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Cassiano Ricardo


 

Montanha russa


Já o ser inquieto não
está em nenhum lugar
porque a inquietação já
é uma forma de não
estar nunca estaR


que se dirá então
do ninguém que mora
em mim por não ter não
onde morar
na terra no ar no maR


quem imagina não
está em si somente
nem somente onde está
está de repente
sem cuspir nem porvir
numa montanha russa
só pelo prazer
perpendicular
de subir e caiR


Ó meu distante amor
quando eu passar espera-me
na tua porta não
te poderei beijar não
só terei tempo para
na paisagem em fuga
entre areia e sal
te deixar na mão
uma floR


Espera-me na porta
se estiveres na lua
maria azul luz clara
quando eu passar como
um peixe voador não
terei tempo para
te ofertar sequer
uma floR


só terás tempo de dizer
como a mulher de Arvers
que louco é este
que chegou da terra e não
me trouxe sequer
uma floR
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

A medusa de fogo


A simples bulha surda
Do meu coração batendo
Poderá te acordar.
Mesmo a penugem da lua
Que cai sobre o ombro nu
Das árvores, tão de leve,
Poderá te acordar.


A simples caída da bolha
D'água sobre a folha,
Por ser fria como a neve,
Poderá te acordar.
Só porque a rosa lembra
Um grito vermelho,
Retiro-a de diante do espelho
Porque — de tão rubra —
Poderá te acordar.


E se nasce a manhã
Calço-lhe logo pés de lã,
Porque ela, com seus pássaros,
Poderá te acordar.
Mesmo o meu maior silêncio,
O meu mudo pé-ante-pé,
De tão mudo que é,
Não irá te acordar?


Ó medusa de fogo,
Conserva-te dormida.
Com o teu fogo ruivo e meu,
Qual monstruosa ferida.
Como data esquecida.
Como aranha escondida
Num ângulo da parede.
Como rima água-marinha
Que morreu de sede.


E eu serei tão breve
Que, um dia, deixarei
Também, até de respirar,
Para não te acordar.
ó medusa de fogo,
Dormida sob a neve!
 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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José Nêumanne Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Espaço lírico


Não amo o espaço que o meu corpo ocupa
Num jardim público, num estribo de bonde.
Mas o espaço que mora em mim, luz interior.
Um espaço que é meu como uma flor


Que me nasceu por dentro, entre paredes.
Nutrido à custa de secretas sedes.
Que é a forma? Não o simples adorno.
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço


Dentro do meu perfil, do meu contorno.
Que haja em mim um chão vivo em cada passo
(mesmo nas horas mais obscuras) para


Que eu possa amar a todas as criaturas.
Morte: retorno ao incriado. Espaço:
Virgindade do tempo em campo verde.
 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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Maria do Socorro Cardoso Xavier

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Ficaram-me as penas


O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um vôo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.
Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.


A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!


Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.
 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Fernando Py

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Rotação


a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
           na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
         na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera

a espera me ensina
          a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
           na esfera
 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Laeticia Jensen Eble

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Posições do corpo


Sob o azul
sobre o azul

 

subazul
subsol
subsolo.

 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Millôr Fernandes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

A física do susto


O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Adelaide Lessa