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Um esboço de Da Vinci

 

 

Castro Alves


Recordações


(RECITATIVO PARA O PIANO)


LEMBRAS-TE ainda dessa noite bela
Em que, donzela, te chegaste a mim?
Lembras-te? Dize... mas não tenhas pejo...
Que vai um beijo p'ra corar assim?...
 

........................................


Que linda noite! da montanha o vento
Tênue lamento suspirava então.
E nos teus lábios, no tremor, no medo
Lia o segredo de febril paixão.


Passava a lua pelo azul do espaço
Do teu regaço a namorar o alvor.
Como era terna no seu brando lume.
...Tive ciúme de ver tanto amor ...


Como dum cisne alvinitentes plumas
Iam de brumas a vagar nos céus,
Gemia a brisa — perfumando-a a rosa —
Terna, queixosa nos cabelos teus.


Que noite santa!... Sempre o lábio mudo
A dizer tudo, a respirar paixão;
De espaço a espaço um fervoroso beijo,
E após o pejo... e algum frouxo não.


Eu fui a brisa — tu me foste a rosa,
Fui mariposa — tu me foste a luz,
— Brisa — beijei-te — mariposa — ardi-me.
E hoje me oprime do martírio a cruz.


E agora quando da montanha o vento
Geme um lamento de infinito amor,
Busco debalde t'escutar as juras...
Não mais venturas... só me resta a dor.


Seria um sonho aquela noite bela?
Dize, donzela... Foi real... bem sei!...
Ai! não me negues, diz-mo a lua, o vento,
Diz-mo o tormento que por ti penei!...
 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Remorsos


Em que pensa Carlota após a valsa,
No tapete
Atirando o bournous quando descalça...
Ou melhor... quando rompe a luva, a fita,
Se a presilha, o colchete,
Em leve resistência a mão lhe irrita...
Em que pensa Carlota após a valsa?


Em que sonha Carlota à madrugada,
Quando aperta
Ao travesseiro a boca perfumada.
E afoga o seio sob a cruz de prata,
Pela camisa aberta,
Que um movimento lânguido desata...
Em que sonha Carlota à madrugada?


Com quem fala Carlota ao sol poente,
Na sombria alameda,
Quando os cisnes se arrufam na corente...
E o vento pelas grutas cochichando
Uns noivos arremeda,
Que estão como dois pombos arrulando...
Com quem fala Carlota ao sol poente?


Por que chora Carlota ao meio-dia,
Quando nua de adorno,
Cobrindo os pés... co’a trança luzidia,
Entrega o corpo ao vacilar da rede,
E olhando o campo morno,
Os lábios morde... pr’a matar a sede.
Por que chora Carlota oa meio-dia?


O que cisma, o que sente, por quem chora
A soberba Carlota?
A rainha das salas já descora...
Foge o cetro do leque aos dedos frouxos,
E a turba alegre nota
O fundo circ’lo de seus olhos roxos.
Que não diz o que cisma e porque chora...


Quem te mata, Carlota, são remorsos
De algum divino crime?
São ciúmes que escondem teus esforços?
Tens vergonha talvez deste rosário
Que tua mão comprime,
Porque um sopro roçou no relicário?
E desmaias, Carlota, de remorsos?!


Se é por isso não pises tanto os olhos...
Formosa criatura!
O mundo é um mar de pérfidos escolhos,
Quem te pode lançar primeiro a pedra?
Amor! e formosura!
Deus não corta a roseira porque medra...
Se é por isso não pises tanto os olhos!


Mas não! Chora! Teu mal é sem remédio...
Serás mártir sem palma,
Pregada numa cruz... na cruz do tédio!
Fria Carlota! Cobre-te de pejo...
Mataste à sede um’alma!
Fizeste o crime... de negar um beijo!
Chora! Que este remorso é sem remédio!!...
 

Jornal de Filosofia

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Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Rezas

 

Álvares de Azevedo

 

NA HORA em que a terra dorme
Enrolada em frios véus,
Eu ouço uma reza enorme
Enchendo o abismo dos céus...


