José Hélder de Souza
Crepúsculo plangente
...quando o sol da já declina...
Guerra Junqueira
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Crepúsculo
flamejante - nesta hora a minha avó Carmelina (há quanto tempo?)
entrava na nave escura da igreja matriz de Massapê. norte cearense,
para rezar ouvindo a "Ave Maria", de Charles Gounod, tocada, num
harmônio, por sua filha Enoi, cega e muda de nascença - neste
crepúsculo de agora, não menos rutilante, o sol meteu um raio através
da vidraça e iluminou de face, duas pedras postas ao pé da estante,
bem junto da bengala avoenga, seixos rolados ornando recanto desta
sala sombria cheia de coisas e de recordações, como a da avó.
Uma das pedras, em forma de uma bola ovalada do tamanho de uma mão,
veio do rio Corumbá, Pirinópolis, apanhada depois da festa de ano novo
de 1983, a data deveria estar inscrita numa de suas rotundas faces,
como lápide dos dias idos a vagar soltos na memória esgarçada, sem
registro lapidar.
A outra, menor, também branca e arredondada, mas chata, sem qualquer
grafia em suas faces, veio de longe, da praia do Camocim, ali o rio
Coreaú derramando suas poucas águas no Atlântico, no Ceará, onde
chorei meus primeiros desencantos, aos 10 anos.
Mas esta pedrinha a apanhei depois, bem depois, desiludido, quando lá
fui, Já velho, procurar ( não encontrei) os dias de eu menino. As duas
pedras, brancas como o leito dos rios que já foram, rememoram as
idades, o sol insiste em luz sobre suas faces mortas não inscritas,
mas cheias de visões.
Enquanto há luz crepuscular e recordativa, a visão sobe e ilumina, na
mesma estante, alto do chão, um barco que nunca navegou: tem dois
palmos, convés baixo, imita rebocador: na coberta superior dá proa
carrega, como únicos marujos, dois copinhos; na meia nau, uma achatada
garrafa de cristal, continente translúcido de avinhados sonhos,
lembrança de velhos dias e amoráveis encontros com meu pai Raymundo
Olavo que já se foi sem dizer adeus mas deixou a saudade feito barco
em miniatura navegando em minha estante me enchendo de etílicos
sonhos, com dois copos para mim mesmo que vivo e libo solitário.
Os raios do sol ainda me iludem e varam a vidraça mostrando uma coruja
feia, esculpida num tronco, e pousada em ilusórios livros também de
madeira. Pássaro de inaudita face, grandes asas fechadas sobre o
tronco curto, sem vôo algum, veio de longe. Seus cornos e seus olhos
apagados são de depois dos amores praianos da Fortaleza de Nossa
Senhora da Assunção, aí como dói ser antigo, vive-se olhando para si
mesmo a - fealdade da coruja - perdidos os encantos juvenis.
Atrás da coruja, em elegante moldura, o sol, que ainda insiste em
iluminar esta pequena sala em que abrigo meus desencantos, velhos e
novos, mostra um antigo retrato de dois jovens sob a chuva caminhando,
metidos em capas de "shantung", na Avenida Barão do Rio Branco, no Rio
de Janeiro: eu mesmo quando ainda freqüentava as alegres casas da rua
Alice, metido num fato de casimira preta riscado de listas brancas que
a capa de todo não escondia, fumando o cigarro da ilusão; e ao lado,
meu inesquecível amigo Bolívar (Bolivár, como se dizia) Costa, natural
de Ubajara da Serra Grande, Ceará, mas o único cosmopolita que já
vira, capaz de dissertar sobre Arist6teles ou Platão e dizer quantas
faces tem o universo, curvo ou plano, medieval ou eisensteiniano e,
por entre sabença, o gosto pela arte literária, a recitar António
Nobre, o "Auto das Ânsias": "Desde o Ódio ao Tédio. Moléstias d'Alma
para as quais não há remédio". Igual só ao meu nojo de agora, neste
crepúsculo... Morreu, o Bolivár, quando não devia. deixando-me a
imagem de minha inovidável mocidade, o retrato na parede, perto da
estante e da coruja, mostrando minha antigüidade e a sua irreparável
ausência.
O sol e seus persistentes raios vão subindo - quanto mais sobem mais
vai se indo para o poente o astro - e vejo um pássaro pousado sobre
dicionários. Pequeno, feito não sei de que matéria, veio da China,
bico amarelo, cocuruto erguido em crista, rabo longo, fecha as asas
sobre altaneiro corpo, nunca voou desde que o comprei em Manaus,
quando lá fui com minha amada Neide, faz anos, ver como correm os rios
e como voam os pássaros, não este pousado em minhas ilusões. Não sei
que música tocando na eletrola, me diz: - Passarinhos são assim mesmo,
só os vemos quando pousados, se voam nunca mais os veremos, sonhos
perdidos.
Perto do memorável passarinho quietíssimo, umas rubras rosas de
plástico - puros enganos - postas em esgalgados jarros, dois, de pedra
sabão: tudo, sob os últimos raios do sol, tediosas evocações - a avó
encantadora da infância, o sortilégio das pedras, dos rios, o barco
navegando em seco nas recordações paternas, a soturna coruja e o
fascínio do pássaro imóvel, os rapazes do retrato na parede, as rosas
vermelhas dos sonhos, tudo se foi, tudo se vai, o sol morrendo, eu
vendo, pela janela, seu descair no horizonte fugidio e, no escuro de
agora, as incertezas de outro amanhecer, trevas, talvez, para sempre
...
Brasília, ao crepúsculo do dia 21 de fevereiro de 1996.
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