Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Fabio Lucas

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

 

Natural de Esmeraldas (MG), da safra de 1931. Autor de importante e vasta obra de Crítica literária. Professor na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, sofreu perseguições durante os piores anos da ditadura militar (1964-1975), vindo a perder a Cadeira em que lecionava. Em 1997, quando da comemoração de seu aniversário, em homenagem prestada pela grande imprensa de Minas Gerais, o escritor e jornalista Roberto Drummond resumiu um conceito geral, quando se referiu a Fábio Lucas como o que há de melhor na Crítica no Brasil, ao lado de Antônio Cândido e de Wilson Martins. Lecionou Literatura Brasileira em várias Universidades no exterior. Ex- Diretor do Instituto Nacional do Livro. Ex- Presidente da União Brasileira de Escritores/ Seção de São Paulo, por vários mandatos eletivos. Integra a Academia Mineira de Letras bem como a Paulista.

Tem sido convidado para integrar Comissões Julgadoras de prêmios literários de projeção internacional, como, entre outros, o Prêmio Camões (Portugal-Brasil) e o Prêmio Casa de las Américas (Cuba). 
Sua obra compreende, entre outros títulos: O Caráter Social da Literatura Brasileira (Prêmio Jaboti 1970); Razão e Emoção Literária (Prêmio “Os Melhores de 1982”, da Associação Paulista de Críticos de Arte); Crítica Sem Dogma (1983); Vanguarda, História e Ideologia da Literatura (1985); Mineiranças  (1991).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

 

Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Fabio Lucas

     

    A CRIAÇÃO LITERÁRIA E O PAPEL DO CRÍTICO NA ANÁLISE DAS OBRAS



     

    Diário do Nordeste
    18/7/99

O professor, ensaísta e crítico literário Fábio Lucas expõe, de modo objetivo e incisivo, seus juízos acerca da criação literária e o papel do crítico tanto na análise das obras quanto na formação de um padrão estético. Autor de diversos livros, é um profundo estudioso das produções brasileiras em prosa e verso. A respeito do romance nordestino, por exemplo, escreve: “Já o romance nordestino, alimentado pelo subdesenvolvimento e miséria da região, associa muito bem a herança da cultura brasileira, latifundiária e patriarcal, ao espírito acumulativo do capitalismo incipiente, gerador de miséria e desemprego, isto é, do “exército de reserva” necessário às fases de prosperidade e à cobiça do lucro. Tal conjunto de romances do Nordeste constitui o documento mais enfático da disparidade social do País, pois a situação geográfica e histórica da região, de uma pobreza heróica e dependente, facilmente pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto. Ali foi denunciada a atuação simultânea das forças telúricas e das instituições humana para o esmagamento do homem e para tornar mais pronunciado o desnível entre as classes.” ( O caráter social da ficção no Brasil, 2ª edição, Ática, p.46) a seguir, em conversa com o editor Carlos Augusto Viana, ele expõe seus conceitos de belo, de produção cultural, os caminhos de sua formação intelectual, sua compreensão do painel da literatura contemporânea. 



 

Fortaleza, Ceará - Domingo 18 de julho de 1999 
 

O professor, ensaísta e crítico literário Fábio Lucas expõe, de modo objetivo e incisivo, seus juízos acerca da criação literária e o papel do crítico tanto na análise das obras quanto na formação de um padrão estético. Autor de diversos livros, é um profundo estudioso das produções brasileiras em prosa e verso. A respeito do romance nordestino, por exemplo, escreve: “Já o romance nordestino, alimentado pelo subdesenvolvimento e miséria da região, associa muito bem a herança da cultura brasileira, latifundiária e patriarcal, ao espírito acumulativo do capitalismo incipiente, gerador de miséria e desemprego, isto é, do “exército de reserva” necessário às fases de prosperidade e à cobiça do lucro. Tal conjunto de romances do Nordeste constitui o documento mais enfático da disparidade social do País, pois a situação geográfica e histórica da região, de uma pobreza heróica e dependente, facilmente pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto. Ali foi denunciada a atuação simultânea das forças telúricas e das instituições humana para o esmagamento do homem e para tornar mais pronunciado o desnível entre as classes.” ( O caráter social da ficção no Brasil, 2ª edição, Ática, p.46) Seus conceitos de belo, de produção cultural, os caminhos de sua formação intelectual, sua compreensão do painel da literatura contemporânea. 



