Orlando Tejo
e o agiota
Historiado pelo escritor LUIZ BERTO*
Era manhã de segunda-feira e Orlando Tejo invadiu
minha sala num aperreio que não era de seu costume.
-
Berto, tô encalacrado.
Não sei se vocês sabem, mas Orlando Tejo é o sujeito
mais calmo e descansado desse mundo, incapaz de se
aperrear até dentro de uma casa em chamas. Mas
naquela manhã, o homem estava mais agoniado do que
bacorinho em caçuá.
A
tranqüilidade habitual, emoldurada pelas serenas
baforadas no cachimbo, fora substituída por um
avexamento que, francamente, deixou-me curioso. E
largou o seu problema sem mais demoras:
-
É o seguinte: o novo gerente da Caixa Econômica é
meu leitor e se tornou meu amigo. Assumiu a agência
e me deu um cheque especial na sexta-feira.
Resultado: já estourei o limite em trinta mil
cruzeiros neste fim-de-semana.
Conhecedor da total inabilidade de Orlando para
gerir suas finanças, para mim não foi surpresa o
estouro no limite do cheque especial. Surpreendente
era a velocidade com que isso se dera. Recebera o
cheque na sexta-feira e na segunda já estava
pendurado. Em verdade, suas habilidades aritméticas
limitavam-se à soma das mais alegres lembranças, à
subtração de tristezas, à multiplicação da imensa
legião de amigos e à divisão de uma ternura e de um
lirismo que só mesmo pessoas encantadas como Tejo
estão autorizadas a ter.
Expliquei-lhe que estava duro e não poderia ajudá-lo
no momento. Estava sendo tão franco quanto, com a
mesma franqueza, lhe arranjaria imediatamente a
miserável quantia, caso a tivesse, para não vê-lo
naquele sufoco. Funcionário público só vê a cor do
dinheiro no fim do mês e, por infelicidade,
estávamos ainda no início da segunda quinzena.
Tentei explicar-lhe isso com tranqüilidade, mas ele
parecia insensível a qualquer argumento.
-
Mas eu não posso é ficar desmoralizado perante o
gerente, que é meu conterrâneo da Paraíba e me deu o
cheque especial em confiança, por amor aos meus
escritos. Um admirador, em resumo. Vai ser muito
chato…
Expliquei-lhe que pessoalmente não podia fazer nada.
Mas lembrei-lhe que, como em toda boa repartição
pública, a Câmara tinha o seu agiota de plantão para
socorrer os desesperados naquelas precisões
agoniosas. O anjo da guarda dos necessitados,
acudidor de precisões prementes, tão injustamente
malhado pelas pessoas gradas, mas capaz de salvar um
vivente de um sufoco sem fazer fichas, preencher
cadastros, telefonar para o SPC ou exigir
promissórias registradas em cartório. E dei a
indicação ao Tejo:
-
É só você procurar o Canindé.
Meu amigo João Canindé Tolentino Ribeiro entrou
nessa história como Pilatos entrou no Credo. Tão
lascado quanto qualquer um de nós, apenas
estabelecia o contato entre o agiota e os possíveis
fregueses, não ganhando nada com isso, salvo o fato
de se beneficiar com um juro mais baixo quando
também precisasse de dinheiro. Orlando Tejo não
sabia quem era Canindé, mas já tratou-o com uma
familiaridade que era bem do seu estilo.
-
Então ligue logo para esse filho-da-puta desse
Canindé, e diga que eu preciso de trinta.
Liguei para Canindé e ele disse que só poderia dar a
resposta de tarde. Estávamos ainda no começo da
manhã. Tejo não gostou mas teve que se conformar e,
logo após o almoço, já estava de novo na minha sala
à espera de notícias. Francamente, nunca lhe vira
tão agoniado.
-
Ligue logo para esse filho de uma égua, pelo amor de
Deus.
Canindé mandou dizer que, se o dinheiro saísse, só
sairia no dia seguinte. terça-feira. Transmiti o
recado ao Tejo e ele desesperou-se.