Acendem-se os bentos círios
Dos vaga-lumes sutis!
"Ave!" murmuram os lírios,
"Ave!" dizem os covis!


Nos boqueirões há soluços...
Tem remorso o vendaval...
O mar se atira de bruços,
Co'as barbas pelo areal.


As nuvens ajoelhadas
Nos claustros ermos e vãos,
Passam as contas doiradas
Das estrelas pelas mãos.


A açucena, por criança,
Junta os dedos... reza e ri!
A palmeira larga a trança...
Reza nua como a huri.


A ventania que emboca
Pela serra colossal
É o organista que toca
Nos sifões da catedral.


Que fanatismos divinos
Nas lapas do campo alvar!
Da onça os olhos felinos
Dizem rezas ao luar.


Há luzes fosforescentes
Acesas pelos marnéis...
São as larvas penitentes
Rezando pelos fiéis.


Monstro e anjo a noite grupa
No pedestal da oração...
Quem sabe se a catadupa
Bate nos peitos do chão?


Pelo cipó solitário
Gota a gota o orvalno cai
Como as bagas do rosário
De filha que chora o pai.


Reza tudo que tem boca
Cheia de graça ou terror...
O ninho — junto da toca!
A cratera ao pé da flor!


Só enquanto a reza enorme
Reboa pela amplidão...
Como Ló... o Homem dorme
No colo da criação!!!
 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

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Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Se eu te dissesse


SE EU te dissesse que cindindo os mares,
Triste, pendido sobre a vítrea vaga,
Eu desfolhava de teu nome as pétalas
Ao salso vento, que as marés afaga...


Se eu te dissesse que por ermos cimos,
Por ínvios trilhos de uni país distante,
Teu casto riso, teu olhar celeste
Ungia o lábio ao viajor errante;


Se eu te dissesse que do alvergue à ermida,
Do monte ao vale, da chapada à selva,
Junta comigo vagueou tua alma;
Junta comigo pernoitou na relva;


Se eu te dissesse que ao relento frio
Dei minha fronte à viração gemente,
E olhando o rumo de teu lar — saudoso,
Molhei as trevas de meu pranto algente;


Se eu te dissesse, bela flor das saias!
Que eu dei teu nome dos sertões às flores!...
E ousei, na trova em que os pastores gemem,
Por ti, senhora, improvisar de amores;


Se eu te dissesse que tu foste a concha
Que o peregrino traz da Terra Santa,
Mago amuleto que no seio mora,
Doce relíquia... talismã que encanta!... ;


Se eu te dissesse que tu foste a rosa
Que ornava a gorra ao menestrel divino;
Cruz que o Templário conchegava ao peito
Quando nas naves reboava o hino;


Se eu te dissse que tu és, criança!
O anjo-da-guarda que me orvalha as preces...;
Se eu te disserte... — Foi talvez mentira! —
Se eu te dissesse... Tu talvez dissesses...

 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Soneto

 

Á artista a Sra. D. Jesuína Montáni
de Giovani na noite do espetáculo
em favor do Monte Pio da Bahia.


MOTE


"Das almas grandes a nobreza é esta."


GLOSA


AQUI, onde o talento verdadeiro
Não nega o povo o merecido preito;
Aqui onde no público respeito
Se conquista o brasão mais lisonjeiro.


Aqui onde o gênio sobranceiro
E, de torpes calúnias, ao efeito,
Jesuína, dos zoilos a despeito,
És tu que ocupas o lugar primeiro!


Repara como o povo te festeja...
Vê como em teu favor se manifesta,
Mau grado a mão, que, oculta, te apedreja!


Fazes bem desprezar quem te molesta;
Ser indif’rente ao regougar da inveja,
"Das almas grandes a nobreza é esta."
 

