Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Joanyr de Oliveira


 

Os mortos na penumbra


Os mortos na penumbra vão fluindo
as fibras intangíveis de seus corpos
num bailado medroso, a flutuar.
Contudo maneirosos vão sorrindo
a somar luas, píncaros e portos,
e a florescer as tíbias sobre o mar.

São corpos, flutuantes mas pesados
com pedras e destroços milenares.
O pétreo dos olhares seus espanta,
afugentando as mãos soltas nos ares.
São palmas e são dedos rejeitados,
são seres e entidades esquecidas
no ventre dos milênios sem vestígios,
nas conchas abissais de esconsas vidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

Joanyr de Oliveira


 

Nelson Mandela (*)


Estas ruas, negro prisioneiro,
não fazem livre. As gaivotas
buscam a paz do azul, pombos flutuam,
mas cadeias em meus pulsos
sangram o rosto da manhã inútil.


As velhas mordaças em tua voz
afogam minhas melhores palavras.
Faz frio em mim, negro prisioneiro:
estou a beijar tua história
em brancas mãos sufocantes.


Não estou hoje para Primavera
nem para as luzes e os anjos.
Sou um poeta de sangue e nervos
e a liberdade é minha sede.


Não estou para a antiga brisa,
estou sim para as ventanias.
Estou para os abismos à espreita
de punhos liberticidas.


Nelson Mandela, converso contigo
do coração de um pássaro em chamas.
Chego ao fundo de teu silêncio
no âmago desta noite indignada.


(*) Poema escrito em Boston, em 1988
(três anos antes da libertação de NM).


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

Joanyr de Oliveira


 

O poeta não veio para responder
    Ao Fernando Mendes Vianna


O poeta não veio para responder.
Nem para fazer: a água, o prado,
o pranto, o sonho, o susto, o grito,
o muro, a crença, a lança, o mundo...
O que existe já moldou sua própria fisionomia.
O que pulsa já mediu seus rumos,
sua intensidade real.
O que paira já estabeleceu sua correta cronologia.


O poeta não veio para responder,
senão para a tessitura das dúvidas e incógnitas.
Para a antevéspera, para a eternidade sem aplauso,
para o anverso da matéria, das normas, das teorias.
A exatidão jamais se casou
com a alma da poesia.
Nos meios-tons, reside a verdade perfeita.
No indivisível, tudo está sem turbação alguma.
No irrevelado, pontifica o coração do mistério.


Se quereis saber, indagai aos magos,
aos iluminados em seus montes e transfigurações,
aos espíritos salpicados de estrelas,
aos físicos, às dialéticas, à meteorologia, às aves,
à lucidez das loucuras.
Indagai a vós mesmos.


O poeta não veio para responder:
palavras deslizam em sua boca,
conceitos se ampliam mas, lívidos, desfalecem.


Os liames com o cosmo diluem-se num átimo
ante o verbo e a eloqüência.
Os tribunos (sim) estão para os transbordamentos.
Os pregadores, em seus santos delírios,
se espargem nas alturas.
(Colhei nos dilúvios de suas bocas.)


O poeta se oculta (e se revela)
no cernes dos entes e das coisas.
Seu domicílio é o inefável, o inviolado silêncio.
(Seus lábios pertencem aos deuses.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

Joanyr de Oliveira


 

Pastoreio


Fui pastor de destinos
soltos nas ventanias.


Fui pastor de sonhos,
de abismos e insônias.


Hoje pastoreio as horas,
colho o mel das palavras.


Pastoreio metáforas
na inocência do branco.


Pastoreio murmúrios
diluídos nos ermos


Pastoreio estribilhos
na memória e nas veias


Ovelhas não navegam
as águas de meus olhos.


Ovelhas não ruminam
o itinerário de meu verbo.


Ovelhas não buliram
a sofreguidão de meu rosto.


Hoje sem dardos e cajado
pastoreio a mim mesmo...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

Joanyr de Oliveira


 

O menino mutilado


Bagdá, seis de abril, domingo.
No subúrbio de Diala,
um menino chamado Ali Abbas
perdeu as mãos e o sonho.
O coração do mundo contraiu-se
ferido pela imagem enfática.


Seus pais se desintegraram
nas profundezas do sono.
Com que sonhariam no instante
em que o míssil desvairado
saltou sobre as velhas telhas
e o assombro total das paredes?


