Carvagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

André Seffrin

8.3.2003


 

Poeta João Cabral entre a pedra e a paisagem

Piedra fundamental: poesía y prosa, João Cabral de Melo Neto, coord., prólogo, cronologia e bibliografia de Felipe Fortuna. Seleção e posfácio de Antonio Carlos Secchin. Biblioteca Ayacucho, 436 páginas

Paisagem tipográfica: homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920-1999), vários autores. Colóquio/Letras n 157/158. Fundação Calouste Gulbenkian, 463 páginas

JOÃO CABRAL: para ele, o  ofício poético lembra a  máquina 'que serve para fazer algodão de açúcar'. Arquivo

André Seffrin

Na abertura de “Paisagem tipográfica”, Antonio Candido conta a história de “um velho artigo”, que ali se reproduz. Nada demais... Não fosse esse artigo um verdadeiro desmonte da máquina, premonitório de tudo que viria a ser escrito sobre esse que é um dos mais complexos escritores da literatura brasileira do último meio século: João Cabral de Melo Neto. Ele agora é motivo de duas publicações de alto requinte gráfico e de indiscutível valor documental e crítico: a referida “Paisagem tipográfica”, edição da revista Colóquio/Letras, e “Piedra fundamental: poesía y prosa”, na prestigiosa Biblioteca Ayacucho.

Coleção destaca literatura canônica da América Latina

Publicada em Caracas, na Venezuela, a Ayacucho cuida dos textos canônicos das literaturas dos países da América Latina. No caso do Brasil, tem privilegiado ensaístas e ficcionistas — Gilberto Freyre, Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Silvio Romero, Lima Barreto, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Jorge Amado e outros —, incluindo um volume sobre arte e arquitetura do modernismo, edição de Aracy Amaral, e também um outro dedicado aos testemunhos (1500-1700) da fundação do Brasil, com organização de Darcy Ribeiro. Excluindo-se a “obra escolhida” de Oswald de Andrade, este de agora é o primeiro voltado integralmente à poesia brasileira. No total, são 17 volumes dedicados ao Brasil, quase sempre de autores vinculados ao realismo social latino-americano, clara tendência da coleção.

“Piedra fundamental” é um modelo do ponto de vista crítico e historiográfico. Coordenador da edição, Felipe Fortuna preparou a introdução, a cronologia e a bibliografia. Antonio Carlos Secchin, por sua vez, cuidou da seleção dos textos e do posfácio. Os tradutores para o espanhol, na ordem da folha de rosto: Carlos Germán Belli, Ángel Crespo, Santiago Kovadloff, Yhana Riobueno e Márgara Russotto. As traduções datam do final dos anos 1970 ao início dos 90, mas sofreram “modificações e ajustes para a presente edição”. A presença de Ángel Crespo é digna de nota. Apesar de constarem do livro apenas as suas traduções de 1994, ele é o mais antigo (desde 1962) e devotado tradutor de Cabral para o espanhol.

Maior estudioso do autor de “A educação pela pedra”, Secchin afirma que o poeta ainda não foi suficientemente lido em sua complexidade. No entanto, acrescento por minha conta, sua influência é sentida de forma crescente e contínua, sobretudo porque o número de epígonos parece aumentar mais ou menos na medida das numerosas polêmicas que as suas habituais declarações idiossincráticas provocam. Compiladas por Félix de Athayde em livro de 1998 (“Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto”), elas são uma espécie de tratado axiomático, repositório infindável de idéias e métodos composicionais do autor, imprescindíveis para a compreensão da sua “diferença” e da posição sui generis que lhe cabe na história de nossa literatura. Posição, como é sabido, não de todo sedimentada — circunstância que, em certa medida, a afirmação de Secchin sinaliza.

