as descobertas das fascinantes dimensões da vida, realiza também um balanço minucioso de  gratidão a todos os que, por falas e atitudes, tocaram o ardente coração de seu autor.

Seu estilo, refinado na costura consciente de intenção e expressão, na construção bem acabada dos períodos, no uso consistente das metáforas, propicia a impressão do casual. Na verdade, é espontâneo e o espontâneo aqui  sempre nos parece feito de convicções permanentes.

Recolhedor de coisas perdidas e esfiapadas, de realidades trincadas, de lacunas indizíveis, dos cacos coloridos e opacos da vida, Blanchard transforma a matéria banal em transcendência, pregando no céu para brilhar eternamente os objetos do cotidiano.

E mesmo nas cores da melancolia, essa coisa que se acende em nós sem nos iluminar, obtém uma alegoria sentimental que traduz e avalia um tempo humano, um substancioso pedaço de vida.

Pedaços de vida, é de que se forma este livro, porque nossa emoção não consegue reproduzir totalidades e, às vezes, se faz necessariamente seletiva sobre o nosso desempenho vital e o daqueles que nos cercam.

As abordagens múltiplas não desmerecem nem comprometem a unidade deste livro. Sobre fatos e vozes Blanchard constrói seu texto, criativo e fértil nas equivalências.

Suas esperanças, seus critérios de verdade, suas expectativas, seu olhar hermenêutico sobre o sublime ou o nefasto partem de fios dispersos para formar a mesma teia, a mesma renda principal, lógica e harmoniosa.

Por ser também uma convocação à ética e à filosofia, esta obra é legítima e essencial.     

Uma viagem fantástica pela memória da cidade, que não podemos recusar.

E para esta noite esplêndida de Branchard Girão concluo com uma balada de seu poeta preferido Francisco Carvalho:

PANTADOR, Ó PLANTADOR,

ESTA TERRA ME PERTENCE.

QUANDO CHOVER SERÁ TUA,

SOLIDÃO, FLOR E SEMENTE.

ESTA TERRA ME FOI DADA

POR TESTAMENTO EM CARTÓRIO

QUANDO EU TINHA 20 ANOS

DE JUVENTUDE FOGOSA.

QUANDO EU TINHA 20 ANOS

TROCAVA ILUSÃO POR NUVEM.

PLANTADOR, Ó PLANTADOR,

NÃO MALDIGAS DA FORTUNA:

QUANDO CHOVER NO TELHADO

TEU CORAÇÃO VIRA ADUBO,

FAZ ANOS QUE O MEU DESTINO

SABE A TERRA QUANDO QUEIMA

DOS MEUS BRAÇOS FIZ COIVARAS

PARA ACENDER AS ESTRELAS

MUITOS ANOS SE PASSARAM

SOBRE AS VERDADES ANTIGAS

ATÉ QUE A TERRA ENCHARCADA

PRODUZISSE MARAVILHAS..

PLANTADOR, Ó PLANTADOR,

ESTA NOITE É MAIS DOS VENTOS

DO QUE MESMO DE NÓS DOIS.

                                             JUAREZ LEITÃO

                                             ( da Academia Cearense de Letras )

 

Paulo Verlaine

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

31.3.2007

Adolescente, com 13, 14 anos de idade, eu ouvia a crônica A Nossa Palavra, na Rádio Dragão do Mar, escrita pelo radialista, jornalista e deputado estadual Blanchard Girão. Logo depois, com o golpe militar de 1964, ele seria cassado e preso durante um ano no Quartel do 23° Batalhão de Caçadores, juntamente com outros intelectuais, políticos e militantes de esquerda.

Blanchard Girão, além de ter sofrido o baque da cassação, demissão do emprego e da prisão, golpes suficientes para desestruturar qualquer personalidade fraca, amargou dramas pessoais. Teve de acompanhar, escoltado por militares, o sepultamento do seu pai, juiz de Direito, que morrera amargurado e deprimido devido à situação em que se encontrava o filho.

Outro drama paralelo: ao ser preso, a esposa de Blanchard Girão, dona Cleide, estava grávida e ela só veio conhecer a filha no quartel do 23° BC. Duras provas para um ser humano que se viu, de uma hora para outra, afastado do convívio da família, do jornalismo e da carreira política em face dos desafios da história.

Até então eu não conhecia o cidadão José Blanchard Girão Ribeiro. Isto só aconteceu na metade década de 70, quando eu era repórter do O POVO e Blanchard ingressava nos quadros deste jornal pela segunda vez. Eu não estava no O POVO durante o seu primeiro período, na década de 50, quando ele trabalhou como repórter e cobriu a Copa do Mundo de 1950.

Confesso que tive uma decepção positiva com Blanchard Girão. Já o conhecia de nome e sabia dos seus sofrimentos e, por isso mesmo, esperava encontrar com uma pessoa amarga, ressentida e taciturna.

Deparei-me um homem de espírito leve, bem-humorado, sorridente, de gestos e palavras amenas, atencioso com todos os companheiros de redação, incentivador de talentos jovens e compreensivo. Mas, ao mesmo tempo, percebia nele o caráter indomável e a firmeza de idéias.

Eu nasci em 1950, ano da desgraça brasileira no Maracanã, onde Blanchard esteve como testemunha da história. Lembro-me de suas palavras descrevendo o dia fatídico: "Depois do jogo Brasil x Uruguai, não se ouvia nenhum barulho, nem uma voz no Maracanã. Só se ouvia os passos das pessoas se retirando do estádio".

No O POVO, Blanchard foi editor de Esportes, editor de Economia e Editor-Chefe. Foi neste último cargo que tive oportunidade de conhecê-lo melhor, pois na época eu era editor de Política e estávamos em contato direto. Tempos da anistia e do fim do ciclo de governos militares. O País vivia momentos de transição. Fracassada a campanha pelas Diretas-Já, veio a polarização entre Tancredo Neves (PMDB, com apoio de um amplo leque político, que ia dos dissidentes do partido governista, peemedebistas históricos aos partidos comunistas) e Paulo Maluf (PDS, representante das forças do obscurantismo). Blanchard orientou a cobertura com equilíbrio e dedicação.

Pouco tempo depois eu e ele, já desligados do O POVO, encontrávamos outra vez do mesmo lado: na campanha do então deputado federal Paes de Andrade à Prefeitura de Fortaleza, em 1985.

Trabalhamos juntos também na antiga Televisão Educativa Canal 5 (hoje TV Ceará), ele na superintendência da emissora e eu na função de redator. Em todas essas posições, Blanchard Girão demonstrava o mesmo equilíbrio, leveza de personalidade, generosidade e altivez.

Depois, nos reencontramos nas reuniões da Sociedade dos Poetas Vivos, da qual Blanchard Girão fazia parte e outra vez no O POVO, desta vez eu como integrante do Núcleo de Conjuntura e ele como colaborador da página de Opinião, na qual escrevia artigos sobre a realidade brasileira, com o mesmo estilo elegante.

No último domingo, ao começar a trabalhar, recebi o impacto da notícia da morte de Blanchard Girão. Na ocasião, emudecido, fiquei a refletir na sua figura e no seu exemplo de cidadão e ser humano deixado para a posteridade. Repito aqui a citação lapidar do editorial do O POVO de segunda-feira, redigido por Frederico Fontenele Farias: "Parafraseando o escritor católico francês Daniel-Rops, no título de um romance: morte, onde está a tua vitória?".
 

   
 
 

 

 

 

 

 

05/07/2006