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Ildásio Tavares


 

A esfinge decifrada


Devora-me. Devora-me, por favor,
esfinge – eu te imploro. Nos
côncavos convexos dos teus olhos
de pedra, tu me fizeste presa,
preso, inerte, só; tu me volveste
revolveste e reverteste em pó, em
puro pólen. Plácidas vacas pastam
sutilmente nos campos aromados
dos meus sonhos. Colibris febris
adejam pelos ares. Ao madrugares,
mulher de corpo de leão e rosto
De pedra, Ter-me-ás sempre junto
A ti, atritando minha pele morna
Em tua frigidez marmórea, asas de
águia não te elevarão do solo. O
campo semelha um xadrez de ananases
todavia são moitas, apenas moitas.
Nada do que sonhei. Que sei eu da
vida? Diga, esfinge querida. Diga.
não aceito nada como resposta. Ou
pouca coisa. Viver é saber. Os
castores sabem os troncos de bétula
para acatar o degelo e roer a
primavera. As abelhas perpetram
minuciosamente seus novíssimos
alvéolos em sua antiguidade hexagonal de mel. Direi, então,
senhora do
mistério, que nada sei alem do meu
papel. Nem é preciso. É preciso
viver. Tudo aceitar e aceitar que
tudo é inculto. Tudo está por fazer.
está-se fazendo. E que tudo, um dia,
vai acabar. Resta-me apenas o espólio
dos meus sonhos. Por isso, senhora da
Vigília, tu que dominas o deserto com
a infinidade de teu olhar de pedra,
eu te imploro – devora-me. Devora-me
que só assim poderei decifrar-te.
                                           Decifrar-me.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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José Santiago Naud

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Ode estática


Olha, Denise, se tu fores ao passado,
anos quarenta, la no interior,
haverás de estar comigo e contigo
naquele colóquio que jamais esqueço.
Se bem mereço, estaremos juntos no quintal.
Lembras-te da hera no muro alto
ao pé do qual brincávamos em horas preguiçosas?
Dos canteiros de dálias, chapéus de couro
e margaridas amarelas? As sombras da tarde,
obedecendo aos telhados e cornijas,
traçavam formas imprevistas no cimento –
tu mostravas a mim esses desenhos
que descreviam em contornos de intensas fantasias.
Como as nuvens redondas num céu sempre
azul de sertão. O mundo era calmo.
O tempo lento. Lembro-me do vento,
acoitando as folhas pequenas de um pe de sapoti.
Lembras-te também? Vejo tudo como numa fotografia.
Vês? Tudo arrumado como a fazer pose
para a câmara de nossos mais recônditos refluxos,
olhos sutis dó nosso sentimento
(alcançam muito mais que um telescópio).
Prefiro crer que lembres. Não sei a quantas andas,
talvez casada com o Dr. Fulano de Tal, rica, gorda,
quiçá adúltera; ou tocando piano a tarde toda
como uma santa. Não importa. Importa e que
em alguma célula de teu cérebro essas coisas
haverão de estar arquivadas e por um motivo
qualquer serão tiradas do inconsciente,
nem que eu tenha de ficar famoso e meus versos
de correr o mundo. Lembrarás então – como
eu me lembro – daquele menino tímido:
tu me dizias que eu era bonito; até acariciavas
meu cabelo mas minha timidez não se dissipava.
O primeiro dia em que nos beijamos,
escondidos atrás do tronco bojudo de uma mangueira,
foste, tu, Denise, que tomaste a iniciativa,
premindo teus lábios contra os meus,
nada mais que um leve roçar de peles curiosas.
E tanto afligiu-me a consciência de um ato pecaminoso
que Domingo na Igreja da Matriz tudo contei ao padre.
Tu deves-te recordar pois no mesmo dia, o teu recato
impediu-te de ir ao confessionário – assim disseste
a mim com um sorriso sutil – como eram os teus.
Mas nosso beijo apressado abriu caminho
a caravelas nos mares dos sentidos, descobertas
de cheiros e de gostos; de tatos e contatos; de visões.
Tudo escondido. Lembras? Do esquisito sabor
de cumplicidade e de segredo? O mundo
Ignorante derrotado num simples trocar de olhos.
tua mãe na sala tricotando ingenuidade
e nos dois na sala de costura atrás das cortinas,
os corações palpitando de medo e de emoção.
Tu, mais velha do que eu um pouco,
incentivavas meus avanços nos territórios secretos,
onde se esconde um cobiçado tesouro, jóias
de nome estranho; e correspondias com carícias
que eu nunca imaginara. Mais do que eu,
tu querias tudo, todo o encanto que esse esconso
universo a nós dois ofertava. Não temias
os temores que temem as mulheres tementes.
Desejavas todos os mistérios e surpresas
que colhíamos na penumbra azulada daquela
sala de costura. O primeiro dia em que te vi sem roupa
foi tão solene que até hoje nunca digo nua.
Eu me lembro. Era segunda-feira. A tarde descambava.
Nós dois na sala de costura. Tua mãe cochilava.
Tu já beiravas os doze anos, onze tinha eu.
Não sei qual demônio de mim se apossou.
Pedi e me negaste, primeiro com pudor;
depois com esquivanças, rudezas e desdém;
nervoso, eu insisti, com rogos e com súplicas;
e pouco a pouco tu calaste, sem me responderes:
numa ousadia, da qual não suspeitava,
fui doce e vagarosamente mobilizando laços,
presilhas e botões – ela não resistiu, como
eu até esperava. Súbito fez-se o encanto – Sus – era
um fascínio; eu quis gritar, ela tapou-me a boca.
Ah, nesse dia começou uma era. Ah, nesse
dia eu descobri um mundo.
Desde os cumes pontiagudos dos teus seios,
ás colinas arqueadas do teu dorso,
até as penugens macias de teu vale –
tudo banhado pelo azulado da penumbra
no ambiente lascivo da sala de costura,
Um verdadeiro quadro de Velásquez,
se Velásquez pintasse meninas nuas.
Se tu fores, pois, ao passado, minha Denise
de então, anos quarenta, do interior
que sempre falou mais alto em mim do que capital,
se tu fores lá como espero, renovas nossas juras
que já são eternas; abraça-me e me beija
detrás daquela mangueira; me leva pela mão à sala
de costura e permanece nua, cravada na distância
dos acidentes breves, dos odores doces,
na visão parada do teu corpo tenro
que é o corpo ausente em que te procuro
em todos os caminhos, pelo mundo todo,
em todas as mulheres.
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