Curiosidades bibliográficas ajudam a entender o poeta

Marcada primordialmente por um formalismo despido de sensualidade lírica e por estruturas geométricas baseadas no metro curto, trata-se de uma obra que não se entrega facilmente ao leitor. Seus “poemas em voz alta”, como “Morte e vida severina”, de maior apelo popular, pouco dizem de sua complexidade. Talvez por isso em “Piedra fundamental” se tenha dado ênfase a um recorte didático, maneira simples de pôr o leitor dentro do universo do poeta e sem acidentes de percurso. Para facilitar mais a tarefa, à seleção da poesia agregaram-se ensaios como “Poesia e composição”, “Considerações sobre o poeta dormindo”, “Joan Miró” etc., nos quais João Cabral abre meio palmo de janela ao nosso olhar curioso para o que ele mesmo chama de “as leis de sua composição”.

Segundo Felipe Fortuna, ao contrariar os excessos metafísicos da tradição poética brasileira, caracterizada pelo barroco e pela eloqüência lírica, João Cabral recusa a metáfora fácil e a incontinência verbal. Ao tratar do mesmo assunto, Secchin lhe acrescenta algumas curiosidades biobibliográficas, entre as quais um diálogo entre Cabral e Vinicius sobre o uso excessivo, por parte deste último, da palavra coração em determinadas canções. Cabral sugere mudar de víscera: “Por que não fígado, pulmão, pâncreas?”. Estes pequenos dados, um tanto circunstanciais, costumam dizer muito do papel catalítico e disciplinador de sua atitude. Poeta do concreto, das palavras que devem expressar exatamente aquilo que são, ele deplora a abstração e o lirismo.

Entre outros aspectos sugestivos apontados pelas análises de Secchin e de Fortuna, o dos vínculos do poeta com o concretismo renderiam considerações mais extensas e, claro, curiosas. Porque, é fácil perceber, os desdobramentos de toda essa vertente formalista pós-Geração de 45 permanecem à espera de abordagens menos impermeáveis à diversidade do século XX. Essas e outras questões, latentes em vários segmentos da poesia brasileira contemporânea, seguem irresolvidas. Drummond diria secamente: a poesia sempre é escrita para depois.

Em carta a Clarice Lispector, ao falar sobre a construção de um determinado livro, João Cabral foi buscar um paralelo ao seu ofício de poeta naquela “máquina que há nas ruas do Rio, que serve para fazer algodão de açúcar”. É página que esclarece mais do que se imagina sobre o seu processo de criação e sua reflexão sobre a poesia:

“Você a olha, no começo e só vê uma roda girando, depois, uma tênue nuvem de açúcar se vai concretizando em torno da roda e termina por ser algodão. A imagem me serve para dizer isso: que primeiro a roda, i. é, o trabalho de construção; o material — que é a inspiração, o soprado pelo Espírito Santo, o humano, etc. — vem depois: é menos importante e apenas existe para que o outro não fique rodando no vazio (prazer individual, mas sem justificação social, imprescindível numa arte que lida com coisa essencialmente social, como a palavra)”.

Dossiê com poemas inéditos de João Cabral

A partir daí seguem todos os estudos que se propõem a desvendar um pouco das complexidades que a sua obra comporta, na fímbria daquelas dificuldades de leitura percebidas por Abel Barros Baptista, outro crítico que desmonta a máquina.

A carta a Clarice e o ensaio de Abel estão em “Paisagem tipográfica”, dossiê que reúne fortuna crítica, poemas inéditos (de Cabral e de outros poetas), fac-símiles e depoimentos. Comparecem Benedito Nunes, João Almino, João Alexandre Barbosa, Sérgio Martagão Gesteira, Eucannã Ferraz, Antonio Carlos Secchin, entre muitos outros. De 1943 é o texto clássico de Antonio Candido, referido no início deste artigo e que, nas palavras do próprio João Cabral, previu tudo o que ele iria escrever no futuro, a influência do cubismo, o construtivismo, uma poesia das coisas, distanciada do “eu” lírico. Perspectivas essas amplamente estudadas pelos críticos que organizaram “Piedra fundamental”.