Viana - Por que, dentre as possibilidades da produção textual, a escolha pelo exercício da crítica literária? 

Lucas - Eu, que tive uma alfabetização precoce, sou leitor desde criança. Fui alfabetizado aos cincos. Minha família tinha um certo orgulho dos que se dedicavam à leitura. Por isso, talvez, desenvolvi muito a atividade de leitura. E, como eu era bastante inibido, não me sentia muito à vontade na área da criação. Apreciava mais comentar a obra dos outros. E, pouco a pouco, fui aperfeiçoando a técnica de comentar as obras alheias; ou seja, como a arte poética, advinda de outros criadores, invadia a minha sensibilidade. 

 

Viana - E nunca houve uma investida, mais incisiva, na criação poética ou ficcional? 

Lucas - É claro que, depois, quando me senti mais livre, mais adulto, deu-me, também, a vontade da criação. Publiquei um livro, na coleção Jovens Inteligentes, da Editora Global. Trata-se de uma narrativa, sob o título: A mais bela história do mundo. Teve uma grande receptividade, tanto do ponto de vista dos leitores quanto da crítica. Essa mais bela história era o amor... 

 

Viana - E depois? 

Lucas - Depois eu fui me organizando noutro sentido. Houve, também, determinações familiares, pois fui encaminhado a um colégio interno, onde se deu a minha formação intelectual. Meu pai, de certa forma, colocou-me em direção ao Direito. Formei-me em Direito e cheguei a ser doutor, pois defendi tese em Direito e Ciências Sociais. Mais tarde, lecionei, na área de Economia, após defesa de uma tese, a disciplina Economia Política e História das Teorias Econômicas. Mas isso correspondia ao lado racional da minha atividade intelectual, pois nunca deixei, em todo esse tempo, a literatura. Quando do golpe militar, eu tive que lecionar no exterior. E, para mim, considerando as circunstâncias, era muito mais fácil na área da literatura. E, como eu também já houvera me especializado em Teoria da Literatura na Universidade de Minas Gerais, senti-me mais à vontade em aulas para algumas universidades norte-americanas. 

 

Viana - Por que o exílio? 

Lucas - Em verdade, a gente nunca sabe. O que eu sei é que tirara uma licença-prêmio na Universidade Federal de Minas Gerais, fizera uma reforma na minha casa e estava sem dinheiro. Então, usei esse tempo para dar um curso na Universidade de Brasília, ocasião em que, em 69, cassaram os meus direitos de magistério. Aí eu tive que me desfazer do meu patrimônio e, juntamente com a família, partir para o exterior, uma vez que não podia mais trabalhar no Brasil. 

Viana - A partir daí, inverteram-se as posições entre Direito, Economia e Literatura? 

Lucas - Sim. Se, antes, fazia literatura por diletantismo, passei a dedicar-me a ela por inteiro, cabendo, agora, o deleite à Economia. 

 

Viana - Qual a sua linha teórica? 

Lucas  -As fontes literárias, em geral, são determinadas por modas. Houve uma época em que estudei muito o Estruturalismo; depois, concentrei-me mais no Estruturalismo Cultural, como também na Sócio-Lingüística. Assim, a minha análise intrínseca do texto, compreendia não só o texto mas as ligações contextuais. 

 

Viana - A princípio, a crítica literária era de caráter impressionista, destacando-se, por exemplo, a obra de Alceu de Amoroso Lima. Com o tempo, impõe-se a crítica universitária. Acha indispensável a formação acadêmica para o exercício da crítica? 

Lucas - Claro que sim. Exerci a crítica literária em alguns jornais, em Belo Horizonte, quando ainda havia o rodapé literário. Depois, o Otto Maria Carpeaux convidou-me para substituí-lo no rodapé literário do jornal O Correio da Manhã - um dos mais importantes do País. Produzi muitos estudos que me deram uma grande comunicação com o público. Isto foi uma escola de crítica; mas, para mim, a crítica literária tem uma função normativa do gosto literário, porque cristaliza, através de alguém capacitado, as noções mais purificadas do literário nas obras publicadas. 

 

Viana - Crê na cumplicidade crítico e leitor? 

