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Carlos Nejar


 

No tribunal


Eu e o tribunal
e sua fria mudez.
O juiz no centro e no fim,
o rosto girando em mim,
farândola.
 


Vim, com a escura coragem,
de um réu antigo e selvagem.
O que me prendeu,
lutou comigo e venceu.
Vacilava em me reter,
mas eu que entregava,
por saber que minha chaga
estava exposta na lei.
 


Giram as mãos
e os pés atados. O juiz
é um vulto que eu mesmo fiz
com meus esboços. O juiz
no centro, no fim,
no tribunal onde vou,
no tribunal donde vim.
 


E assim me condenei
a permanecer aqui.
 

 

 

Hélio Rola

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Luiz Paulo Santana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

Carlos Nejar


 

O homem sempre é mais forte


O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.
O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.
 


O vento faz seu caminho
e pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.
 


O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.
 

 


II.
 


O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.
 


No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.
 


Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.
 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Nicolau Saião, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

Carlos Nejar


 

Cantata em rodas plumas


O amor armou a clava
da tarde e seu alarme.
Quer, albatroz, levar-me
onde alcançam suas asas.
 


Vem, ditoso, acordar-me.
Quer nos levar nas rodas
das plumas e avalanches.
Nós chegaremos antes
 


com jubilosas almas,
que se absorvem, alvas
e salvas, nos redutos.
De céu a céu, conceitos
 


são cinzas e ferrugem.
E os que se amam, pungem
de amar, e mais amando
em gozo, em gozo, em bombo
 


ou nos vestígios, nuvens;
nos elos desta lava.
Em mais amor solvemos
o que se faz pequeno.
 


E humano: abismo, abismo.
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Ruy Espinheira Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Carlos Nejar


 

Aos amigos e inimigos


De amigos e inimigos
fui servido,
agora estamos unidos,
atrelados ao degredo.
 


Nunca fui o escolhido
onde os deuses me puseram.
Nem sou deles, sou de mim
e dos íntimos infernos.
 


Não.
Não me entreguem aos mortos,
os filhos que me pariram
e plasmei com meus remorsos
no seu mágico convívio.
 


De amigos e inimigos
fui servido
e com tão finada vida
e alegados motivos,
que ao dar por eles, já partira
e quando dei por mim, não estava vivo.
 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Rodrigo Petronio [2003]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Carlos Nejar


 

Soneto aos sapatos quietos


Os pés dos sapatos juntos.
Hei-de calçá-los, soltos
e imensos, e talvez rotos,
como dois velhos marujos.
 


Nunca terão o desgosto
que tive. Jamais o sujo
desconsolo: estando postos,
como eu, em chãos defuntos.
 


Em vãos de flor, sem o riacho
de um pé a outro, entre guizos.
Não há demência ou fome.
 


Sapatos nos pés não comem.
Só dormem. Porém, descalço
pela alma, o paraíso.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Tarcísio Holanda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Carlos Nejar


 

Repúdio


Réu de morte,
réu com denodo,
cordel e archote,
desterrai-me.
 


Infiéis
ao eixo a que pertenceis,
desterrai-me
pelo que deixais
de fazer.
 


Na fartura e na colheita,
desterrai-me.
 


Pousastes a mão de ferro
sobre a vida que não herdo,
mas pretendo por direito.
Vosso rosto não mudou,
em si mesmo se fechou,
lacrada urna.
 


Desterrai-me
pela paz e pela guerra;
sou o sinal que elimina
a vossa parte de fera.
 


Desterrai-me
com paixão e desespero,
girante em torno do Todo,
como pássaro ao viveiro.
 


Desterrai-me.
 


Incomodo a solidão
destes corpos que se dão
para o nada, para o chão,
para o terrível então.
 


Giro em torno do Todo,
sendo, por isto, mais eu;
tudo o que a morte tolheu,
reverto em pesado ouro.
 


Sou aquele que cedeu
o melhor de seu tesouro
e mendigo se perdeu
nas próprias coisas que deu.
 


Desterrai-me.
Giro em torno do Todo,
morcego no breu.
Giro em torno do Todo,
giro em torno do covo,
onde irão enterrar-me.
 


E usai de precisão
em colocar o tampão,
em colocar-me qual pão
para o consumo do Todo.
 


Baixai-me, se o quiserdes,
com nojo.
Também na morte,
preciso de vosso engodo.
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Nelson Ascher