Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Edmir Carvalho Bezerra


 

Enxuga meus olhos, Verônica


eu li chuvas demais nesta cidade
os vampiros sugam mangas ao som da ave-Maria
roda gigantes deixam meninos-girafas encantados
as pipocas caem pelo chão
não escrevo pensando nesta cidade física
os versos que leio têm setenta escorpiões
e relógios d’água
o poeta é muito triste
tem incompreensões e vertigens subjetivas
a futura esposa que se chama (in)sonia
anda perdida e envenenada de amor proibido
somente eu vejo os escorpionídeos
nas minhas veias inocularem suas peçonhas
isso me acalma a ponto de sangrar gritos
chamo-te com teu véu
enxuga meus olhos, Verônica

é proibido ser poeta nesta cidade
os palhaços em pernas de pau são tristíssimos
padeiros são infelizes fabricantes de pães machucados
não leia versos em praça pública
o poeta pode ser apedrejado
há músicos tocando tambores, pobres tambores
estridentes arritmias sabidamente ridículas
pintaram os cabelos, pobres cores berrantes
músicos risíveis
os sons das senzalas clamavam sentidos
liberdade liberdade liberdade
agora vocês são risíveis machucadores de bumbos
uma sonata dorme na faixa de pedestre
as linhas brancas uma partitura pedida
fazer silêncio é um espetáculo impossível nesta cidade

pensar em coisas que tragam melodia
ter saudade
ter agonia
ter u ma(r) janela
chorar diante de uma igreja
sonhar com portas de tabacarias
lambuzar os olhos numa fotografia
como fazem poetas gemendo fotopoemas
é devaneio, Verônica
traga seu lenço para enxugar pinturas líricas

há homens lançando redes sobre as mangas
pescaria no vento com chuva
a imagem de cristo no sudário encardido
há homens puxando carroças
passam em frente à basílica suando
pontiaguda a nave da igreja aponta o céu
Soa e estremece a pedra de são pedro
a mulher hierosolimita entoa um canto
enxuga a face de um homem suado
ou será um homem chorando

é muito tarde para adorações de poetas
contemplações de poesia
somente nos epitáfios
sempre sempre para sempre
desse jeito sempre sempre
homens alucinados ganham fama
após entrarem em órbita
após o óbito
após o para sempre
ao redor de seus nardos crescem arbustos decolores e perenes
deitadas e comovidas a milênios
flores alvas
róseas
azuis
púrpuras
lilases
forram um campo ocioso onde jesus passeava
essas flores todas possuem o mesmo nome

Verônica

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Êxtase de São Francisco

 

Edmir Carvalho Bezerra


 

A PALAVRA INTERSEMIÓTICA


AQUI ESTOU PARA COMPRAR O CAOS
NÃO – EU NÃO SOU O CAVALEIRO CANTALORANTE
O CAVALEIRO DE POE EM BUSCA DO ELDORADO
TRAGO NA BOLSA D’ÁGUA FOGO E GILETE
ASSUNTOS PELA METADE EM CONVERSAS NAUFRAGADAS
QUANDO CANTAROLÁVAMOS E NÃO TÍNHAMOS BÚSSOLAS
RIMÁVAMOS RISOS NAS DIREÇÕES ERRADA
AQUI AS LOJAS VENDEM REPELENTES CONTRA CANIBAIS
VOCÊ DECIFRARIA QUALQUER ANTIGO MANUSCRITO
MENOS ESTA PALAVRA

– ORVALHAISVEDRAMINDENTRO –

DEIXE PASSAR O TEMPO E ESTE ENTRECRUZAMENTO
VISIVELMENTE ESVAZIADO

- ORVALHAISVEDRAMINDENTRO –

NÃO-LUGAR
NÃO-SENTIMENTO
NÃO-SURGIMENTO
NO ENTANTO FICA PRÓXIMO ÀS RASGURAS DE TUA CALÇA BOCA LARGA

AQUI ESTOU PARA DOAR ESTE MOMENTO
VESTINDO UMA CAMISA TAMANHO P
TUDO QUE É DE MIM
CABE NESTE MOMENTO
DEPOIS DA CHUVA SAIA DE SAIA
DEIXE OS CABELOS NO VARAL
SECAREM NO VENTRE
PENSE NESTA PALAVRA COMENDO MIL OUTRAS PALAVRAS
PUXE E SOLTE O VENTO NOS TEMPOS DA PRONÚNCIA