Lucas - Os leitores se ligam muito nas palavras do crítico. Muitas vezes compram um livro, como também deixam de comprá-lo, segundo as indicações do crítico. Desse modo, o crítico fixa padrões de gosto, que determinam, bem ou mal, o consumo desse produto cultural que é a literatura. Ultimamente, os grandes órgãos da imprensa estão tomados pelos efeitos do que se chama Indústria Cultural, que, em verdade, é o mais terrível ataque à qualidade da produção cultural. 

 

Viana - Por quê? 

Lucas - Porque pela Indústria Cultural o regente da qualidade é determinado pela quantidade. Obras são infiltradas, através de múltiplos artifícios, para vender mais, em listas de mais vendidos, por exemplo. As editoras costumam falsear a demanda, apontando o livro como esgotado, criando um noticiário consumista em torno da obra literária. Há autores que, inclusive, já publicam o livro a partir de uma 2ª edição, com o fim de criar sobre ele uma demanda ilusória. Esses artifícios concentram-se na vendagem da obra literária. 

 

Viana - E a crítica? 

Lucas - A crítica não deve se preocupar com isso, mas com obras que constituam o orgulho da capacidade humana. A literatura é uma das múltiplas faces, através das quais o homem tenta romper a terrível consciência da morte. Há uma esperança de sobreviver além de sua capacidade física. Assim, a obra exerce uma função social, porque traduz a continuidade do espírito humano. 

 

Viana - Como vê a qualidade da literatura produzida, hoje, no Brasil? 

Lucas - Há faixas de consumo da obra literária. Há autores, por exemplo, que se destinam a determinado público; outros, a um mais refinado, mais exigente. Muitas as pessoas se confundem, achando que o público que lê é homogêneo. Há, sim, os que consomem esoterismo, sexo, auto-ajuda; bem como os que estão presos ao sabor artístico da obra consumida. O grande consumo de um livro não implica, necessariamente, sua qualidade. A literatura brasileira, hoje, felizmente, não é regida por padrões rígidos. O que há, hoje, é uma desconcentração muito grande. Aqui, no Ceará, há grandes poetas e ficcionistas, mas completamente desconhecidos em outros Estados; o mesmo se dá no Rio Grande do Sul - e assim por diante. O Ceará e o Rio Grande (onde estive recentemente) são pólos culturais da maior importância; mas, é bem possível, que não circulam por aqui as obras que lá circulam, e vice-versa. Um analista criterioso, ciente da imensidão do País, tem que fazer essa pesquisa. Há um vício (principalmente por parte da grande imprensa) de considerar o eixo Rio-São Paulo como determinante para o padrão de gosto da nação. 

 

Viana - O que é um equívoco... 

Lucas - Claro. O Manoel de Barros vive lá em Mato Grosso. Sua obra atinge o público brasileiro sem que ele haja se deslocado de sua cidade. O mesmo se deu com Adélia Prado; antes, com Mário Quintana; muito antes dele, com Érico Veríssimo. Hoje há desconcentração é muito maior. E isso é benéfico: grandes escritores nas mais diversas regiões do Brasil. Resta-nos realçar os que podem se tornar grandes autores nacionais. - Como divulgá-los melhor? 

 

Viana - Há, hoje, uma luta surda entre a grande imprensa e a chamada imprensa alternativa; mas que criou uma rede de informação muito complexo. Recebi uma publicação, de Brasília, na qual havia o endereço de mais de 100 veículos destinados à divulgação da poesia. Isso implica o grande contado entre os autores. O que é muito bom, pois estamos, não só na literatura, mas na política, na economia, dominados por uma ditadura da informação - um princípio de massificação regido pelo mercado, como se o mercado fosse a última instância para determinar quem presta e quem não presta. Mas o mercado é, muitas vezes, injusto e até ridículo. Felizmente, as universidades têm exercido um papel de combate a isso, pois, muitos professores, mais bem informados, mais investigadores, estão levando a seus discípulos a conviver com textos mais refinados. Isso é uma maneira de escapar à tirania dos órgãos de comunicação de massa.- Concorda com o fato dos livros didáticos, destinados ao estudo do Português, utilizarem, com freqüência, textos de compositores da MPB? 