A menina afegã

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Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Sonho da boêmia


DAMA NEGRA


I


VAMOS, meu anjo, fugindo,
A todos sempre sorrindo,
Bem longe nos ocultar...
Como boêmios errantes,
Alegres e delirantes
Por toda a parte a vagar.

 

II


Há tanto canto na terra
Que uma vida inteira encerra!...
E que vida!... Um céu de amor!
Seremos dois passarinhos,
Faremos os nossos ninhos
Lá onde ninguém mais for.



III


Uma casinha bonita,
Lá na mata que se agita
Do vento ao mole soprar,
Com as folhas secas da selva
Com o lençol verde da relva
Oh! quanto havemos de amar!...



IV


De manhã, inda bem cedo,
Hás de acordar, anjo ledo,
Junto do meu coração...
Ao canto alegre das aves
As nossas canções suaves,
Quais preces se ajuntarão.



V


Passearemos à sesta...
Sonharemos na floresta,
Sempre felizes, meu Deus!...
Nalma lânguida esteira,
Quanta cantiga faceira
Ouvirei dos lábios teus!...



VI


E à noite, no mesmo leito
Reclinada no meu peito,
Hei de ouvir os cantos teus.
A cada estrofe bonita
No teu seio, que palpita,
Terás cem beijos, por Deus!



VII


Farei poesias ou versos
Aos teus olhinhos perversas
Aos teus "anhos, meu bem!
Tu cantarás, é Manola,
Aquela moda espanhola
Que tantos requebros tem!



VIII


Depois, que lindas viagens!...
Veremos novas paisagens,
No sul, no norte, onde for...
Voando sempre, querida,
Co'a primavera da vida,
Co'a primavera do amor.



IX


Vamos, meu anjo, fugindo,
A todos sempre sorrindo
Bem longe nos ocultar.
Como boêmios errantes
Que repetem delirantes:
"P'ra ser feliz basta amar"!

 

Um cronômetro para piscinas

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Tríplice diadema


No álbum de Eugênia Câmara


O ETERNO estatuário do infinito
Pega um dia do mármore... e sacode
Qual Fídias o cinzel,
Cava o buril abismos de beleza...
Surge a forma sutil como de Haidéia
— Deus se fez Rafael.


Contempla o Eterno sua obra e pasma...
Pensa e medita... após mergulha os dedos
Em abismos de luz...


— Pega uma estrela, pousa-te na fronte
Deu-te o poder de devassar os orbes
E os páramos azuis ...


O que é mais do que a estátua e o gênio?... O anjo!
Ouve-se além, da terra se levanta
Um gemido de dor.
Qual de Pigmalião, de Deus um pranto
Rolou no seio da Madona pálida
Foi a gota do amor


Tens a beleza de uma Vênus grega!
Tens o gênio de Safo, ardente, mística!
De um anjo o coração!
Só tu cinges o Tríplice diadema —
— A beleza nas formas, — n'alma o gênio
— E no seio — a paixão!...
 

Blake, O compasso de Deus

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Versos para música


INGRATA! E fazes milagres
E não crês em ti sequer.
Vê, teu riso quebra as lousas,
Eu sou Lázaro, mulher.


Tu me perguntas, formosa,
Se a alma tem outra flor...
Se revive murcha a rosa...
Se renasce morto o amor...


Ingrata! pois tu duvidas?
Do influxo do teu poder!...
Minh'alma é planta aquecida
Nos teus sorrisos, mulher.


Ingrata! Tu que dás vida
Não vês sequer teu poder!...
Olha-me! Eu vivo, querida!...
Eu sou Lázaro, mulher!


Eu era a triste crisálida,
Tu foste a luz do arrebol!...
Minh'alma desperta válida
Aos raios da luz do sol!...


Ingrata! Inda assim duvidas
Do influxo de teu poder...
Vês, minh'alma? É borboleta
Que tu salvaste, mulher.


Ingrata! E fazes prodígios
E não crês em ti sequer!...
Minha alma é lousa florida
Aos teus afagos, mulher!
 