ANDRÉ SEFFRIN é crítico literário

 

 

Jorge Amado

Início desta página

Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

André Seffrin


Tumulto de amor e outros tumultos: criação e arte em Mário de Andrade

 

Ruy Espinheira Filho

Record, 316 páginas

 

UM FRANCO-ATIRADOR QUE SABIA DIZER AS COISAS

 

Nestes 80 anos da Semana de Arte Moderna, a publicação de um livro como Tumulto de amor e outros tumultos: criação e arte em Mário de Andrade, no qual Ruy Espinheira Filho se propõe modestamente a “repor em discussão o pensador Mário de Andrade”, é um acontecimento que não devemos perder de vista - ao lado desse outro acontecimento intelectual que é o recém-lançado volume 2 da Correspondência, as cartas de Mário e Tarsila do Amaral, organização de Aracy Amaral (Edusp). Antologia admirável daquilo que podemos chamar o apostolado da arte em Mário de Andrade, Tumulto de amor e outros tumultos apresenta ainda outras qualidades: é um manual sobre arte e sobre criação para o iniciante com pretensões literárias, e um ensaio que se lê com prazer, sobretudo porque escrito por uma sensibilidade de poeta.

Distante do jargão acadêmico, Ruy Espinheira Filho se empenhou em realizar o perfil intelectual de um de nossos maiores ícones literários e por meio dele elucidar os problemas cruciais da arte do nosso tempo. Repetindo a proposta de Lêdo Ivo há cinqüenta anos (secundado por Drummond em 1982), o que Ruy nos sugere é uma revisão urgentíssima da “lição” de Mário de Andrade, que disse ao fim da famosa conferência de 1942: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”. É provável que uma das suas grandes lições seja mesmo a da censura aos excessos do movimento modernista, lição que, para Ruy Espinheira Filho, talvez se consubstancie hoje no ressurgimento do lirismo diante dos impasses da técnica versus intuição criadora, ou, como apontou Antonio Candido, de algumas “experiências técnicas” presas mais aos domínios da poética do que da poesia.

Ao contrário de Ruy, que atribui apenas aos ecos do parnasianismo os desacertos em que naufragou grande parte da poesia do nosso tempo, prefiro ver essa questão de uma maneira mais elástica: além dos cacoetes parnasianos, há os cacoetes modernistas e, último porém primeiro, a dos neo-românticos de hoje e também a dos adeptos de uma das mais antigas fórmulas da poesia universal - os concretistas. Cada qual defende o seu território, pois cada época, cada movimento ou mesmo cada geração produz seus paladinos e seus franco-atiradores. Todas as vanguardas se parecem e no universo da literatura são os planetas e os seus satélites, os eventuais cometas e os meteoros, todos no seu espaço e no seu tempo, que vão formar o todo orgânico que chamamos literatura. De maneira que cada época tem o paladino ou o franco-atirador que merece. O início do século 20 foi para os brasileiros um momento de sorte, pois tivemos um Mário de Andrade e “seu muito e desprendido amor”, nas palavras de Drummond.

A obra de Mário, todavia, não permite o engano: não se trata exatamente de um paladino mas de um franco-atirador que sabia dizer as coisas, sabia se valer do artifício ou da blague para bem divulgar uma idéia, sabia ver além das diretrizes de escola e das modas, com um conhecimento que não era de um diletante mas de um pensador da arte, multiplicado em atividades quase díspares sem perder a unidade, criador com a “coragem de errar”, ou a “coragem de criar livremente, o exercício da sua personalidade”, como ele próprio escreveu a respeito do II Salão da Família Artística Paulista, em 1939. Sem falar nas atitudes generosas, na abertura para o outro, marcas indissociáveis de sua vida de homem e de artista.