Lucas - Isso faz parte dessa massificação. É a relação entre qualidade literária e consumo. Como o compositor popular tem mais acesso a um grande público, há, muitas vezes, a ilusão de que sua obra tem qualidade, já que é aplaudida por um número considerável de consumidores. Mas esses astros são também um produto da Indústria Cultural; são, em sua maioria, deuses com os pés de barro, em pouco tempo falecem. A taxa de mortalidade de grandes nomes nessa área é muito grande. Quase nunca ressuscitam, pois a moda, mais do que passageira, é cruel. Pode-se recuperar do anonimato um livro (quem sabe, por acaso, encontrado num sebo) do meio do século, de séculos passados. Após a leitura, vêm as reflexões; outras pessoas começam a escrever sobre ele; uma editora pode por ele se interessar; e, desse modo, é possível restabelecer seu contato com o público. Mas uma obra, fruto de uma moda, jamais renasce. 
 

Viana - Há muitos casos assim... 

Lucas - Aqui, no Brasil, já houve autores que tiveram todo o aplauso da imprensa e do público... 

 

Viana - José Mauro de Vasconeles... 

Lucas - Sim, o José Mauro... Veja-se outro caso: o de Humberto de Campos. À sua época, era ele quem comandava a opinião pública. Quando fui presidente do Instituto Nacional do Livro, procurei professores para uma pesquisa acerca das obras de Humberto de Campo visando à edição de uma seleta. Mas ninguém se interessou pelo assunto. Quer dizer, o tempo apagou, pelo menos enquanto fenômeno literário, o Humberto de Campos. Ele permanece apenas como fenômeno da Sociologia da Literatura. É preciso ver com cautela a demanda de um determinado momento, porque, por seu brilho, ela cega as pessoas. 

 

Viana - Hoje, o que é qualidade? 

Lucas - Posso, apenas, dar-lhe algumas pistas, pois o Brasil é muito diverso. Mas, por exemplo, aqui, no Nordeste, eu tenho chamado a atenção dos ouvintes, em muitas conferências, para um ficcionista sergipano: o Francisco Dantas, autor de um grande romance - Os Desvalidos. Escrevi a respeito dele numa revista da Portugal. Uma das personagens de Os Desvalidos é o Lampião; mas visto sob o ângulo da tortura psíquica. É o mito que se dissolve. Na área do ensaio, recebi, vindo de Itabuna, (Bahia) um trabalho sobre as cartas de Pero Vaz Caminha. É uma realização fascinante, uma análise miúda; além de uma carta de um navegador anônimo. O Brasil é surpreendente, por isso não podemos nos deixar enganar pela falsa produção de mitos. 

 

Viana - E o padrão estético? 

Lucas - Não há mais escolas literárias. Temos, pelas circunstâncias históricas, pela própria tecnologia, a condenação a um isolamento muito grande. Disso resulta uma figura extremamente nociva à configuração do gênero humano: o narcisismo. O sujeito só olha para si e não vê a constelação na qual está inserido. É uma quebra do sistema literário, pois as pessoas só falam de si, são incapazes de citar um colega, uma tendência ou não defendem pontos de vista sobre a literatura. Colecionei uma série de entrevistas dos mais diversos escritores brasileiros e surpreendeu-me o fato de que nenhum deles ousou falar de um seu contemporâneo. O que não ocorre em Portugal, uma vez que lá o sistema literário está intacto, pois os autores portugueses são capazes de tecer juízos acerca de seus contemporâneos; no Brasil, ao contrário, o que há são estrelas solitárias. No nosso modernismo, era diferente: Bandeira, Drummond, Mário de Andrade, dentre outros, incluíam seus contemporâneos no sistema literário. 

 

Viana - Concorda com a denominação Pós-Modernismo? 

Lucas - De jeito nenhum. Não há pré ou pós. O sujeito é ou não é. A acuidade do escritor passa pelo que ele é; e não, pelo que ele vai anunciar. Nenhum escritor sabe que virá à sua frente, tampouco é um pós de qualquer coisa. Isso é uma violência da neurologia - a chamada lógica do tempo. Dizem que a pós-modernidade se caracteriza pelo índice de citação; mas isso não está ocorrendo: ninguém cita ninguém, pelo menos por aqui. 

 

Direto para a página de Carlos Augusto Viana

 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Fabio Lucas


Angústia da dependência
 

Subserviência a modelos estrangeiros impede que se forme um cânone nacional.
A fisionomia da dependência cultural pode ser buscada nos diferentes aparelhos em que circulam os comandos ideológicos. 
Por exemplo, na mídia e nas universidades.