- ORVALHAISVEDRAMINDENTRO –

ESTARRECIMENTOS?
NÃO SE PREOCUPE
AS REVERBERAÇÕES NÃO SÃO DO CORVO DE POE
PROCURE A IMAGEM DENTRO DE SEU OUVIDO
OS URUBUS NASCEM BRANCOS
ADULTOS AVES NEGRAS DIURNAS E SILENCIOSAS
LANÇAM REPELENTES NA CABEÇA DOS RACISTAS
AQUI DILATAMOS OS PULMÕES QUANDO DIZEMOS
INERTES SILÊNCIOS
EU VOS COMPREENDO

- ORVALHAISVEDRAMINDENTRO –

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Edmir Carvalho Bezerra


 

Objeto partido (a rosa louca)


eu sou a rosa branca
tons lilases que borbotam em mim
são ais de outras flores
que transbordam chorosas
nos umbrais dos livros
brotei na boca de um ferro de engomar
que passante fora
ferro de passar história
se acalorou
se resfriou
virou compêndio da escravatura
sólido na biblioteca
o ferro da escrava louca
ainda pouco era um livro
de tanto borralho e assopro no fundilho
ferro rouco de passar roupa
cuspindo fumaça em estribilho
guardou cinzentas histórias nos pulmões
ferro lírico à carvão
se punha em pé no romanceiro
olhando de hora em hora à mesma janela
paisagens seculares em movimento
tempos atrás de tempos
eu sou a rosa louca filha de um ferro antigo
a gaivota com água no bico
morrendo de desejos pelo peixe icógnita
pintado no aquário
primeira paisagem
o mingau feito de via-láctea em pó
a moça elétrica sem tempo para o filho
pensa em novos deleites inconseqüentes
outra paisagem que entrevemos
eu louca e o ferro velho à carvão
tantos amores exalam dos livros
o nariz de meu pai é muito grande
reacende a saudade da escrava louca
ruínas de gotas engelham minhas pétalas
tantas paisagens transmudando-se na janela
meu pai comete suicídio
sou a rosa no raso da biblioteca
filha de um objeto par-ti-do
semelhantes cacos coçavam Jó
deitam sobre toalha engomada
em galeria nobre
uma instalação mais que pós-moderna
na ardósia do atelier clarividente
eu sou a rosa roxa
a rosa esquecida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

Edmir Carvalho Bezerra


 

Nós


você viu os tristes semblantes das marionetes
corrompidas em linhas
tenho dó
não das marionetes
mas dos nós prisioneiros
marionetes de miriti
fruta pavulagem
nos visita de dezembro a abril
você ouviu a voz do ventríloquo e seu boneco cabeça de cuia
não posso mais visitar circos
o homem que engole fogo
a mulher transpassada pela espada que brilha no meu olho
a corda bamba fio de navalha
o mágico roubando as moedas de nossas orelhas
a sereia voadora de trapézio a trapézio
isso me dá calafrio
o mesmo frio que se cala de março a novembro
não vou com você ao circo
é patético rir de anões
é vertiginoso está ao seu lado
enquanto você flutua
vestida de sol
e se o circo pegar fogo?
se o palhaço resolver me dá um soco?

para quem muito cedo
pensou no corte fatal
eu e tu minha mãe
sofremos de escuridões
e debruçamentos sobre escrivaninhas
papéis gelados lisos cinzas desimaginados
cicatrizam esses papéis nossas impressões digitais
deixei os circos
para ver minha coleção de selos
todos inúteis
até o sétimo
quero imagens de merthiolate para curar nossos papéis
asas de galinhas
ferrugem de trilhos
palhas mortas do miritizeiro
peixes fumando cachimbos
vassouras subindo escadas
quadrúpedes dançando valsas
o retorno de um velório
coisas esvaziantes
preciso ficar triste
por favor
faça-me essa ausência
um dia eu conto tudo que vi
deixe-me sentado a dois metros da janela
apenas dois
a dor apenas
os olhos dentro de um tubo
sem ver a periferia
sem ouvir esquinas
se eu enxergar uma estrela caindo?
se eu apontar o indicador?
vai ser extraordinário
passar a noite chorando
menino menino menino
vai nascer verruga no dedo
da meia noite até o final do escuro
virão simplicidades assustadoras
um jacaré no corredor da casa
todas as luzes apagadas
um jacaré fosforescente
comendo alface
lendo “TELEFONES VERDES E QUIABOS FRITOS”
esse livro áspero que virá


em
nós
desatem-nos escoteiros
tenham dó
de nossas cabeças

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Edmir Carvalho Bezerra


 

