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Antonio Carlos Secchin


 

Linguagens


Notei que o vôo negro da hipálage
não tinha o mel dos lábios da metáfora,
e mais notara, se não fora a enálage,
e mais voara, se não fosse a anáfora.

Chorei dois oceanos de hipérbole,
duas velas cortaram a metonímia.
O pé da catacrese já marchava
no compasso toante dessa rima.

Verteu prantos a anímica floresta,
mas entramos dentro do pleonasmo,
‘stamos em pleno oceano da aférese...

Vai-se um expletivo, outro e outro mais...
Os poetas somos muito silépticos;
os poemas, elípticos demais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

"Estou ali..."


Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o barulho das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra o escuro da noite que nos trai.
Das mãos dele eu recolho o que me resta.
Chamo-lhe de menino. E é meu pai.

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

"De chumbo eram somente dez soldados"
A José Maurício Gomes de Almeida


De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.

 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

Concorde com Freud


Matou o analista e foi a Miami.
Na fuga, levou a reboque
a série inglesa de Hitchcock.

Damas ocultas em jardim sem medo
se ofereciam em zoom
para levá-lo a lugar nenhum.

Comparado a seu rosto, dir-se-ia negro
qualquer giz; tal qual surge, intenso,
um osso, no raio-x.

Indagado na fila do passaporte,
declarou que só trazia
na mala a morte.

A tudo respondeu solene e quieto
com minúcias tediosas
de um hemograma completo.

Da mãe herdara um trono abandonado,
escondido numa esquina da infância
e no calibre três-oitão recuperado.

Queria entrar no Reino da Fantasia,
saudar Minnie, Pateta, Alice e a Madrasta,
e com o mel do amor e o mal da teimosia

suplicou à polícia a dádiva de um dia.
Voltou algemado, em classe econômica,
sendo também proibido

de ligar até um fone de ouvido.
Desejou marcar nova sessão,
mas no Paraíso não se dá plantão.

Caju, Catumbi, João Batista,
num deles mora hoje o analista.
Órfão pela terceira vez,

passa o dia jogando damas
na cela do xadrez. Viver, agora,
quando tantos dissecaram sua história,

lhe parece bem mais fácil:
ele, sem qualquer ajuda,
conseguiu escrever o posfácio.

 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Roberto Pompeu de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

Artes de amar


Amor e alpinismo                         sensação simultânea
                                               de céu e abismo


Paixão e astronomia                     mais do que contar estrelas
                                               vê-las
                                               à luz do dia


Amor antigo e matemática            equação rigorosa:
                                               um centímetro de poesia
                                               dez quilômetros de prosa

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Álvaro Pecheco

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

Arte


Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem depois no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Cinza do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal pegando fogo
pelo berro do espantalho.

 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Thiago de Mello

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

À noite


todas as palavras são pretas
todos os gatos são tardos
todos os sonhos são póstumos
todos os barcos são gélidos
à noite são os passos todos trôpegos
os músculos são sôfregos
e a máscaras, anêmicas
todos pálidos, os versos
todos os medos são pânicos
todas as frutas são pêssegos
e são pássaros todos os planos
todos os ritmos são lúbricos
são tônicos todos os gritos
todos os gozos são santos

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Ricardo Alfaya

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

"À noite o giro cego..."
A Ivan Junqueira


À noite o giro cego das estrelas,
errante arquitetura do vazio,
desenha no meu sonho a dor distante
de um mundo todo negro e todo frio.

Em vão levanto a mão, e o pesadelo
de um cosmo conspirando contra a vida
me desterra no meio de um deserto
onde trancaram a porta de saída.

Em surdina se lançam para o abismo
nuvens inúteis, ondas bailarinas,
relâmpagos, promessas e presságios,

sopro vácuo da voz frente à neblina.
E em meio a nós escorre sorrateira
a canção da matéria e da ruína.

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Secchin


 

Soneto das Luzes


Uma palavra, outra mais, e eis um verso,
doze sílabas a dizer coisa nenhuma.
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.

Agora é hora de ter mais seriedade,
para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
mas não se cansa de acenar um não eterno.

Falar de amor, oh pastor, é o que eu queria,
porém os fados já perseguem teu poeta,
deixando apenas a promessa da poesia,

matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus frecheiro me lançasse a sua seta,
eu tinha a chave pra trancar este soneto.

 

 

 

José Saramago, Nobel

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Natércia Campos