    (Caderno Mais! 
    Folha de São Paulo, 29.12.96)

 
         Borges, na entrevista, sustenta teses estúpidas como: os negros constituem raça inferior, pois os europeus foram à África e dominaram os seus povos. E estes não foram capazes de ir à Europa e submeter os europeus. A América Latina? Não produziu até hoje coisa que valha a pena: "Podría borrarse de la historia y casi no se notaría". E como não poderia deixar de ser, conclui que "norteámerica si", pois à humanidade fariam falta E. A. Poe e W. Whitman.

 

     É sabido que a ideologia consiste em transformar em caráter de "natureza humana" a necessidade puramente histórica, transitória, de um modo de produção. Pode repousar como uma sombra confusa, uma imagem obscura na consciência, como se fosse uma visão do mundo implícita e enganosa. É dessa atmosfera de obscuridade que a dominação extrai seu sustento.

     Está em discussão o destino e o formato das universidades, experiência mais ou menos recente no Brasil e, sob muitos aspectos, malograda, pois não criou uma geração de cientistas para repensar as tarefas tecnológicas do país, nem se caracterizou pela renovação dos estudos das humanidades.

     O "provão" se mostrou inadequado para medir o produto que a universidade oferece ao público, em face de seus custos sociais.

     O governo e a UNE (União Nacional dos Estudantes), polarizados, militaram em duplo equívoco: o governo, na vã tentativa de quantificar a qualidade, em vez de empenhar-se pela qualificação da quantidade; a UNE, ao externar o temor de os estudantes se tornarem o ponto de ruptura do falso. O vício é metodológico. O valor cultural é um conceito que não está apto a passar pelo teste da verdade, mas pode ser reconhecido na alternativa entre o autêntico
e o falso.

     Acompanhemos alguns exemplos de colonialismo na área das letras nessa era de degeneração da cultura e de anarquia de valores. É precisamente aquela área que mais interessa, porque na tradição ocidental em que nos inserimos a herança do espírito está associada à língua e à literatura. No dizer de Ernst Robert Curtius, "nada pode substituí-la. Nem filosofias, nem técnicas, nem sistemas políticos e econômicos".

     A reminiscência (Mnemósica), segundo o mito grego, é a mãe das musas. No dizer de Viatcheslav Ivanov, "a reminiscência é um princípio dinâmico; o esquecimento é cansaço e interrupção do movimento, declínio e retorno ao estado de uma relativa indolência".

     Vê-se que o ensino universitário, entre nós, se deblatera entre dar ao estudante o acesso ao passado literário, fundador de nossa expressão escrita, ou acompanhar a vida social da literatura.

     No primeiro caso, os resultados têm-se mostrado modestos se comparados com os esforços dos autodidatas do século passado.

     Somente agora, sob a proteção de algumas editoras universitárias, aparece a revisão do "corpus" literário herdado, mesmo assim com certa timidez. Exemplo: finda-se o ano de 1996 e as celebrações do terceiro centenário da morte de Gregório de Matos têm-se mostrado inexpressivas. Nem sequer se organizou uma comissão de especialistas para que, à luz dos variados códices da obra do poeta, se estabeleça uma coleção mais confiável dos seus poemas. Problemas de ecdótica e de crítica textual estão por ser resolvidos. Igual comentário caberia à passagem do centenário do nascimento de Cornélio Pena, a respeito do qual se nota incompreensível vazio, nos jornais e nos cursos de letras.

     Questiona-se hoje a validade do movimento modernista, à medida que interrompeu um processo de formação de um projeto literário brasileiro, advindo dos árcades, do romantismo e do realismo, que encontrava em Raul Pompéia, Lima Barreto, Augusto dos Anjos e Gilka Machado traços de modernidade e de avanço que foram desprezados. Pompéia, porque suas "Canções em Metro" denunciam a crise da metrificação; Lima Barreto, porque inclui a população periférica ao centro da narrativa; Augusto dos Anjos, porque ousa poetizar o idioma da ciência; e Gilka Machado, porque outorga à mulher uma voz autônoma na poesia. É a tese sustentada por Heitor Martins, que observa: "A invasão futurista de 1922, de certa maneira, provoca uma implosão da modernidade criada dentro do projeto literário brasileiro tradicional, que vimos descrevendo, substituindo-a pela importação das vanguardas. A modernidade deixa de ser uma resultante do progresso local para ser uma união hipostática com o progresso alheio".