Mais que “um esforço de pesquisa e discussão de idéias”, Ruy Espinheira Filho escreveu um livro que se define como “um gesto de esperança” contra a voga formalista e a tendência simplista de enquadrar a arte numa camisa-de-força conceitual, seja demasiadamente presa ao passado, seja demasiadamente crédula nos paraísos artificiais da modernidade. É nesse sentido que ele parece ter oxigenado a discussão em torno do que há de mais vital no pensamento de Mário, baseado sobretudo na correspondência e em alguns textos que tiveram pouca divulgação até agora. Tumulto de amor e outros tumultos é, pois, uma antologia exemplar de tudo que Mário de Andrade nos disse a respeito da arte, de seus processos, de sua validade, de sua realização estética e ética. Livro que trata dos mistérios da criação, nele cabem discussões sobre o plágio, sobre os limites entre lirismo e arte ou entre coração e inteligência, técnica e “inspiração”. Mais que uma radiografia da personalidade literária de Mário de Andrade, é um espaço aberto ao debate sobre os problemas da arte em geral e do homem em particular, a função da arte na sociedade e do papel, mesmo que involuntário, do artista no seu tempo.

Contudo, dos pontos de vista que podem fragilizar o livro, destaco primeiramente o da reiterada crença na total limitação dos poetas parnasianos. Se é certo que “o poeta parnasiano era mais poeta quanto menos parnasiano fosse”, não creio que se possa repetir o lugar-comum segundo o qual o movimento não produziu grandes poetas. Sim, porque temos que reavaliar o Parnaso com o devido distanciamento, conforme a consideração recente de Antonio Carlos Secchin (cf. Claufe Rodrigues e Alessandra Maia - orgs, 100 anos de poesia, O Verso, 2001), a qual, diga-se de passagem, nestes tempos inóspitos, e por sua alta voltagem crítica, merece releitura permanente. Sobretudo reavaliar o Parnaso com o devido distanciamento dos postulados modernistas, podemos acrescentar agora, sugestão que é do próprio Mário em carta a Manuel Bandeira, datada de 11 de maio de 1929: “Porque não pense que imagino ser perfeitíssimo em meus atos morais, Manuel. Sou como todos os outros, já confessei publicamente erros morais meus, desfazendo um mal que fizera antes (caso dos “Mestres do Passado” que depois pela América Brasileira confessei ser falso porque de propósito eu apresentara os defeitos e ocultara as qualidades dos em questão)...” Carta esta que Ruy Espinheira Filho cita em nota de pé de página. Nesse passo, é importante ressaltar que a triste herança do parnasianismo atualmente divide o mesmo espaço com a triste herança do modernismo, ou seja, a confiança ingênua nas facilidades do verso livre, a total ignorância das regras básicas da metrificação etc., fatos que não passavam despercebidos à inteligência crítica de Mário de Andrade, sem nenhum favor um de nossos melhores e mais aparelhados analistas de poesia, bem como ao próprio Ruy: “... escrever sem métrica e rima não faz caminho livre para o trânsito da pureza lírica. A não-obrigatoriedade desses recursos enganou - e ainda engana - muita gente, mas nunca os poetas propriamente ditos.”

Outro aspecto que merece um olhar distanciado - melhor seria dizer desconfiado - é o dos expurgos de trechos e de cartas inteiras na correspondência marioandradiana, cuja publicação se intensificou nos últimos vinte anos.  Para Ruy Espinheira Filho, esses eventuais cortes “...não tiveram muita importância. Na maioria das vezes, certamente nenhuma.” (p. 85). Talvez contrariando essa afirmação, ao que tudo indica de maneira involuntária, à página 228 o autor reproduz carta de Mário a Prudente de Moraes, neto, não incluída na conhecida correspondência (Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto: 1924/36, Nova Fronteira, 1985), e divulgada posteriormente por Flávia Camargo Toni (1987). O teor das críticas que Mário faz a Villa-Lobos pode justificar plenamente a ausência dessa carta no volume publicado em 1985. Na dúvida, as controvérsias em torno do que se publica e do que não se publica dessa correspondência, que não são recentes, merecem um tratamento cauteloso.

Nada disso, é claro, compromete a excelência do livro. É sabido que todas as gerações e movimentos produzem grandes artistas e artistas menores, a despeito dos vícios e das regras que tais gerações e movimentos engendram. É isto, afinal, o que Tumulto de amor e outros tumultos exemplifica magistralmente ao fazer um levantamento admirável de tudo que um criador do porte de Mário de Andrade pensou sobre criação e arte. Um livro que passa a integrar a biblioteca básica dos estudos sobre o autor de Amar, verbo intransitivo e, conseqüentemente, do modernismo.

