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Francisco Perna Filho


 

Vestígio
 

 

Ubíquo Mar,
sedento de barcos,
de seixos e seios.
Vesgo olhar de conchas,
tração de maresia.
Mar de algas


ondeando em manchas de ódios,
areando em arpões sonolentos.
(recolhendo-se à espuma)


travesso mar,
de porões encardidos,
golpeando os náufragos
que a ti se lançam.
Mar de ferrugem,
de fuligem,
de ressaca.
Vestígio.
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Claudio Willer

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

Transformação


Peixe na linha,
rima de pescador.
Encontro de águas e arco-íris.
Rio quebrado nas voltas dos olhos,
no piscar dos barcos,
na manga de chuva.
Perpetuado no mormaço da existência.
Os olhos observam o ritmo:
na rima quebrada de peixe fugido,
na desalegria de morte escapada,
na deselegância de mesa-objeto, sem pão.
O rio continua
no riso pálido do pescador extático,
no hiato das culturas,
na incontinência dos jovens poetas.
Linha, água.
Peixe, anzol.
Pescador.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Álvaro Pecheco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

Errabundo


Eis meu corpo,
não vos ofereço.
Santificado não fora,
tornara-se errabundo e fértil.


                    Feito de todos os metais,


fora navegante sempre,
conquistador.
Buscou n’alma o outro;


                    na alegria, a estrada;


na gruta, o vício.
A vós, nada pode ofertar.
Livre de toda vestimenta,
sempre foi sombra
e com as sobras do mundo
fez sua última ceia.
De vós nada quer.
Em mim, somente em mim,
celebra o ócio.
Desconhece qualquer outra sorte
que não o vício.
Com ele celebro o mundo e sou.
De vós nada quero.
 

 

 

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albano Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

Ecos


Habitando os cafés
e refletindo as manhãs
com restos da noite,
ambientou-se ao não-ser,
traçou a inexistência,
ficou entre parênteses.
Silente e absorto,
refez os becos
de um dia oco e pesado.
Inquieto,
alimentou-se de acasos:
sorveu as praças,
o cinza das chaminés
e amargurou-se com o lamento
pulverizado dos meninos
da grande cidade.
Chorou a salobra
segunda-feira,
feita de vagidos
e tormentos.
Desse modo,
por muito tempo,
passou a repetir
as noites,
nos olhos avulsos
do esquálido cão,
que cismara em perseguir.
Um dia,
ao tentar recompor sua história,
morreu de esquecimento.
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Rubens Ricupero

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

Desconforto
 

 

Para o Poeta Manoel de Barros

 

 

I


Vazio de cidade,
há uma desordem em mim.
Contemplador de desvãos,
vou esculpindo infrutíferas buscas.
O que há de encontro na minh’alma
é só o apóstrofo.
Busco desvencilhar-me da ferrugem da estrada,
do ferrolho das minhas ausências,
quando substantivo a vontade.
Há em mim doença de lagarta,
predisposição para casulo,
pretensão para eterno.
Voar é o meu destino.
Rastejante, carrego primórdios,
contemplo a estrada.



II


Toda estrada traz o peso dos passos,
a solidão da espera,
a aflição da permanência.
Toda estrada atende determinações.
Carrega um amargor de épocas,
apêndice de partidas.
Toda estrada transporta um ser aprisionado,
voz de encontro,
razão para perder-se.
Intensifico minha pretensão de perpetuação.
Rastejante, apresento-me à parede.
há um desejar de minha parte:
de gestar esta metamorfose.
Há uma rejeição paredal.
Apresento-me ao fio elétrico,
há uma mútua atração,
uma revelação primal:
a técnica natural se afeiçoa da modernidade
para parir um vôo de destinação.
A vida se faz múltipla,
apesar da indiferença humana.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Ascendino Leite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

New York


o pássaro
vê a cidade
Lentamente/ letalmente
Mergulha.
O pássaro
É de metal
E só percebe o próprio vôo,
Desconsiderando as cores
E os sonhos que carrega.
O pássaro vê
Mas não ouve.
A cidade ouve
Mas não vê.
A vida imita a arte:
O pássaro explode
Em chamas,
A cidade
Chora escombros.
 

 

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Francisco Perna Filho


 

Insone


As ruas nunca dormem.
Não há tempo para isso,
guardam os prédios que se esvaem em sono vertical.
Os porteiros não dormem nunca.
Não há tempo para isso,
guardam os donos nidificados
em sonhos de existência.
As mães nunca dormem,
velam os filhos errantes em bares e becos obscuros.
Os famintos,
os guardas,
as prostitutas,
assim como os cães,
exercem a insônia da sobrevivência.
Pelos olhos insones de todos estes
meus olhos vêem o inominado,
o imaterializável.
E, por muito ver,
meus olhos nunca dormem.
 

 

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

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Myriam Fraga