     Quanto ao segundo caso, de os institutos acadêmicos tentarem reproduzir mecanicamente a vida social da literatura, estampada nos jornais, é só observar que a mídia, de certo modo, comanda algumas deliberações universitárias. Assim, basta que um jornal de grande circulação insista em certos autores, que aqui aportam precedidos de recomendação externa, para que professores, de forma acrítica, passem a tornar obrigatória a leitura dos beneficiados pela publicidade. Desta forma, não se forma um cânone literário derivado do processo brasileiro.

     Boa parte desses mestres passa por contrabandistas de um saber desvalorizado, pela pura incapacidade de ir às fontes nacionais.

     Macaqueiam a coreografia da imitação cega, associando-se à elite que dança o minuto da fartura numa
sociedade terrivelmente desigualitária. Hoje, a senha para ingressar nesse baile é a globalização, numa espécie de embriaguez pela simples contemplação do rótulo da garrafa.

     Consultando a lista das obras a serem lidas pelos pós-graduandos da USP, encontramos uma avalanche de textos sobre a "pós-modernidade": "La Misère du Monde", de Pierre Bourdieu, "The Closing of the American Mind'', ``Teoria das Inteligências Múltiplas" (A. Gardner) e -pasmem!- "Inteligência Emocional", de Daniel Goleman. Só faltam Lair Ribeiro e Paulo Coelho.

     Reputados professores da USP tornam obrigatória a seus alunos a leitura da equivocada obra de Harold Bloom acerca do cânone ocidental, um trabalho certamente dirigido ao público estadunidense. Enquanto isso, os estudantes brasileiros daqueles mestres jamais ouviram falar de Inocêncio, de Sacramento Blake ou até mesmo de Otto Maria Carpeaux e Rubens Borba de Moraes. Especializam-se os alunos em notícias de jornal bafejadas pela aura de modernização ou de "pós-modernidade".

     Como se sabe, Inocêncio Francisco da Silva, auxiliado por Pedro Venceslau Brito Aranha, J.J. Gomes de Brito e Álvaro Neves, fez o "Dicionário Bibliográfico Português - Estudos Aplicáveis a Portugal e ao Brasil" (1858-1923) em 22 volumes. Em 1922, Martinho da Fonseca publicou os ``Aditamentos'' e, em 1972, Ernesto Soares publicou a ``Guia Bibliográfica''. Já Augusto Victorino Alves Sacramento Blake publicou no Rio, no período 1883-1902, pela Imprensa Nacional, o "Dicionário Bibliográfico Brasileiro", em sete volumes (reimpressos fac-similados em 1970, pelo Conselho Federal de Cultura). Quanto a Otto Maria Carpeaux, produziu para o Serviço de Documentação do MEC, em 1949, a "Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira", que teve, a seguir, várias edições revistas e aumentadas. Finalmente, Rubens Borba de Moraes nos deu, em 1969, a "Bibliografia Brasileira do Período Colonial - Catálogo das Obras dos Autores Nascidos no Brasil e Publicados até 1808".

     Para que serve o cânone? Em termos gerais, para garantir uma tradição. Curtius assevera que a palavra ocorreu pela primeira vez no século 4º d.C., no sentido de "relação de escritores". No dizer de H. Oppel, na obra "Kannon", foi o grande David Ruhnken (1723-98) que introduziu o conceito de cânone na filosofia. 

     Podemos dizer que esse conceito ampara a versão da cultura como recordação iniciadora. 

     Prosseguindo a informação sobre a dependência, verifica-se que o estado de subserviência à cena externa se manifesta em microdecisões do cotidiano, carregadas de significado. Retratam o espírito de alienação em que se encontra a consciência ingênua. É o que tivemos durante o período do regime militar, quando se concedeu o maior prêmio literário já havido entre nós a Jorge Luis Borges, que aqui esteve para cortejar os agentes do despotismo brasileiro. Nossos contribuintes viram os seus impostos convertidos em premiação de um escritor que não pronunciava nem uma palavra sequer em língua portuguesa, mas cultivava com requinte e esmero, o seu inglês ou o seu francês.

     Escritores jejunos de nossa cultura, como Borges e seu amigo Bioy Casares, recebem impensado apoio da mídia, que lhes oferece todos os canais, geralmente interditos aos escritores brasileiros.

