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Luiz Paulo Santana


 

De longe


Eu vi de longe.
De antes da porteira, e era noite.
A casa relumeava ao clamor da fogueira
e o pessoal sentado em roda
cada qual seu claro-escuro
carvão e chamas.

A casa
no espaço volteava,
as três janelas-órbitas escuras,
aberta a boca-porta, de onde
língua-degraus de pedra bruta
lambiam
o chão resseco
de tempo e passagem.

Do telhado a franja negra,
sinuosa,
demarcava a alvacenta,
larga, fantasmal
face da casa.

De longe, noite alta,
tudo o que eu via
ao lume da fogueira
flutuava
e o aboio da viola
mais e mais tangia
o coração
ao tempo que escoava.

Depois foi se apagando a chama
sob o véu de cinzas da alvorada,
                     o canto emudeceu,
um gélido bocejo arrefeceu as brasas.

A casa ficou só:
fechou suas asas
fechou seus olhos
fechou-se em casa
a casa.

Eu vi de longe.
De antes da porteira, e era madrugada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

Luiz Paulo Santana


 

Boa noite, mãe


E era um pingo d’água na bacia
— tong!.... tong!.... tong!....
o que me angustiava
porque cravava pontos
no silêncio que
vigia.

Cada tong retumbava
nas oito quinas
do quarto
cuja cubatura
no escuro se dilatava:
nesse abismo minha cama
se perdia.

E como assim
de quando em vez cravava
o pingo — tong!... tong...
na bacia de minh’alma
o silêncio se envergava
e eu ouvia
o polvilhado da chuva
na vidraça.

Sentia frio e dó
quase molhado
som da chuva
água úmida
descendo em calafrio
pela espinha.

E como a treva espessa
prosseguisse e o pingo d’água
— tong... percutisse — tong...
e o som dessa bacia retesasse
o sono
como uma corda de embira
eu: mãããããe!
Então no escuro o escuro
vulto que eu sabia
ser fantasma de minha mãe:
— Que foi meu filho?
Clic! E fez-se a luz
e o medo se apagando.

— É o pingo, mãe.
E lá se foi ela mover
a bacia e já de volta Clic!
acende a escuridão:
— Boa noite, filho.
Um beijo no escuro
e me aconchega
o cobertor em cada
curva do meu corpo
embalsamado
com seus dedos toques
mágicos
e alguns farrapos de arrepio e medo:
— Boa noite, mãe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

Luiz Paulo Santana


 

Menino de Beira-rio
(ou Cordel Mínimo)

 

Para Wilson, que
transitou por aqui.


 

Na barra do Taquaral
onde o corgo encontra o rio

A montanha encontra o céu
e as nuvens o coqueiral

Desencontros também eram
encantos de mesmo vau

Num lugar chamado Cruzes
município de Baldim

Ali nasceu um menino
muito inquieto e curioso

Era perrengue e franzino
e aprendeu a ler sozim

Do Cafundó não passava
quando saía da casa

Porque a casa o proibia
com medo de se afogar

Tudo do mundo intuía
das letras e do lugar

Das palavras se gozava
das frases de se mangar

E assim dominou o texto
e o medo da vida enfim

Pois da morte não sofria
qualquer susto em rapagote

Aflito em por mãos à obra
capacitado no bote


Mais: se a vida lhe aprouvesse
na lida domar a dor

E o medo de ficar velho
sem nunca encontrar o amor

Ele agora se exercia
nas coxas e nos decotes

Pois destino mesmo cria
depois de crescido e forte

Que sorte talvez gostasse
de tarde encontrar a morte

Inda que de amor soubesse
pouco mais que desafio

Na paixão inconsolável
do amor sem eco e vazio

Lançou-se feito um menino
em pleno verão do rio

Padeceu o amor primeiro
sofreu terrores e infernos

Conheceu o amor segundo
de filhos e de libelos

O amor terceiro lhe veio
como se encantasse o mundo


Cada dia cada hora
cada minuto e segundo

Cada amigo cada filho
cada filha face e frase

De cada aluno a palavra
professou texto e catálise

Provocou rasgos e risos
durante toda a viagem

Explodiu como uma estrela
fundadora de universo

Expandiu-se fez-se máximo
ao cabo se recolhia

Como acontece de fato
com qualquer estrela-guia

E foi cantando e cantado
que se aproximou da morte

Que tarde tarde gostasse
de encontrar — mas não deu sorte

E assim termina esta história
de um menino de Baldim

Que por todo brasileiro
foi antes de tudo um forte

Menino de beira-rio
que aprendeu a ler sozim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

Luiz Paulo Santana


 

Como tantas diferentes lindas noites


Uma noite e tanto
luestrelas
minguante a lua, e bela

raras estrelas

argêntea luz oculta
                           parte delas

e estas palmeiras
(antes, o vento)
e os leques a estalar

e essa penumbra
esse silêncio sem era

seria bom agora conversar
olhando as três Marias

assim, à toa
talvez no mesmo tom
no mesmo plano de in/existência

falar de amor
abstração maior
que a noite inteira

suas estrelas lépidas e lentas

e a esfera sensual
da lua-meia.