Michelangelo, Pietá

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


Virgem dos últimos amores


CENA ÚNICA


É noite. A cena representa uma
floresta americana. Longe dos fogos
sangrentos da tribo. Perto os guerreiros
que rodam ao clarão do luar. O prisioneiro
espera a noiva


POR DETRÁS daquele outeiro
A morte espera a manhã!
É a morte do guerreiro,
Do bravo que não recua!...
Geme ao longe a mãe-da-lua,
Responde perto a cauã...


Nas sombras passa uma sombra!...
Balançaram nos cipós!...
Pé de moça pisa a alfombra...
Da cova enfeitam-lhe as flores...
Flor dos últimos amores!
Traz o beijo dos heróis!


Da lua a teia amarela
Estende as malhas de luz...
Na riba o caboclo vela
Ao rubro fogo da taba...
Aqui a murta desaba
Mulher! nos teus peitos nus!


A lagoa se debruça
P'ra cair no ribeirão...
É minha mie quem soluça?
Não sabes filha estrangeira,
Tens a trança da palmeira...
Palmeira do coração!


Foi de jasmins amarelos
Que trançaste o canitar!
Criança, eu morro de anelos,
Dá-me beijo sobre beijo...
Tenho um séc'lo — por desejo!
E uma noite — por amar!


Amanhã todo este fogo
A morte vai apagar,
Arranca-me est’alma logo...
— Amai! — a noite nos clama —
— Enquanto houver uma flama! —
Um grito! um sopro! um olhar!


Teu sangue ardente galopa
Na fronte morna a bater;
Teu lábio meu lábio ensopa...
Moça! que mel nestes lábios...
São das abelhas ressábios?
São ressábios do morrer?


Pois eu já vi mil gentias
Chorar nestes braços meus,
Aquelas frutas bravias
Não São frutas que embriagam,
Teus dedos quando me afagam
Parecem dedos dos céus...


Existe uma flor na mata
Que aparece à noite só:
Abre as pétalas de prata,
Se espaneja, se colora...
Mas, aos fulgores da aurora
Murcha, expira, faz-se em pó.


Chama-se... o nome qu’mporta?
Lembro agora um sonho meu:
... Uma águia tombava morta
Das nuvens... na correnteza...
Nas garras tinha uma presa
Rolando viva... Era eu!


Por que derrubas as gotas
Do cacho do ouricuri?
São tuas miçangas rotas


Que rolam na minha frente?
Teu colar estava quente...
As contas quentes senti!


Bem sabes! Se o filho expira,
A mãe, que triste o perdeu,
Na selva o berço lhe estira
Entre a flor, a brisa, a palma...
Quando eu morrer, prende est'alma
Aqui, no cabelo teus


Minha noiva derradeira,
És bela e triste ao luar!
Eu fui a garça altaneira
Cruzando as tardes vermelhas...
Dos arcos das sobrancelhas
Por que frechaste um olhar?


Caí! Caí nos teus braços,
Dela filha de Tupá!
São serpentes teus abraços,
Mas são serpentes que beijam!...
São lianas que festejam
Os galhos de piquiá.


Já, mais fria a serenada
Resvala pelos bambus...
Os ventos da madrugada
Vêm da picha, vêm do norte...
Não ouves, falando em morte?
... Eu amo os teus ombros nus!...


Teus ombros... Mas ficas branca
Vendo o céu enbranquecer!?
É a alvorada que espanca
Os mochos e dentre as flores,
Aos pombos arruladores
Manda cantar... Vou morrer!


Vem! Os astros emurchecem...
Só resta um deles nos céus.
Seus raios grandes parecem
As pétalas da magnólia...
É a estrela que se esfolha
Quando a noite diz adeus.


Fita os olhos nela... um beijo...
Um beijo... antes do arrebol!...
Inda brilha... inda um desejo...
Eia! Ao raio derradeiro!...


..................................


Adeus! noiva do guerreiro!
Salve, ó morte! Salve, ó sol!!!

 

Hélio Rola

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby