Fabio Lucas
A CRIAÇÃO LITERÁRIA
E O PAPEL DO CRÍTICO NA ANÁLISE DAS OBRAS
Diário do Nordeste
18/7/99
O professor, ensaísta
e crítico literário Fábio Lucas expõe, de modo
objetivo e incisivo, seus juízos acerca da criação
literária e o papel do crítico tanto na análise das
obras quanto na formação de um padrão estético.
Autor de diversos livros, é um profundo estudioso das produções
brasileiras em prosa e verso. A respeito do romance nordestino, por exemplo,
escreve: “Já o romance nordestino, alimentado pelo subdesenvolvimento
e miséria da região, associa muito bem a herança da
cultura brasileira, latifundiária e patriarcal, ao espírito
acumulativo do capitalismo incipiente, gerador de miséria e desemprego,
isto é, do “exército de reserva” necessário às
fases de prosperidade e à cobiça do lucro. Tal conjunto de
romances do Nordeste constitui o documento mais enfático da disparidade
social do País, pois a situação geográfica
e histórica da região, de uma pobreza heróica e dependente,
facilmente pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto. Ali foi
denunciada a atuação simultânea das forças telúricas
e das instituições humana para o esmagamento do homem e para
tornar mais pronunciado o desnível entre as classes.” ( O caráter
social da ficção no Brasil, 2ª edição,
Ática, p.46) a seguir, em conversa com o editor Carlos Augusto Viana,
ele expõe seus conceitos de belo, de produção cultural,
os caminhos de sua formação intelectual, sua compreensão
do painel da literatura contemporânea.
Fortaleza, Ceará - Domingo 18 de julho de 1999
O professor, ensaísta e crítico literário Fábio
Lucas expõe, de modo objetivo e incisivo, seus juízos acerca da criação
literária e o papel do crítico tanto na análise das obras quanto na formação de
um padrão estético. Autor de diversos livros, é um profundo estudioso das
produções brasileiras em prosa e verso. A respeito do romance nordestino, por
exemplo, escreve: “Já o romance nordestino, alimentado pelo subdesenvolvimento e
miséria da região, associa muito bem a herança da cultura brasileira,
latifundiária e patriarcal, ao espírito acumulativo do capitalismo incipiente,
gerador de miséria e desemprego, isto é, do “exército de reserva” necessário às
fases de prosperidade e à cobiça do lucro. Tal conjunto de romances do Nordeste
constitui o documento mais enfático da disparidade social do País, pois a
situação geográfica e histórica da região, de uma pobreza heróica e dependente,
facilmente pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto. Ali foi
denunciada a atuação simultânea das forças telúricas e das instituições humana
para o esmagamento do homem e para tornar mais pronunciado o desnível entre as
classes.” ( O caráter social da ficção no Brasil, 2ª edição, Ática, p.46) Seus
conceitos de belo, de produção cultural, os caminhos de sua formação
intelectual, sua compreensão do painel da literatura contemporânea.
Viana - Por que, dentre
as possibilidades da produção textual, a escolha pelo exercício
da crítica literária?
Lucas - Eu, que tive uma
alfabetização precoce, sou leitor desde criança. Fui
alfabetizado aos cincos. Minha família tinha um certo orgulho dos
que se dedicavam à leitura. Por isso, talvez, desenvolvi muito a
atividade de leitura. E, como eu era bastante inibido, não me sentia
muito à vontade na área da criação. Apreciava
mais comentar a obra dos outros. E, pouco a pouco, fui aperfeiçoando
a técnica de comentar as obras alheias; ou seja, como a arte poética,
advinda de outros criadores, invadia a minha sensibilidade.
Viana - E nunca houve uma
investida, mais incisiva, na criação poética ou ficcional?
Lucas - É claro que,
depois, quando me senti mais livre, mais adulto, deu-me, também,
a vontade da criação. Publiquei um livro, na coleção
Jovens Inteligentes, da Editora Global. Trata-se de uma narrativa, sob
o título: A mais bela história do mundo. Teve uma grande
receptividade, tanto do ponto de vista dos leitores quanto da crítica.
Essa mais bela história era o amor...
Viana - E depois?
Lucas - Depois eu fui me
organizando noutro sentido. Houve, também, determinações
familiares, pois fui encaminhado a um colégio interno, onde se deu
a minha formação intelectual. Meu pai, de certa forma, colocou-me
em direção ao Direito. Formei-me em Direito e cheguei a ser
doutor, pois defendi tese em Direito e Ciências Sociais. Mais tarde,
lecionei, na área de Economia, após defesa de uma tese, a
disciplina Economia Política e História das Teorias Econômicas.
Mas isso correspondia ao lado racional da minha atividade intelectual,
pois nunca deixei, em todo esse tempo, a literatura. Quando do golpe militar,
eu tive que lecionar no exterior. E, para mim, considerando as circunstâncias,
era muito mais fácil na área da literatura. E, como eu também
já houvera me especializado em Teoria da Literatura na Universidade
de Minas Gerais, senti-me mais à vontade em aulas para algumas universidades
norte-americanas.
Viana - Por que o exílio?
Lucas - Em verdade, a gente
nunca sabe. O que eu sei é que tirara uma licença-prêmio
na Universidade Federal de Minas Gerais, fizera uma reforma na minha casa
e estava sem dinheiro. Então, usei esse tempo para dar um curso
na Universidade de Brasília, ocasião em que, em 69, cassaram
os meus direitos de magistério. Aí eu tive que me desfazer
do meu patrimônio e, juntamente com a família, partir para
o exterior, uma vez que não podia mais trabalhar no Brasil.
Viana - A partir daí,
inverteram-se as posições entre Direito, Economia e Literatura?
Lucas - Sim. Se, antes, fazia
literatura por diletantismo, passei a dedicar-me a ela por inteiro, cabendo,
agora, o deleite à Economia.
Viana - Qual a sua linha
teórica?
Lucas -As fontes literárias,
em geral, são determinadas por modas. Houve uma época em
que estudei muito o Estruturalismo; depois, concentrei-me mais no Estruturalismo
Cultural, como também na Sócio-Lingüística. Assim,
a minha análise intrínseca do texto, compreendia não
só o texto mas as ligações contextuais.
Viana - A princípio,
a crítica literária era de caráter impressionista,
destacando-se, por exemplo, a obra de Alceu de Amoroso Lima. Com o tempo,
impõe-se a crítica universitária. Acha indispensável
a formação acadêmica para o exercício da crítica?
Lucas - Claro que sim. Exerci
a crítica literária em alguns jornais, em Belo Horizonte,
quando ainda havia o rodapé literário. Depois, o Otto Maria
Carpeaux convidou-me para substituí-lo no rodapé literário
do jornal O Correio da Manhã - um dos mais importantes do País.
Produzi muitos estudos que me deram uma grande comunicação
com o público. Isto foi uma escola de crítica; mas, para
mim, a crítica literária tem uma função normativa
do gosto literário, porque cristaliza, através de alguém
capacitado, as noções mais purificadas do literário
nas obras publicadas.
Viana - Crê na cumplicidade
crítico e leitor?
Lucas - Os leitores se ligam
muito nas palavras do crítico. Muitas vezes compram um livro, como
também deixam de comprá-lo, segundo as indicações
do
crítico. Desse modo, o crítico fixa padrões de gosto,
que determinam, bem ou mal, o consumo desse produto cultural que é
a literatura. Ultimamente, os grandes órgãos da imprensa
estão tomados pelos efeitos do que se chama Indústria Cultural,
que, em verdade, é o mais terrível ataque à qualidade
da produção cultural.
Viana - Por quê?