ALEGRIA RIBEIRINHA
(APAGANDO A TRISTEZA)


MIGALHAS DO CORPO SANTO
QUASE INVISÍVEIS
DERRAMAM-SE NO CHÃO DA CAPELA
FINDA-SE O TEMPO DAS PATENAS DOURADAS
FOI O HOMEM ENVELHECER
MASTIGAR SUA VELHICE
MEDITANDO OS OLHOS NOS CARROS DE BOIS
NO VENDEDOR DE CARVÃO
NO VENDEDOR DE PAMONHAS
QUE AO LONGE PARECE A MULA SEM CABEÇA

O RIO INICIA SEU CAUDAL
NUMA FLUÊNCIA MILIMÉTRICA
SURUBINS RESPIRAM ALIVIADOS
O PEIXE CALEIDOSCÓPIO REBRILHA
DEIXANDO CENTELHAS DE CRISTAIS NA SUPERFÍCIE
AS MENINAS ESPERAVAM O SOL DEITAR NA FLORESTA
BANHAM-SE AGORA
PROVOCANDO OS BOTOS QUE
DEVORAM SEUS SEIOS ADESIVADOS
ILUMINADOS PELOS CRISTAIS
NOS ENVELHECIDOS VESTIDOS DE ALGODÃO
DIA DE TODOS OS SANTOS
INICIA HOJE O TEMPO DA FARTURA
ALEGRE REBENTAÇÃO

TEMPO DAS BANANAS GORDAS
MIRITI-SOL, LAMAS DE TUCUMÃ,
CAROÇOS DE UXIS BOIAM ROÍDOS POR CURUMINS
CARAPANÃS DESAFINADOS TOCAM RABECAS COM SERROTES
O MANDII COM SEU ESPORÃO É O GUARDA-RIO NOTURNO

LÁ LONGE
A PROCISSÃO DE SANTOS E MARTÍRES
JOANA, MARIA, ROSA, JUDITH, ODALÉIA, FÁTIMA, MARINA, MARIQUINHA, PANTOJA
POSSUEM AURÉOLAS DA ORQUESTRA DESAFINADA DOS CARAPANÃS
A BEATA MANDONA DESAFIA OS (DESA)FINADOS
CHORA MAIS ESTRIDENTE
PELAS ALMAS PESCADAS NO TEMPO DA CEIFA DO RIO
ENTOANDO O LAMENTO DE JESUS DEPRIMIDO
"AI DÉ TI Ó BETSAIDA, AI DÉ TI Ó COROOZAIN
EU JÁ FIZ MUITOS PRODÍGIOS
MAS NÃO ACREDITARTES EM MIM"

NO INTERIOR DAS CASAS DE BARRO
CANDEEIROS DERRAMAM LUZES ENCARDIDAS
SOBRE JESUZINHOS NAS REDES ADORMECIDOS
O PERFUME É DE QUEROSENE

MIGALHAS DE CRISTO EMPOAM O CHÃO DAS CAPELAS
OS PESCADORES ARRIBAM EM SUAS CANOAS
AS ÁGUAS GRÁVIDAS, SE EMBARRIGUDANDO
CRESCEM DE FIO A PAVIO
PESCADOR SABE DE ÁGUAS EM GESTAÇÃO
E SE LANÇA REMANDO NA ESCURIDÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

Edmir Carvalho Bezerra


 

Que nome darei a este poema?