     Borges teve memorável passagem pelo Chile de Pinochet e concedeu desastrada entrevista à revista "Ercilla" (15/10/1975), naquele período em que autores como García Márquez, Vargas Llosa e Julio Cortázar eram censurados. A revista, aliás, registra o fato com humor funerário: "Y en Chile García Márquez será condenado a `Cien A¤os de Soledad', Mario Vargas Llosa no contará más su `Conversación en la Catedral' y Julio Cortázar no podrá sortear los coches de la `Autopista del Sur' para cruzar la cordillera...".

     Borges, na entrevista, sustenta teses estúpidas como: os negros constituem raça inferior, pois os europeus foram à África e dominaram os seus povos. E estes não foram capazes de ir à Europa e submeter os europeus. A América Latina? Não produziu até hoje coisa que valha a pena: "Podría borrarse de la historia y casi no se notaría". E como não poderia deixar de ser, conclui que "norteámerica si", pois à humanidade fariam falta E. A. Poe e W. Whitman.

     Curiosamente, um aluno brasileiro, Antônio Fornazzaro, nos Estados Unidos, ao notar sua completa ignorância da literatura brasileira, ofertou-lhe um exemplar de "O Alienista", de Machado de Assis... em inglês. Voltando ao prêmio a Borges: não consta que a feroz ditadura argentina tenha nem sequer sonhado em distinguir qualquer autor brasileiro. Mais uma vez comportamo-nos como macacos perante a intelectualidade portenha. O complexo de inferioridade tem-nos levado a situações constrangedoras.

     Reitera-se que as letras perderam a sua aura em nosso tempo e que o escritor, na era da massificação, sofre um processo de hibernação. Revistas e jornais de larga circulação parecem sucursais de equivalentes norte-americanos. Praticamente excluíram os autores brasileiros dos destaques dos chamados cadernos culturais. Estes, na verdade, se tornaram refúgio das estrelas e notícias do "show business", confundindo cultura com espetáculo.

     É bem verdade que os dois grandes jornais do Rio de Janeiro voltaram a oferecer semanalmente os suplementos literários, exemplo que esperamos seja seguido em São Paulo, que dispõe de um suplemento aos sábados. Que os veículos de comunicação de massa estejam cerceados pela doutrina consumista ainda se entende. Também eles são reduzidos cada vez mais a mercadorias e forçados a seguir as leis do mercado. Mas a Academia Brasileira de Letras, que ostenta notável patrimônio proveniente tanto do setor privado quanto do público, não tem dado mostras de preocupação cultural. Onde estão as publicações acadêmicas, tão valiosas no passado?

     Parece que se vai esgotando a harmonia entre a mídia impressa e a literatura. Por força do conteúdo efêmero e volátil do noticiário jornalístico, privilegiam-se subgêneros da produção narrativa, de imediato impacto sobre o público, como a biografia, a reportagem, o depoimento pessoal, as memórias. Enfim, toda uma textualidade limítrofe da historiografia. A Academia Brasileira de Letras esteve envolvida, não faz muito, num dilema entre premiar as recordações de um político e a biografia de um empresário.

     Nenhuma obra de criação esteve sob escrutínio.

     A Academia, como instituição literária, deveria se tornar um núcleo de resistência à avalanche vulgarizadora da cultura e ao destroçamento das universidades. Jogar seu prestígio na instauração de cursos e prêmios que estimulassem os escritores e abrissem canais para os iniciantes. Precisaria firmar um padrão de excelência.

     A missão do escritor, parece-nos, consiste em reconquistar o seu lugar no grande curso da cultura. A formação de um cânone moderno dependerá muito da disposição entre os escritores de adotar um processo brasileiro de literatura. Isto significa: primeiro, conhecimento de nosso passado literário, pois é na continuidade que o cânone se cristaliza; segundo, prática de intercâmbio cultural com as outras nações, de tal modo que as agregações externas sejam enriquecimento e não servidão; terceiro, despojamento da consciência ingênua, que se deslumbra com a presença do estrangeiro, a ponto de atribuir qualidade àquilo que não passa de diferença.

     Conforme deixamos expresso na obra "Vanguarda, História e Ideologia da Literatura", ao distinguirmos a vanguarda autêntica da falsa, esta funciona como elo de um circuito que alimenta a causação circular da dependência, transformando o nacional em multinacional e tornando um triunfo aquilo que não passa de ocasional embaraço histórico, de transitório fruto de um modo de dominação.