Lucas - Porque pela Indústria
Cultural o regente da qualidade é determinado pela quantidade. Obras
são infiltradas, através de múltiplos artifícios,
para vender mais, em listas de mais vendidos, por exemplo. As editoras
costumam falsear a demanda, apontando o livro como esgotado, criando um
noticiário consumista em torno da obra literária. Há
autores que, inclusive, já publicam o livro a partir de uma 2ª
edição, com o fim de criar sobre ele uma demanda ilusória.
Esses artifícios concentram-se na vendagem da obra literária.
Viana - E a crítica?
Lucas - A crítica
não deve se preocupar com isso, mas com obras que constituam o orgulho
da capacidade humana. A literatura é uma das múltiplas faces,
através das quais o homem tenta romper a terrível consciência
da morte. Há uma esperança de sobreviver além de sua
capacidade física. Assim, a obra exerce uma função
social, porque traduz a continuidade do espírito humano.
Viana - Como vê a qualidade
da literatura produzida, hoje, no Brasil?
Lucas - Há faixas
de consumo da obra literária. Há autores, por exemplo, que
se destinam a determinado público; outros, a um mais refinado, mais
exigente. Muitas as pessoas se confundem, achando que o público
que lê é homogêneo. Há, sim, os que consomem
esoterismo, sexo, auto-ajuda; bem como os que estão presos ao sabor
artístico da obra consumida. O grande consumo de um livro não
implica, necessariamente, sua qualidade. A literatura brasileira, hoje,
felizmente, não é regida por padrões rígidos.
O que há, hoje, é uma desconcentração muito
grande. Aqui, no Ceará, há grandes poetas e ficcionistas,
mas completamente desconhecidos em outros Estados; o mesmo se dá
no Rio Grande do Sul - e assim por diante. O Ceará e o Rio Grande
(onde estive recentemente) são pólos culturais da maior importância;
mas, é bem possível, que não circulam por aqui as
obras que lá circulam, e vice-versa. Um analista criterioso, ciente
da imensidão do País, tem que fazer essa pesquisa. Há
um vício (principalmente por parte da grande imprensa) de considerar
o eixo Rio-São Paulo como determinante para o padrão de gosto
da nação.
Viana - O que é um
equívoco...
Lucas - Claro. O Manoel de
Barros vive lá em Mato Grosso. Sua obra atinge o público
brasileiro sem que ele haja se deslocado de sua cidade. O mesmo se deu
com Adélia Prado; antes, com Mário Quintana; muito antes
dele, com Érico Veríssimo. Hoje há desconcentração
é muito maior. E isso é benéfico: grandes escritores
nas mais diversas regiões do Brasil. Resta-nos realçar os
que podem se tornar grandes autores nacionais. - Como divulgá-los
melhor?
Viana - Há, hoje,
uma luta surda entre a grande imprensa e a chamada imprensa alternativa;
mas que criou uma rede de informação muito complexo. Recebi
uma publicação, de Brasília, na qual havia o endereço
de mais de 100 veículos destinados à divulgação
da poesia. Isso implica o grande contado entre os autores. O que é
muito bom, pois estamos, não só na literatura, mas na política,
na economia, dominados por uma ditadura da informação - um
princípio de massificação regido pelo mercado, como
se o mercado fosse a última instância para determinar quem
presta e quem não presta. Mas o mercado é, muitas vezes,
injusto e até ridículo. Felizmente, as universidades têm
exercido um papel de combate a isso, pois, muitos professores, mais bem
informados, mais investigadores, estão levando a seus discípulos
a conviver com textos mais refinados. Isso é uma maneira de escapar
à tirania dos órgãos de comunicação
de massa.- Concorda com o fato dos livros didáticos, destinados
ao estudo do Português, utilizarem, com freqüência, textos
de compositores da MPB?
