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Gilson Nascimento


 

Segundo soneto aos invernos de outrora


Voltar, olhos no tempo, vendo a chuva
Do jacaré na bica se banhar
Plantar olhos no céu, na nuvem turva
Rir e do riso ir ao gargalhar


Ver de novo seu pai, bem humorado
Tangendo a água que invadia o bar
E o povo alegre, rosto transmudado
Dizer tempo bonito! Só no olhar


Névoa a linha da serra debruando
Beijando o verde, a ele se doando
Numa carícia leve como arminho


Lembranças gratas que afloraram agora
Porque a chuva que cai, forte, lá fora
Levou-me a queridíssimo caminho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Gilson Nascimento


 

Terceiro soneto aos invernos de outrora


Caminho que se perde no distante
Passado que eu supus haver morrido
Mas que surge, eu o sinto nesse instante
Dos pingos dessa chuva ressurgido


Cantar de chuva me comove, sim
Porque mergulha nalma sem demora
É cantiga - saudade, não tem fim
É sempre um despertar do meu outrora


Eu te bendigo, chuva boa, amiga
Minha emoção me roga que te diga
Um presente trouxeste – o meu passado


E ao te sentir de leve o abrandar
Vejo o HOJE de mim se aproximar
E do meu lume o sonho é apagado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

Gilson Nascimento


 

Vento – carinho


O mesmo vento - carinho
Que soprava antigamente
Entrando no meu caminho
Arrepia de mansinho
A nostalgia do ausente.


No arrepio toma conta
Da alma, do coração
Me percorre o corpo todo
Eu era velho, sou novo
Do vento à terna canção.


Mil saudades acordando
Num forte reavivar
Essa brisa vai girando
Ora lenta, ora acordada
A roda do recordar


Vento, pare, por favor
Deixe em paz minha emoção
Não mexa com a minha alma
O seu desejo é a calma
Jamais a recordação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

Gilson Nascimento


 

P a s s a r e d o


Sabiá – canto dolente
À tarde a mata varando
Na alma de muita gente
Vais a saudade acordando


Vi um galo-de-campina
Seu colorido esbanjando
E as penas, à chuva fina
Um arco-íris formando


Um beija-flor cortejando
Uma rosa – vida em cor
Ao beijá-la vai doando
Pequenas doses de amor


Tico-tico pequenino
De galho em galho saltando
Qual um menino traquino
Vives a vida brincando


Rolinha fogo-pagou
O teu canto, na verdade,
É a voz de quem amou
Curtindo a dor da saudade

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

Gilson Nascimento


 

Beijo injeitado


Cabôca, si tu subesse
O tamãin do meu amô
Tu nunca mais rifugava
Meus beijo, minha fulô


Tu sabe donde eles vem?
Num duvida de eu não!
Vem dum cantim resguardado
Todo de seda forrado
No fundo do coração


E feito pomba-de-bando
Eles de lá vão fugindo
E no sangue margúiando
Devagarim vão subindo.


Pelo sangue trafegando
Me dando febre e tremô
Sem avexame si pranta
Nos beiço-ôi dágua de amô


Mas quando eles se arrelia
Mode tua boca incontrá
Valei-me, Vige Maria!
Tu inventa de rejeitá


Tem dó de eu, meu pecado
Adocica meu sofrê
Vivo cos peito arroxado
De tanto beijo injeitado
É grande o meu padecê


Si hoje tu dé um não
Com a verdade machucado
Me imbrenho por esses mato
À moda boi desgarrado
Mas levo no coração
Cum afeto, cum devoção
Qual jóia de estimação
Todo esses beijo injeitado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

Gilson Nascimento


 

Biête do sertão


Zé, meu fi, esse biête
É pra mode ti contá
Que eu tive ternantonte
No nosso amado sertão
E com a boca escancarada
Numa bruta gargaiada
Tudo se ria pra mim.


As prantação bem verdinha
Viçosa, já cricidinha
Os pé de pau fulorado
Os boi, lustroso e cevado
E o pasto cuma um tapete
Ispaiado pulo chão
Tudo se ria pra mim


As nuve, baixa e cinzenta
E o ri com a água barrenta
Com aquele gargulejá
Qui faiz gosto se iscutá
Curria brabo, avexado
Cuma quem faz um mandado
Pra no má si dispejá.


E os pés de mi bunecando
E os pendão balançando
Com o vento que da lonjura
A chuva ia assoprando
Tudo se ria pra mim.


E vendo os bicho e as coisa
Com tanta sastifação
Mi ri com a cara e com a alma
Confesso, num nego não
E a nutiça da alegria
De quando in vez eu iscutava
Num baticum arrastado
Que era vê um aboiado
Do meu véio coração


Me alembrei das pescaria
Que dô! Que arrecordação!
A lua, culara, cheinha
Varava a mata todinha
E feito uma tuáia de prata
Caía em riba do rio
Briava na escuridão.


Meu fi, nesse dia eu sube
Que nóis é que nem os pau
Tem raiz grossa e cumprida
Que margúia pulo chão
Lá se interra, lá se agruda
Não há home de sustança
Que arranque elas não.


Eles vem dum pé de pranta
Que tem uma bunita fulô
Cheia de viço e de cô
Nóis chama ela de amô
E veve no coração

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

Gilson Nascimento


 

Noite de São João


A festa qui nóis fizemo
No convite já dissemo
Mas car ece ispilicá
É pra mode arrelembrá
Do São João que se passou


São João das fogueira grande
Das labareda bunita
Que assubia lá pra riba
Lambendo a cara da noite
Levando junto com ela
O grito das meninada
Os papouco dos foguete
As reza da gente grande
O gargaiá da moçada


São João das bacia dágua
Friinha de fazê gosto
Pra gente oiá bem no fundo
E percurá pela cara
Quando a cara aparecia
Meu Deus, qui sastifação!
A criatura vivia
Inté o outro São João


Mais porém quando essa água
A cara do ente escondia
Valei-me, Virge Maria
Mal sinal, assombração
Pro mode qui a morte vinha
Dizia os véi, os antigo
Com a sua foice bem grande
Antes do outro São João


São João das comida boa
Faz minha boca miná
Cangica, pé-de-moleque
Pamonha, mi, aluá
São João das bomba estourando
Dos busca-pé percurando
Muié mode aperreá
Dos coió e das rodinha
Dos traque, das estrelinha
Quaje sem luz, pobrezinha
Num briava, mais porém
Infeitiçava o oiá


Afiado, afiada
Padrim, madrinha também
Dando volta na fogueira
Com as mão bem agrudada
Dando nó nas amizade
Arrochando os parafuso
Dos amô, das afeição.
São João qui taqui guardado
No meu véio coração
Coração já mei cansado
Mas quinda bate avexado
Toda vez que o calendaro
Me amostra na sua fôia
Que é noite de São João

 

 

 

 

 

 

10.08.2005