(Inspirado numa certa noite de 19 de janeiro de 2006, quinta-feira).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Êxtase de São Francisco

Luiz Paulo Santana


 

Porto inseguro


Estava no quarto de hotel
em Porto Seguro — Bahia
porto de chegada
porto de partida
era madrugada
e da traseira de um automóvel
o som incômodo vazava

entre/ou/via Serginho Groisman
afetuoso, na TV e quem cantava
era a baiana Ivete

nos intervalos
lia Gerardo Melo Mourão e sua
Invenção do Mar
do mar dos sertões
do grande mar desde portugais
desdas áfricas desdo oriente
desde europas desde o éden
desde antes da criação

quando
muito mais barulhos — crianças
e latas chutadas — conversas
de menino esperto
meninos vivos

então me levanto, vou à sacada
meu gesto quase xingando:
eram meninos, catavam latas
latinhas de cerveja nos lixos
da cidade, caminhavam
pelas ruas catando latas
meninos catando latas
na madrugada acesa
da cidade.

Continuariam a travessia
do imenso mar-sertão
que o grande vate herdou
desdos portugais?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

Luiz Paulo Santana


 

O beco


Sou periférico desde o nascimento,
morei em beco, rua sem saída
onde a cidade nunca tinha pressa
e o campo ao lado abria-se em delícia,
mata fechada, plantações, as cercas
que burlávamos, pastos, vacas,
onipresença do sol e pescarias.


Em São Francisco, vila esperançosa,
onde Niemayer, sobre a terra chã,
ruas de barro, águas de cisterna,
e mato e vaca e papagaio e cães
e casebres prontos para o abate,
relampejou seu generoso raio
por breve momento no cinza da vila.


Ali já havia a avenida.
Parecia feita para nós, mas passava,
cindia a vila em duas, ia, longe,
atropelava, irrompia,
esmagava impetuosa, proclamava
a nova ordem das coisas, desaguava
na dourada lagoa onde as casas,
grandes casas assobradadas,
por nós, nossos avós e nossos pais
eram construídas
sob alegrias de trabalho idas e vindas
de farnel cheio,
e no armazém de secos e molhados
(o som oco das passadas sobre as tábuas
do assoalho, a modorra do interior,
lentidões de alma e manuseio)
o prazer dos pacotes estralados,
caneco de alumínio chanfrando arroz,
contrapeso na pesagem da lingüiça quase, quase,
calma, calma, passos, passos, silêncios...
querosene, funil, garrafa, odor.


Da avenida os tentáculos sobre as ruelas,
o asfalto sobre a terra, outra camada
de vida e tensão, o pedido o convite a pressão
a expulsão o desterro a viagem
pela avenida deslumbrada
para além da lagoa dourada
para além das suas margens plácidas
desaguando
um retorno ao silêncio das matas vigiadas
outras ruas de barro
outros sinais de chegada,
novas cercas que burlávamos,
e mato e vaca e papagaio e cães
e casebres prontos para o abate,
a nova fundação primeira da cidade,
a primeira idéia de feli(z)cidade,
(sem perceber o movediço,
o periférico rancor que se infiltrava),
e Niemayer ficando para trás,
e São Francisco ficando para trás,
enrodilhados por outras camadas,
refundações da onírica cidade.



De mudança em mudança, perdeu-se
a bagagem: os rosários, as cantigas,
as visitas, os rostos familiares,
os restos de saudade, os mortos,
os tratos, as amizades, os nomes;
rostos sem nome, nomes sem rostos,
estranha sociedade — anônima.


No Alto Trançador, beira de estrada,
fazendo vida, o fim da picada,
menino ainda percebia nada,
a casa, um cômodo de venda,
era alugado,
tinha comida e ponto!, quanto bastava,
mas a memória, intacta, guardava.


No Matadouro
os olhos viam
em breves instantâneos,
alegoria da vida anunciada:
facada curta, facada estática,
a rês desmantelando-se no chão,
a mesma vaca que antes, remansosa,
bucólica, pastava.

Assim morei em vilas, mocambos, favelas,
nas palafitas modernas, zungús, cafundós,
variações de velhas senzalas,
renomeadas formas de elisão;
em São Francisco, como já foi dito,
ou nas alturas, Sagrada Família,
enfim, u’a santa, de seu nome Mônica,
e toda a igreja me seguindo estrita.


Então se aprofundou essa desdita:
rua rolei, sinistra, e rua boa,
prostituindo trocas, onde a vida
levava sustos e morria à toa,
ao látego da lei e da justiça.


E deslocando-me na incoerência
de nunca pertencer a qualquer parte,
(de um lado o pasto da potência cósmica
e de outro, as verticais empedernidas),
jamais se me aprofunda um tal saber
(o meu saber, meu Deus, já confundi!)
que sábios e profetas canonizam.


Mas a cidade avança.
Ultrapassa-me, enfim, esta cidade.
Impõem-se os decassílabos quarteirões
de onde vejo os arrabaldes:
meninos pelos becos e vielas pútridas
galopam corajosos, disparam
foguetes avisando seus próceres,
ó pátria encurralada.
As pipas ornamentam as sacadas
de laje tosca, mas o azul do céu
é apenas um detalhe. A guerra
é declarada.
A nova sociedade está formada,
sociedade anômica, mesclada,
o beco periférico expandido
agora é o invasor.

Cidade de concreto e mil insígnias,
das ilusões febris, encasquetadas,
tão surdas, mudas, rígidas, catárticas,
tornou-se numa só, medo e rancor.

E mói e mata e rouba e fere e grita
nos seus vários depósitos de horror
o inimigo da pátria maldita:
homem sem rosto, réu e criador.

No campo e na cidade a guerra troa
a última batalha, e incompreendida;
A confrontar a onírica cidade
e a terra chã — o beco sem saída.

 

 

 

 

 

 

19.05.2006