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Vanessa Buffone



Cavalos d'Água


Sigo por uma estrada em traços de ouro,
nos rastros de uma estrela distraída,
corredeira dos ventos, voz do tempo,
vagas altas em que há melhor caminho.

Veios do mar, nos ermos de quimeras,
terra firme de todos meus inícios.
Recomeço-me inteira na viagem,
mares de alma e de lama, navego ímpetos.

São versos dos cavalos d'água que
galopam meu destino. Nestes olhos,
leitos negros que o sal floriu – meu rumo.

Abençoada sina desta estrada!
Nasci com o mar nos olhos, sempre úmidos,
e o corpo leve, nau a seguir seu prumo.
 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone



Rosa


Cabreira do mistério que carregava,
inocente do desejo que me absorvia,
me punia e queria:
tua boca em meus seios
a me sugar os cios.

E todo meu leite verti em rios,
gozos, espasmos,
meu pecado – seio imolado
e tuas mãos postas: a Deus e a mim.

Aninhado em meu colo – ventre em que te concebi,
dias e dias assim: tu e eu e meus seios e meu leite,
mãe de meu homem.

De tua boca rosa,
a auréola rosa dos seios,
a mulher que sugaste de dentro de mim.
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone



Traições


Às vezes estranho sua imagem,
na cama debruçam pergunta e espanto,
e num segundo o desconheço por completo.
O escuro revela apenas um vulto,
seus cabelos grandes,
seria uma mulher?
Qual delas?
E todos e todas me invadem o sono,
olhos numa casa de vidro,
povoando o filme de possibilidades.
Quem nunca me traiu à cama foi seu cheiro,
identifico-o longe, além de todos os sentidos
ao que lhe sinto e vivo,
e estou apaixonada de novo.
 

 
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Márcio Catunda

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone


 

Anjos negros costuram ciúmes


Uma mulher se aproxima.
Chega aos teus olhos sua imagem.
Ela também te vê.
Acontece a todo instante.

A caixa dos botões bonitos se abre,
anjos negros costuram encantos
em delicada blusa de algodão.
Desabotoam-se intenções e suspiros.

Uma imagem surge nos esconderijos da renda
em que bordei o teu ao meu nome.
– Como podes permitir tal invasão?

Anjos negros costuram minha boca,
silenciam meu ciúme,
pequeno ajuste para que a blusa,
um presente sem medida,
caia-me perfeitamente.
 
 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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João Batista Oliveira Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone



Travessia para o lado fatal


À porta, ouço vozes,
são minhas – tem gente nesta casa?
A chegada é deserta.
Silêncios respondem
por bocas ausentes.

Ainda à porta, ralham-me as dores:
não há ninguém nesta casa, sua tola!
À minha frente, o recanto das almas sem homens
corpos de dores, que erigi em seu nome.

Em toda parte, espaços que foram seus,
vazios que hoje habito sozinha,
entre uma miragem e outra:
você, fingindo estar vivo, lá no jardim, sempre tão lindo!
seus fantasmas, estas dores-homens além do homem,
(que insisto: não perdôo!)
e o meu amor, tal como antes, morto.

Não sei por quem mais chorar.
 

 
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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José Carlos A. Brito

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone



O amor das bestas-feras


Fera só ama fera, só deseja fera
Ildásio Tavares

 

Sou besta-fera que caminha à tua boca,
és o perigo a que chamo de lar,
jamais me senti tão segura.

Em teu leito, deito-me com os segredos que persigo,
com os dentes a que chamo abrigo.

Tua força violenta-me as idéias,
e estupra o mal que insiste em mutar.
Feridas me revelam o aprendizado da dor,
o amor que humilha.

Que Deus abençoe estes pobres amantes,
servos da violência divina!
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Vanessa Buffone



Terceira chamada


Talvez seja só isso: este alheamento,
este arquejar de mastros e velas,
partir e ficar de acasos,
destroços engolidos por memória curta,
estas desassombradas mãos vazias.

O corpo todo nu, feito do que vê,
amontoado entre tantos, na favela de mil olhos.
À noite, a menina luzia para os olhos da morte,
busca do brilho que prossegue sem ela...
Esquizofrenia aguda.

Caminhar até o fim como um marchante suicida,
em eterno comércio.
Destino de precipício, desatino que fascina e suga
e lá se vai minha boca, embora eu não queira.
Ah, meu corpo, inda agora arredondado aos seus cios,
se foi, caiu.
– Socorro, que frio!
Berros num silêncio vazio onde ecôo só,
presa no degredo de sentidos.

Nas retinas, impregnados estes suplícios torpes;
vento que passa alheio a tudo isso, surpreende o grito,
deixando no chão um rastro de saudade sem abrigo.

Eu, matéria feita de esquecimento e fome,
ofereço a língua lasciva ao indizível,
beijo-o, como-o e sigo.

 
 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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15/04/2005