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Luiz Paulo Santana


 

Composição


Como são grandes os edifícios
como são pequenos os homens
e no entanto os homens
os construíram.


E o mundo?
O mundo é muito maior que edifícios e homens.
Sabemos que os homens construíram os edifícios
mas não sabemos quem construiu o mundo.


E os homens?
O mundo construiu os homens?
Dizem que sim e é bom sabê-lo.


Se os homens que são pequenos
construíram os edifícios que são grandes
também o mundo poderá ter sido construído
por algo ou alguém pequeno.


O tijolo do mundo é o átomo (por enquanto
ou por encanto?)
mas o átomo também foi construído
como o tijolo dos edifícios.


E quem construiu a construção,
o ato mesmo de construir?


É difícil, não?


Contudo homens átomos mundos
tudo parece meticulosamente bem construído.


Mesmo as coisas que foram desconstruídas
até ao seu último liame
se reconstroem noutras coisas.
Mesmo a desconstrução é construtiva.


Parece inútil aos homens fazerem a guerra
e destruírem tudo à sua volta.
Não tarda muito e o mundo começa
a reconstruir a grama devastada
a reconstruir os homens devastados
e estes a reconstruir as cidades e seus edifícios.
Para que destruir então?
Talvez seja apenas uma mania boba dos homens.


Dizem que um dia não restará pedra sobre pedra
e os homens os edifícios e o mundo acabarão.
Será o fim. O fim de quê?
Se não me engano
quem constrói mundos
continua o seu ofício.


E se há mundos em construção,
haverá homens em construção
(seja lá que homens forem esses)
e haverá novos edifícios.


Se não paramos nós as nossas construções,
se não param em nós as construções
e desconstruções do mundo,
se nunca sabemos ao certo o por quê, e construímos,
por que hão de parar as outras construções?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

Luiz Paulo Santana


 

Inexato infinito instante


Em certos momentos vêm-me à cabeça
lembranças incertas
(tenho muitas luas na cabeça)
são ventos cheirosos que enfunam o peito
de vaga saudosa presente talvez infinita harmonia
são noites imensas surpreendendo os olhos
meus olhos que adoram vi(ver)
às vezes pensando-se mortos
(ao menos cansados)
são olhos de vista cansada como dizem os neófitos
mas sensações eternas não cansam a vista
como gostariam os oftalmologistas
embora haja vista os óculos ajudem os olhos
a assumir o crepúsculo
a medida da vista cansada é exata
o inexato infinito instante das lembranças vistas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

Luiz Paulo Santana


 

Penso, e no entanto...


Bem que tentamos
libertar o mundo.
Não sabíamos que o mundo
é tão duro, inflexível.


Bem que tentamos
libertar o amor.
Mas o amor (o que é o amor?)
andava ocupado
com as inflexibilidades do mundo.


Depois descobrimos que o mundo
que queríamos libertar
habitava em nós.


De repente, o mundo somos nós.
O que fazer, então,
se somos tantos?


Calamo-nos perplexos.
Ficou difícil libertar o mundo.
Porque não há liberdade possível.


O mundo somos nós
e nossas palavras de ordem
libertas quae sera tamen,
somos nós e nossas máximas
liberdade, igualdade, fraternidade,
somos nós e nosso estranho
desejo de liberdade,
de sair por aí tocando flauta,
de deitar sob uma árvore,
de experimentar a solidez
cromática da pedra,
de ser mundo como o mundo é
no seu silêncio
na sua solidão
na sua imobilidade.


Libertar o mundo de sua indiferença,
nós que gritamos e sofremos,
nós que nascemos e morremos
enquanto o mundo é
a árvore é
a pedra é
as estrelas são (ainda mais distantes).


Não há liberdade nas estrelas.


Não estou liberto de nada
nem dos homens, nem das estradas,
nem da árvore, nem da pedra,
nem do meu peso estou liberto,
nem da manhã, nem da noite,
nem do sono, mesmo desperto,
mesmo dormindo, mesmo gozando
a céu aberto.


A única liberdade é saber
que não há liberdade.
A única liberdade é saber,
portanto, é pensar.
A única liberdade é o pensamento.
E no entanto...


Os dias e as noites,
as chuvas e os ventos,
as estações do ano,
as fases da lua
o tempo contado nas estrelas,
tanto, todo, tudo
pôs fim à minha liberdade.


Durmo e acordo,
gozo e trabalho,
sei que o mundo é redondo,
mas o que vejo?
O centro de tudo sou eu,
mas não há liberdade.


As estrelas passam,
a lua e o sol,
os dias e as noites,
os amigos e os carros,
as chuvas e os invernos
e eu resisto.


A todo instante existo
em meu eixo,
e nem mesmo o que sou
eu tenho.


Que lógica férrea é esta
que me faz perceber
as cores?


Que ilógica férrea é esta,
um nada que cabe em tudo,
um tudo que cabe em nada?


Tudo sou eu,
e é pesado.
Nada é pesado
como tudo.
Tudo e nada,
pesados como chumbo.


Mas não há liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

Luiz Paulo Santana


 

Menino de rua


Ele virá aqui,
estou de saída.
Ele virá, sim,
tenho medo dele.
Ele virá aqui,
eu lhe dei espelho.
Ele virá aqui,
se sou seu amigo.
Ele virá aqui
conversar comigo.
Ele virá aqui
com seu cheiro azedo.
Ele me dirá
que não cheirou cola
que a voz arrastada
nunca foi a dele.
Não direi a ele
que “essa casa é sua”,
nem darei a ele
o amor dos meus filhos.
Levará de mim
só roupas usadas
bem que bem dobradas
com muito carinho.
Ele irá embora
como tantas vezes,
ficarei rezando
pra que se proteja
do mundo lá fora.
Ele virá aqui,
próxima visita.
Dia menos dia
pego o telefone,
sua voz mutante:
— Posso ir aí, seu Euclides?
— Pode, Vitalino.
Graças a Deus
que ele ainda é
um menino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

Luiz Paulo Santana


 

Antenas, luar


Brilham libélulas mágicas
no vôo sobre as casas
milhares, milhares de asas
procriando o vôo
nos lagos parados
das casas.


Voando paradas
deslizam seus ovos
pelas águas turvas
inundando os cômodos
sob a casca avara
das casas.


Mesmo submersos
refletem a lua
pálidos semimortos
semblantes diante dos ovos
sempre a eclodir.


O que acontecerá quando
cessarem os ovos
das libélulas mágicas?
Saberão respirar as pessoas
sob os lagos parados das casas?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

Luiz Paulo Santana


 

Drummond


Sabe o que eu acho?
Você foi gauche na vida.
De que maneira enviesada
poderia
olhar assim
tão por debaixo dessas abas
de um chapéu imaginário
ou dos aros
desastrosos
de seus óculos?


E que frieza
na dissecação da vida:
soma imprecisa de vivos
recalcitrantes
e mortos inacabados
a aglutinar-se
no vácuo
da própria carne.


O rosto oblongo da poesia
é pétreo e belo.
O bisturi disseca seus miasmas
mas não elide o osso,
o núcleo férrico,
o colosso.


Claro enigma, ei-lo
vasculhado. Fazendeiro do ar,
o que vasculha, ara, o enigma
aeriforme.


Você, gauche, encontrou-o,
jovem. Tinha uma pedra
no meio do caminho.
Pois eu vivi 54 anos para
entendê-lo: no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei.

 

 

 

 

 

 

19.05.2006