-
Explique a esse filho-da-puta que desse jeito vai
ser tarde demais. Os cheques que emiti devem entrar
hoje à noite.
Desolado com o drama do meu amigo, acompanhei com o
olhar a sua saída nervosa, pitando furiosamente o
cachimbo e maldizendo a sorte. A aura de lirismo que
marcava sempre sua figura estava seriamente
arranhada pela agonia que transpirava dos seus
poros. Pobre Tejo, necessitado de trinta neste vasto
mundão de meu Deus e ninguém para acudi-lo…
No
dia seguinte, quando cheguei à minha sala, já o
encontrei de plantão, sorrindo, esperançoso.
-
Acabei de me informar no banco: nenhum cheque entrou
ainda. Ligue logo para esse miserável desse Canindé.
Liguei. Canindé informou que só à tarde. Transmiti a
informação ao Tejo.
-
Assim não dá! Esse filho-da-puta quer me matar.
Na
primeira hora da tarde volta Tejo avexado.
-
Ainda não entrou cheque nenhum. Ligue de novo.
Liguei e Canindé disse para ligar dai a meia hora.
Transmiti a informação. Tejo deu uma puxada no
cachimbo e caminhou um pouco pela sala sem falar
nada. Ficou de costas para mim, olhando um ponto
indefinido na parede em frente. Sentou-se numa
poltrona.
E,
então, baixou o santo: Tejo ficou calmo de repente,
me pediu uma folha de papel e começou a rabiscar. Eu
acompanhava com um rabo-de-olho e procurava não
perturbar, pois sabia que ele estava em pleno
processo de criação. A mão corria devagar pelo papel
e, de vez em quando, ele fazia pequenas pausas como
se estivesse conferindo o que já havia escrito.
Estava tranqüilo e era outro homem, bem diferente
daquele que há poucos instantes necessitava
desesperadamente de trinta.
Levantou-se e me passou umas folhas naquela sua
caligrafia miserável que eu já estava habituado a
decifrar. A letra de Tejo, qual moderna Pedra da
Roseta, exige as habilidades de um novo Champollion
para trazê-la ao entendimento dos mortais comuns.
Comecei a ler e me dei conta da preciosidade que
tinha em mãos. Aquilo, realmente, era uma obra de
Tejo e ali estava o seu espírito paraibano,
nordestino, poético, moleque, imprevisível por
inteiro. Dar uma trégua ao aperreio para parir um
negócio daqueles, só mesmo vindo dele.
Para se entender o acontecido, vale ressaltar que a
história se passava na Câmara dos Deputados, cujo
presidente, à época, era o Deputado Flávio Marcílio
e que Delfim Netto era o então Ministro da Fazenda.
Um tempo tão da porra que ninguém jamais será capaz
de esquecer…
Vou transcrever do jeito que ele me deu.
LOUVAÇÃO A CANINDÉ
Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse: “Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.
E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
“Pela manhã não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo”.
Berto ficou de castigo
Esperando Canindé.
E eu que necessitava
Também da mesma quantia
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava
Quando eu menos esperava
O safado, de má fé,
Filho de puta ralé,
Disse que hoje não tem nada…
Ah! uma foice amolada
No chifre de Canindé.
Eu já podia notar
E mudar de interesse
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé.
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.
O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinqüente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.
Por capricho do destino
De Satanás ou Deus Brama,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia,
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.
Não sei como Luiz Berto
Este escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
A um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha ré
Pela estrada da virtude
E além de covarde e rude
Se assina por Canindé.
Antes quero outro “pacote”
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.
NOSSO AMIGO CANINDÉ
Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores…
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.
Tenho dito e sustentado
(Todo mundo sabe disso)
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
E em Brasília, Canindé.
Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé.
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão no pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.
Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé…
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.
Canindé pra ser beato
Só falta mesmo a batina,
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.
Mas sabem por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão
Lá nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava cafuné
Numa velhinha doente
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.
Nesse chão onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta…
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.
Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.
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