Os pais de Ali Abbas talvez
no seu amplo tapete onírico
navegassem o branco da paz.
O sonho, ingênuo e sem olhos,
não situa as portas detonadas.


O míssil de nome Tomahawk
bradou “não” e “não”, e categórico
fez da casa sombras e ruínas.
Devorou falanges, falangetas,
os braços, o amanhã e o sorriso
do guri sonhador Ali Abbas.


Comovido indagou Ali Abbas:
“Quem sabe poderias trazer-me
meus dois braços de volta?”


As lágrimas envoltas no silêncio
afagaram as palavras do menino
e odiaram o míssil e seu ofício
de antropófago no céu de Bagdá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

Joanyr de Oliveira


 

Era
(Apenas fábula, não fosse o fogo)
  Para Sebastião Salgado


Era onde os cipós seguravam os troncos
para abraçar a indolência das cobras.


Era onde as juritis espraiavam
fobia e pasmo entre os arvoredos.


Era onde as onças, em sonhos bem largos
ruminavam as horas e os silêncios.


Era onde os porcos-do-mato fuçavam
em busca dos segredos do reino.


Era onde as araras, pontificando,
minimizavam a retórica dos micos.


Era onde os macacos mais graduados
enalteciam os dias vindouros.


Era onde procissões de formiguinhas
teciam louvor a divindades herbívoras.


Era onde raposões e preguiças
orquestravam o hino de um país auriverde.


Era onde um concerto de grilos
cricrizava, a acordar o mundo.


Era onde o susto dos canários
apavorava as folhas e os ramos.


Era onde o frescor da sombra
afagava os ócios do menino.


* * *


Então, veio o fogo e comeu as árvores.
E bebeu a fonte. E engoliu as tardes.


E acabou-se a mata e acabou-se a caça.
E acabou-se a infância. E acabou-se a graça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens, Julgamento de Paris

 

Joanyr de Oliveira


 

O espelho

[...] uma nuvem de corvos no céu
pousa, quando anoitece, em teu espelho.
LEONARDO SINISGALLI

Quando se está apaixonado,
[estar desperto é uma traição.
JALALUDDIN RUMI



O espelho que lhe dei
são meus olhos, acesos
sobre seu corpo e cachos
estendidos nas tardes.


O verde de meus olhos
está nele – esperança
e sabor do impossível,
do que jamais terei.


O verde que lhe dei
e está em seu espelho
acompanha os seus gestos,
o seu mover de braços


ao ritmo do pente,
o vôo de seus perfumes,
nos passos e no rosto,
no enxaguar dos cabelos.


O espelho que lhe dei
não é apenas vidro,
é muito mais reflexo
do pulsar de minha vida.


Quando nele mirar-se
saiba que me está vendo
infiltrado nas horas
e no ar que nos separa.


No silêncio e nos sonos
ele fala por mim
onde nunca entrarei:
na sua indiferença,


no seu amor cerrado
sob portas de bronze,
sobre lençóis e fronhas,
junto a meigos sorrisos,


junto a palavras doces
entre quatro paredes,
contudo sem fronteiras
às asas de meus sonhos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Joanyr de Oliveira


 

Écloga


A noite liga o olhar das corujas
no anfiteatro das trevas.


É onde o choro dos primogêntos
rasga a flor dos corpos
com seus gumes entuarados.


Ali os anjos futuros
conclamam-se em rumores.


É onde os defuntos apascentam
a entremostrar-se aos eleitos.


Da terra o rosto se espraia
virginal e inviolável.


Rezadeiras nuas invocam
a súbita magia dos ventos.


É onde cosmonautas etéreos
aderem à argila e aos remansos.


As unhas dos vendavais
reclinam-se em bonanças.


As seivas pulsam, enroscam-se
em aurículos e ventrículos de barro.


Ali, todas as ausências
se investem de soberanias.


É onde as fúrias se convertem
em imunidades brancas.


O firme verde ovaciona
a amplidão de seu reino.


Os lívidos braços rurais
se cruzam e se fertilizam.


É onde as camadas dos tempos
consagram as divindades do azul.


E os mugidos todos se enlaçam
à madura memória das coisas.

 

 

 

 

 

 

04.11.2005