Fábio Lucas é crítico literário, professor e presidente da União Brasileira de Escritores/SP.

 

 

Direto para a página de Borges

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Fabio Lucas


    ARICY, ENTRE O NADA E O ETERNO RETORNO
     
     
           Com  Mais que os Nomes do Nada  Aricy Curvello confirma a reputação de um dos melhores poetas de sua geração. A temática amadureceu. Desde o título, o poeta confessa a atração pelo nada. Mas o que prevalece é a crença no eterno retorno. “Recomeçar” é o verbo que comanda a idealização do mundo que o poeta nos tansmite. 

A força filosófica constante da noção de que viver é estar vivendo, um gerúndio que indica continuidade da ação, alimenta os fragmentos de inspiração tanto lírica quanto épica.

E´ como se se dissesse: o amor não acaba e a sociedade humana (Brasil) caminha, a despeito de tudo, para a sua perfeição. Enquanto isto, o olho crítico devassa os estragos que os inimigos do amor e da justiça produzem.

O poeta assume a condição de sua temporalidade: “sobre o fio da navalha dança/ o vacilante coração do instante.” (p. 25)

Gosto do final do poema “A Salina”, que diz:

           “o que buscais aqui não está, mas tentai
             recuperar o que braceja em alto mar.

             tentai ser outra vez, intactos.
             vossas pegadas a areia apagará.
             o sal irá cobrir os pássaros.
             depois, a relva cantará. “ 
                        ( p. 65/66 )

Essa inversão funcional faz lembrar os truques imagísticos dos surrealistas.

O poeta continua a crer na força invisível da expressão: “ a palavra: longe de se bastar/ só se completa designando o que a ultrapassa” ( poema  “itens”, p. 82). A concepção alimenta a obra:  “ A criação do que existe é uma tarefa infinita”  (poema “Cézanne”, p. 89). Algo que se reforça no término do poema “Toda Quimera se Esfuma”:

             “mais branco é teu coração recomeçando.
             ser é uma invenção constante. “     ( p. 94 ) 

Os  poemas repetidamente retratam uma vocação aforismática, mostram-se sentenciosos. O espírito que os anima pode ser localizado neste final expressivo de “Caminho”:  “nenhum ponto de chegada existe/ existir é o próprio caminho “ (p. 88). Lembro o velho conceito de Antônio Machado, “camiñante  no hay camino ...” 

“Mais que os Nomes do Nada” oferece ao leitor duas faces formais do mesmo poeta: o experimentalista, o simpatizante dos recursos gráficos como auxiliares da expressão verbal, e o produtor de peças discursivas, abastecidas pelas figuras e imagens com que a Retórica intensifica a expressão poética. Em ambos os casos, a vitória é patente. Na primeira hipótese, exemplifico com “Que não transborde” e “Ulisses no Mar de  Nomes”. Na segunda, aí estão “A longa viagem”, “Patins d’ alma” e  “O Náufrago”.

Existe ainda o insólito, consubstanciado em metáforas ousadas e imagens absurdas. E´o caso de “E-U”.

 Por fim, uma arte poética, que representa o tributo que o poeta presta à metalinguagem: o belo poema “ Às Vezes “ (p. 19).

Rico na temática, audacioso nas formas poemáticas, oscilante na visão de mundo, “Mais que os Nomes do Nada”  suscita questões ao leitor. Não traz respostas, mas ajuda  o percurso de quem as procura. Mais um belo logrado experimento de Aricy Curvello.

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Publicado em: 

  1. Hoje em Dia, (Cad.) Cultura, Belo Horizonte, 15 dez. 1996.
  2. Dois Críticos Analisam a Poesia de Aricy Curvello. Correio, Correio Revista, Uberlândia, 5 fev. 1997.
  3. Em Revista n.23 ano XXIII ,Editora do Escritor, S. Paulo, 1998, pp. 76-78.

  4. Literatura n. 11 ano V, Brasília, dez. 1996 pp. 31-33.
  5. Correio do Sul, Varginha, 23 jan. 1997.
  6. O Pão n.38 ano VI, Fortaleza, 28 fev. 1997. 


 

 

 

 

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14/09/2007