 

André Seffrin é crítico literário

 

Ruy Espinheira Filho

 

 

Manoel de Barros

Início desta página

Maria Azenha

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

André Seffrin

9.7.2001


 

PALAVRA E LABIRINTO

André Seffrin

Foed Castro Chamma talvez tenha sido um dos poetas mais superestimados de sua geração, sem deixar de ser, também, um dos mais injustiçados. Superestimado ele foi, principalmente, em fins dos anos 50 - as injustiças vieram com o passar dos anos, e condicionaram um afastamento editorial que é, como apontou recentemente Carlos Newton Júnior, um crime contra a literatura nacional. Sua poesia, num primeiro momento, amedronta e fascina, e suas preocupações de ordem filosófica podem parecer herméticas. Só aos poucos vamos penetrando essa rede de signos, cada vez mais próximos aos recessos líricos que a sua trama cerrada oculta, denunciando uma índole pouco afeita a pequenos núcleos poéticos, tão comuns na lírica contemporânea.

Antes de mais nada, vale ressaltar que os seus altos vôos de ânimo filosófico não são de agora, e desde cedo ele se definia um poeta com a ambição do poema-rio. O contato com Jorge de Lima, anterior à publicação de Invenção de Orfeu, não foi um episódio gratuito. E mais: desde os anos 50, como veremos adiante, germinavam nele os andamentos de Pedra da transmutação (1984). A matéria que publicou num jornal de sua cidade natal é, nesse sentido, e por vários motivos, paradigmática:

O poema circunstancial, a meu ver, já não encontra em nossos dias grande praticabilidade e a poesia, ou se exacerba naquelas experiências requintadas da vanguarda, ou retorna ao grande leito de sua origem dramática, que o romance usurpou, e se desenvolve viva na linha difícil mas perceptível do imaginário, cujos exemplos são a Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Amers, Exil, Croniques, de Saint-John Perse, Os cantares, de Ezra Pound, The four quartets, de Eliot, etc. (...) Dentro de um esquema de evolução do poema circunstancial para o poema maior, a minha experiência com o poema Ir a ti é tão ambiciosa quanto com Labirinto, pois ambos atendem a um sentido duplo e simultâneo: o objetivo e o subjetivo se mesclam, e o que há, na verdade, é a procura do poema maior - o poema-rio. (Irati, fev. 1966)

Na altura da experiência “didática” (como apontou Hélio Pólvora) de O poder da palavra, em 1959, Foed já formulava aquele que seria o poema de sua vida (Pedra da transmutação), do qual Labirinto (1967) é uma antecipação, e para o qual Ir a ti (1969) representa não apenas um preparo, mas uma aventura de linguagem particular, que não passou despercebida ao hoje esquecido crítico José Batista (O Globo, 8 nov. 1969). Mencione-se ainda que a cristalização da palavra poética em Ir a ti não escapou também aos olhos experimentados de Fábio Lucas.

Recuando a 1953, ao primeiro livro, Melodias do estio, temos a revelação de um temperamento romântico que, através dos anos, sofreu alterações sem nunca dispersar-se. O título, emprestado a Fagundes Varela, induz a erro, cometido por um compêndio recente sob a responsabilidade de pesquisador distraído: “melodias do estilo”. É um engano quase sintomático frente aos caminhos que o autor assumiria mais tarde. O poeta de 1953, alheio aos terremotos que, naquela época, abalavam a poesia, habitava uma pátria distante na qual a poesia era uma espécie de anacronismo, uma fatalidade. De maneira que pouco desse livro sobreviveria quando seu autor se viu ao relento das vanguardas. Já nos poemas formalmente claudicantes de Iniciação ao sonho (1955), é notável a manipulação de uma rede temática e uma apropriação de vocábulos que se tornou característica do autor.