saiu o garimpeiro em busca de diamantes de papel
percorreu milhas de terras, sombras e mares
o ouro
o diamante
para sua amada
para o cinzel
lapidação tocante intocável
depois a via-láctea o acolheu
mirou constelações a gênese dos astros
invisíveis folheações minerais brilhavam
uma fileira de luas
abandonadas
desacordadas
gordas
magras
corcundas
como bananas amareladas
um planeta errante mapeado
sofre mais a solidão - tem sede esse planeta -
cabeleiras de cometas
lumiavam
revoações coreografadas de meteoros
não se escondiam
eram de vidro as portas escarlates
a luz de um poste antigo
suspirava nas fronteiras do rio celeste
no chão de papiro
de solofone
de seda sensível
de manteiga
de sabão
melofones e guitarras embriagavam-se naquela luz liquida
losas verdes com limos de palavras esquecidas
desencadernações metrificadas
epístolas de algodão
o rosto magnífico de um deus criança
brincava de sofrer de versos
um deus enlouqueceu de amar
foi depois o garimpeiro gari
ancinhando as folhagens
tanto juntou folhas e folhas
que teceu mais um planeta
redondo? Não.
em forma de livro
uma brochura abarrotada de imagens
costuradas a mão pelo fio de Ariadne
a luz não se apagou dentro do livro
o encadernador de folhas viu que aquilo era bom
e o guardou dentro do infinito
o planeta livro
planeta palavra
planeta letra
planeta música
planeta alma
estrelas pequenas e grandes
vieram
anjos, arcanjos e querubins
vieram
definitivamente deus havia enlouquecido de amar
o cruzeiro do sul inclinou-se mais um pouco
as três marias deram-se as mãos
um girassol ficou perplexo
paralisado
um sol dentro de um livro
soletrando
soletrado
solivre
solivro
os anéis de saturno
ah! esses anéis sem dedos
anéis em vão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

Edmir Carvalho Bezerra


 

GUARDADOS


HOJE POETAS DE MÁGICA SENSIBILIDADE ME FIZERAM CHORAR
TANTO QUANTO CHORO AO ABRAÇAR ALBERTO CAIEIRO.
LEMBREI DE SANTO ANTÔNIO,
DE SÃO FRANCISCO,
DE JESUS CRISTO DIANTE DE JERUSALÉM, JERUSALÉM.
RELI O GENTIL PABLO NERUDA

PASSEI O DIA A PENSAR NO ANIVERSÁRIO DE CECÍLIA MERELES
NOS CHEIROS QUE CARREGAM OS POETAS
FIQUEI FAZENDO INDAGAÇÕES
QUAL ERA O CHEIRO DE DRUMMOND?
SERÁ QUE CHEIRAVA A JANELAS SOZINHAS?!
E O CHEIRO DE CORA CORALINA,
CHEIRO DE VELHINHA,
VOVOZINHA COM CABELOS FINOS LAVADOS COM SABÃO DE CÔCO
JOÃO CABRAL DE MELO NETO TINHA O PERFUME DAS PEDRAS
GUIMARÃES CHEIRAVA A CAFÉ QUENTINHO LÁ DO INTERIOR,
ISSO ME CONTOU UMA AMIGA
MANOEL DE BARROS CHEIRA, CHEIRA,
CHEIRA TANTO
É A PRÓPRIA PERFUMOSIDADE,
ISSO EU SENTI POR TELEFONE AO FALAR COM ELE
FLORBELA TEM O PERFUME DA TRISTEZA AZUL

VOCÊ JÁ SENTIU UMA TRISTEZA AZUL?
É FEITO UMA MISTURA DE AROMA ENCARDIDO E CANA DE AÇUCAR
MAS COM UM CÁLICE DE LÁGRIMAS COLHIDAS DE UMA ORQUÍDEA
FERNANDO PESSOA POSSUI O AROMA DAS TABACARIAS
MISTURADO COM ÓCULOS EMBAÇADOS
É UM CHEIRO DE LUCIDEZ PERMANENTE

O CHEIRO DE MAURO FAUTINO FICOU PERDIDO NUM VÔO PELOS ANDES
WALLY SALOMÃO DEIXOU APENAS UMA CALÇA VERMELHA
MEU POETA IRMÃO ILTON RIBEIRO CHEIRA A SUÍCIDIO
SUICÍDIO DOS BONS, AO CONTRÁRIO, VIVÍSSIMO
MARIA LÚCIA MEDEIROS, MINHA PROFESSORA, ESCRITORINHA
MORREU ESTA SEMANA AQUI EM BELÉM DO PARA
AINDA ESTAMOS COM SEU CHEIRO NO AR
OS AMIGOS ESTÃO TRISTES,
LÚCIA NOS FEZ UM NÓ NA GARGANTA
NOS CONFUNDIU MARTE COM MORTE
PENSO QUE FOI VISITAR MARTE

HOJE POETAS ME FIZERAM CHORAR TANTO...

 

 

 

 

 

 

29.05.2006