Lucas - Isso faz parte dessa
massificação. É a relação entre qualidade
literária e consumo. Como o compositor popular tem mais acesso a
um grande público, há, muitas vezes, a ilusão de que
sua obra tem qualidade, já que é aplaudida por um número
considerável de consumidores. Mas esses astros são também
um produto da Indústria Cultural; são, em sua maioria, deuses
com os pés de barro, em pouco tempo falecem. A taxa de mortalidade
de grandes nomes nessa área é muito grande. Quase nunca ressuscitam,
pois a moda, mais do que passageira, é cruel. Pode-se recuperar
do anonimato um livro (quem sabe, por acaso, encontrado num sebo) do meio
do século, de séculos passados. Após a leitura, vêm
as reflexões; outras pessoas começam a escrever sobre ele;
uma editora pode por ele se interessar; e, desse modo, é possível
restabelecer seu contato com o público. Mas uma obra, fruto de uma
moda, jamais renasce.
Viana - Há muitos
casos assim...
Lucas - Aqui, no Brasil,
já houve autores que tiveram todo o aplauso da imprensa e do público...
Viana - José Mauro
de Vasconeles...
Lucas - Sim, o José
Mauro... Veja-se outro caso: o de Humberto de Campos. À sua época,
era ele quem comandava a opinião pública. Quando fui presidente
do Instituto Nacional do Livro, procurei professores para uma pesquisa
acerca das obras de Humberto de Campo visando à edição
de uma seleta. Mas ninguém se interessou pelo assunto. Quer dizer,
o tempo apagou, pelo menos enquanto fenômeno literário, o
Humberto de Campos. Ele permanece apenas como fenômeno da Sociologia
da Literatura. É preciso ver com cautela a demanda de um determinado
momento, porque, por seu brilho, ela cega as pessoas.
Viana - Hoje, o que é
qualidade?
Lucas - Posso, apenas, dar-lhe
algumas pistas, pois o Brasil é muito diverso. Mas, por exemplo,
aqui, no Nordeste, eu tenho chamado a atenção dos ouvintes,
em muitas conferências, para um ficcionista sergipano: o Francisco
Dantas, autor de um grande romance - Os Desvalidos. Escrevi a respeito
dele numa revista da Portugal. Uma das personagens de Os Desvalidos é
o Lampião; mas visto sob o ângulo da tortura psíquica.
É o mito que se dissolve. Na área do ensaio, recebi, vindo
de Itabuna, (Bahia) um trabalho sobre as cartas de Pero Vaz Caminha. É
uma realização fascinante, uma análise miúda;
além de uma carta de um navegador anônimo. O Brasil é
surpreendente, por isso não podemos nos deixar enganar pela falsa
produção de mitos.
Viana - E o padrão
estético?
Lucas - Não há
mais escolas literárias. Temos, pelas circunstâncias históricas,
pela própria tecnologia, a condenação a um isolamento
muito grande. Disso resulta uma figura extremamente nociva à configuração
do gênero humano: o narcisismo. O sujeito só olha para si
e não vê a constelação na qual está inserido.
É uma quebra do sistema literário, pois as pessoas só
falam de si, são incapazes de citar um colega, uma tendência
ou não defendem pontos de vista sobre a literatura. Colecionei uma
série de entrevistas dos mais diversos escritores brasileiros e
surpreendeu-me o fato de que nenhum deles ousou falar de um seu contemporâneo.
O que não ocorre em Portugal, uma vez que lá o sistema literário
está intacto, pois os autores portugueses são capazes de
tecer juízos acerca de seus contemporâneos; no Brasil, ao
contrário, o que há são estrelas solitárias.
No nosso modernismo, era diferente: Bandeira, Drummond, Mário de
Andrade, dentre outros, incluíam seus contemporâneos no sistema
literário.
Viana - Concorda com a denominação
Pós-Modernismo?
Lucas - De jeito nenhum.
Não há pré ou pós. O sujeito é ou não
é. A acuidade do escritor passa pelo que ele é; e não,
pelo que ele vai anunciar. Nenhum escritor sabe que virá à
sua frente, tampouco é um pós de qualquer coisa. Isso é
uma violência da neurologia - a chamada lógica do tempo. Dizem
que a pós-modernidade se caracteriza pelo índice de citação;
mas isso não está ocorrendo: ninguém cita ninguém,
pelo menos por aqui.
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