1. Um Poeta à Margem das Classificações
Mirian, aliás, Susana; Ajunt-Hotel;
Ayrton e outros e outros e outros são eventos que desconstroem
a maior parte do ensinamento da Poesia divulgado em todos os
nossos manuais de Teoria da Literatura. Quem o vê/ouve
declamando seus poemas se convence logo de que ele é
uma encarnação poética, que carrega dentro de si e
irradia poeticidade em estado puro. Essa experiência
premiou-me, há algum tempo, um banho de frescor sem
igual. Confesso, que no momento, ignoro de onde jorra a fonte,
e em que mar ela vai parar.
O certo é: eu que saí
de lá (Canadá) estou recebendo aqui nos trópicos
esse choque agradável como alguém que foi quase
empurrado de Sertão a dentro pela violência poética
de Soares Feitosa. Sua poesia trabalha entidades maravilhosas:
auroras inéditas, esplendor da infância, fauna
e flora da região das Secas, epopéias insuspeitadas
de misteriosos itinerantes, e - em contraste - a petulância
do capitalismo selvagem.
Ressoam em mim as modulações
dessa voz, ou melhor, desse coro, aqui “allegro andante”, ali
“mezzo voce”, cá no “modo menor”, lá no “modo
maior”.
É elegia, é epopéia,
é drama, é verso, é versículo, é prosa
narrativa, é História, é fábula,
é teatro. Impossível enquadrar Soares Feitosa
num gênero de discurso preestabelecido; daí estar
decididamente à margem de qualquer classificação.
Todavia, emerge uma propensão
à Cantata, uma Cantata-Poema ou um Poema-Cantata, de
múltiplas vozes, regulado por uma alternância
rítmica onde se enfiam de forma espiralada historinhas que puxam
historinhas e digressões que se tornam temas fundamentais
do Ser e do Existir.
Um dialogismo que não acaba,
um processo diruptivo no seio de uma profunda continuidade.
O novelo da escrita se desenrola, sempre se desenrola, de par
com a mesma força impulsionadora, isto é, sempre
sertenejando, no entanto sempre diferente pelo tom musical,
pelo aprofundamento dos incidentes regionais, conduzindo-nos
vertiginosamente para a residência da Vida e dos Valores imperecíveis.
Sem dúvida uma poeticidade
forte circula nessas páginas onde consegue fazer a abertura
máxima no acidente mínimo, seja esse acidente
de geografia ou de eventos. Palpita a presença de Dioniso
e Apolo, a sensibilidade de um homem que fala para todos os
Homens, todas as idades, todas as eras.
Atravessar esse Sertão poético
resulta em um estonteante estado de poesia, prazeroso,
galvanizante.
Obrigado, Soares Feitosa, por ter nascido e RENASCIDO. Daqui
em diante o caminho a percorrer é a difícil subida
dos Prometeus das Letras que não recuam perante o heroísmo
da Autocrítica, - mais dura batalha da maturidade poética.
2. Os poemas da Besta
Soares Feitosa é um fenômeno
neste final de milênio. Surpreendeu, há 2, 3 anos
atrás, com uma emergência repentina de poeta
cinqüentão; agora nos últimos dozes meses, Feitosa
perturba a ordem poética vigente empurrando os
escritores da página-papel para a página-tela.
Antes, contentava-se em construir poemas multidimensionados,
com incremento de tonalidade gráfica e cromática.
Agora incursiona, verdadeiro Steven Spielberg da arte literária,
no terreno exótico da crítica, do ensaio. É
claro que não se deve esperar aqui uma leitura te(le)ológica, reforçada de princípios
teóricos postos à prova, e de notas eruditas de pé
de página. Soares Feitosa ressuscita — como se
ela jamais tivesse sumido da história literária!
— essa imperdível crítica dos criadores
em que se ilustram para nosso prazer quase todos os melhores
poetas, ficcionistas e dramaturgos do hemisfério
ocidental. A fórmula a qual Feitosa veio a se filiar
é a de Anatole France, dando o crítico um flâneur, narrando
a aventura de sua alma por entre as obras primas do Universo.
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