Luiz Paulo Santana
O beco
Sou periférico desde o nascimento,
morei em beco, rua sem saída
onde a cidade nunca tinha pressa
e o campo ao lado abria-se em delícia,
mata fechada, plantações, as cercas
que burlávamos, pastos, vacas,
onipresença do sol e pescarias.
Em São Francisco, vila esperançosa,
onde Niemayer, sobre a terra chã,
ruas de barro, águas de cisterna,
e mato e vaca e papagaio e cães
e casebres prontos para o abate,
relampejou seu generoso raio
por breve momento no cinza da vila.
Ali já havia a avenida.
Parecia feita para nós, mas passava,
cindia a vila em duas, ia, longe,
atropelava, irrompia,
esmagava impetuosa, proclamava
a nova ordem das coisas, desaguava
na dourada lagoa onde as casas,
grandes casas assobradadas,
por nós, nossos avós e nossos pais
eram construídas
sob alegrias de trabalho idas e vindas
de farnel cheio,
e no armazém de secos e molhados
(o som oco das passadas sobre as tábuas
do assoalho, a modorra do interior,
lentidões de alma e manuseio)
o prazer dos pacotes estralados,
caneco de alumínio chanfrando arroz,
contrapeso na pesagem da lingüiça quase, quase,
calma, calma, passos, passos, silêncios...
querosene, funil, garrafa, odor.
Da avenida os tentáculos sobre as ruelas,
o asfalto sobre a terra, outra camada
de vida e tensão, o pedido o convite a pressão
a expulsão o desterro a viagem
pela avenida deslumbrada
para além da lagoa dourada
para além das suas margens plácidas
desaguando
um retorno ao silêncio das matas vigiadas
outras ruas de barro
outros sinais de chegada,
novas cercas que burlávamos,
e mato e vaca e papagaio e cães
e casebres prontos para o abate,
a nova fundação primeira da cidade,
a primeira idéia de feli(z)cidade,
(sem perceber o movediço,
o periférico rancor que se infiltrava),
e Niemayer ficando para trás,
e São Francisco ficando para trás,
enrodilhados por outras camadas,
refundações da onírica cidade.
De mudança em mudança, perdeu-se
a bagagem: os rosários, as cantigas,
as visitas, os rostos familiares,
os restos de saudade, os mortos,
os tratos, as amizades, os nomes;
rostos sem nome, nomes sem rostos,
estranha sociedade — anônima.
No Alto Trançador, beira de estrada,
fazendo vida, o fim da picada,
menino ainda percebia nada,
a casa, um cômodo de venda,
era alugado,
tinha comida e ponto!, quanto bastava,
mas a memória, intacta, guardava.
No Matadouro
os olhos viam
em breves instantâneos,
alegoria da vida anunciada:
facada curta, facada estática,
a rês desmantelando-se no chão,
a mesma vaca que antes, remansosa,
bucólica, pastava.
Assim morei em vilas, mocambos, favelas,
nas palafitas modernas, zungús, cafundós,
variações de velhas senzalas,
renomeadas formas de elisão;
em São Francisco, como já foi dito,
ou nas alturas, Sagrada Família,
enfim, u’a santa, de seu nome Mônica,
e toda a igreja me seguindo estrita.
Então se aprofundou essa desdita:
rua rolei, sinistra, e rua boa,
prostituindo trocas, onde a vida
levava sustos e morria à toa,
ao látego da lei e da justiça.
E deslocando-me na incoerência
de nunca pertencer a qualquer parte,
(de um lado o pasto da potência cósmica
e de outro, as verticais empedernidas),
jamais se me aprofunda um tal saber
(o meu saber, meu Deus, já confundi!)
que sábios e profetas canonizam.
Mas a cidade avança.
Ultrapassa-me, enfim, esta cidade.
Impõem-se os decassílabos quarteirões
de onde vejo os arrabaldes:
meninos pelos becos e vielas pútridas
galopam corajosos, disparam
foguetes avisando seus próceres,
ó pátria encurralada.
As pipas ornamentam as sacadas
de laje tosca, mas o azul do céu
é apenas um detalhe. A guerra
é declarada.
A nova sociedade está formada,
sociedade anômica, mesclada,
o beco periférico expandido
agora é o invasor.
Cidade de concreto e mil insígnias,
das ilusões febris, encasquetadas,
tão surdas, mudas, rígidas, catárticas,
tornou-se numa só, medo e rancor.
E mói e mata e rouba e fere e grita
nos seus vários depósitos de horror
o inimigo da pátria maldita:
homem sem rosto, réu e criador.
No campo e na cidade a guerra troa
a última batalha, e incompreendida;
A confrontar a onírica cidade
e a terra chã — o beco sem saída.
|