O enfado de Tereu


Me irrita a paranóia dos pássaros
quando ruflam de mim
             fuga e aflição
me irrita.
      Jamais ousaria caçá-los
para me deliciar
com a frágil obscenidade
de seus cadáveres
dourados ao fogo com tempero e requinte.
No passado, confesso que já consumi
dessas que se caçam perdizes. Mas foi
há muito tempo. Jamais mastigaria
um lírico colibri
Ou este bem-te-vi
que fugiu de mim agora, tão amarelo.
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

O centauro


O centauro,
             infeliz,
não pode ser apenas
       cavalo.
             Tem a cabeça que pensa
E cascos para o ataque.
             Infeliz,
                  não pode ter
tranqüilidade nos campos,
       correndo livre de um
             crânio
que lhe pesa,
que lhe guia,
Que lhe faz
      ser meio humano,
responsável percentagem,
cinqüenta certo por cento
                    dos desatinos do mundo.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Juarez Leitão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

O barco bêbado


Mostrou o poema a seu amigo,
com a certeza adolescente
de que ninguém, na França,
poderia estar fazendo igual..
 


(E, provavelmente, estava certo)
 


depois, mudou as armas; mudou
de ramo. Arranjou uma mulher.
E se acabou,
como a esfuziante flor do hibiscus
que dura um dia, murcha e cai no chão.
 


(Há coisas grandes demais para os dezoito anos)
 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Nilto Maciel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

The small wee hours


É nas horas pequenas, mais pequenas,
começo e final de cada dia,
que mais vibrante vem a mim,
vibrando, a tua imagem,
cor de sonho, resgate
de um passado de esplendor.
 


Corre o dia. Cresce a luta.
Cruzam ares e mares
os petardos invisíveis
do amanhã
que se armam hoje
e hoje são despedidos
No barulho e fumaça
da cidade assaltada
de pavor e sacrifício.
 


Só nas horas pequenas, mais pequenas,
é que tua imagem vibra
              e me estremece.
 

 

 

Ticiano, Flora

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Sânzio de Azevedo