Quanto ao livro de 1953, não foi à toa que um poeta da mesma geração, Ferreira Gullar, confessou que a poesia era, à época, uma descoberta de conseqüências imprevisíveis porque, antes disso, “quando comecei a escrever - por volta dos treze anos - pensava que todos os poetas já haviam morrido, e mesmo assim entreguei-me entusiasticamente a esse ofício de defuntos.” (Uma luz do chão, Avenir, 1979). O caminho percorrido por Foed, no que diz respeito aos anos 50, não dista muito de Ferreira Gullar, como não dista muito de grande parte dos poetas da geração. O poder da palavra foi publicado cinco anos depois de A luta corporal (1954), e ambos são livros programáticos. Se, no caso de Gullar, procurava-se a reconstrução a partir da desconstrução (caso de um poema como “Roçzeiral”, por exemplo), em Foed preponderava o verbo, sua “aritmética de pedra e explosão”, seu fogo e ouro, proposta de uma poesia possível, mais na linha de um Mário Faustino, bem ao gosto de uma geração que, como se sabe, não lutou contra as vanguardas, antes soube conviver com elas. Não vamos agora cair novamente no bizantinismo das discussões dos prós e contras das vanguardas dos anos 50, embora seja bom assinalar que quase todos os poetas que Assis Brasil chamou de “geração da imagem” (para citar poucos: Fernando Mendes Vianna, Mário Faustino, Octávio Mora, César Leal, Affonso Ávila, Walmir Ayala e Lélia Coelho Frota), não se opunham tão radicalmente aos concretos - como, de resto, é sabido, os concretos não propunham nenhuma novidade, nada que já não fosse conhecido da arte poética. 

Com Iniciação ao sonho, mantendo uma distância cuidadosa das suas leituras dos poetas românticos (Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela e outros), Foed caminhou para O poder da palavra, que, do título à estrutura, é uma plataforma poética. Esse livro confirma-o definitivamente na geração, seja porque nos sonetos da série “Chaves” o domínio da matéria revela mais que habilidade, uma inquietante musicalidade, seja porque alguns poemas, sozinhos, mostravam-se num nível mental muito acima de tudo que o poeta havia escrito até aquele momento. Mais: poemas como “O mágico”, “Arte mágica” ou “O invisível” - nos quais o ímpeto filosófico (e o referencial emprestado a alquimia, por exemplo) é um traço forte e marcante -, antecipam andamentos futuros.

No tempo em que grandes poetas discursivos, num indisfarçavel desejo de cortejar as vanguardas, não se furtaram a experimentar, inutilmente, algumas idéias concretistas, o autor de O poder da palavra, ao contrário, apenas procurou domesticar um espírito romântico e um surrealismo latente que passariam a acompanhá-lo diuturnamente. Rastros romântico-simbolistas vamos encontrar em muitos sonetos das “Chaves”, como por exemplo no último terceto de um deles, onde aparece “o cisne/ a se clarear nas águas da alvorada”. Nesses polos de agreste liturgia o poeta equilibrou seu discurso, que a partir de Labirinto passa a apresentar um compasso de extração neo-simbolista. Ainda nos sonetos de O poder da palavra, dispostos à moda inglesa (Shakespeare), o que sobressai é o acento elegíaco e os andamentos musicais. O soneto! Esparsamente, escreve-se muito sobre o soneto, mas o seu levantamento, na literatura brasileira, ainda aguarda um historiador competente. 

Todavia, se os poemas de Labirinto prenunciam os planos reiterativos de Pedra da transmutação, também antecipam a depuração de linguagem de Ir a ti, sem dúvida um momento até agora pouco estudado na poesia do autor, exceção feita à rápida análise (bachelardiana) de José Batista, referida anteriormente. 1971 é, nesse passo, um ano importante: com a publicação de O andarilho e a aurora, que reúne sua obra até aquele momento, o poeta recusou os dois primeiros livros, juntou os três posteriores e deu a público, pela primeira vez, um fragmento do poema-rio que só treze anos depois seria publicado e no qual confluiram todas as águas de sua poética: Pedra da transmutação. 

De fato, O andarilho e a aurora encerra o percurso inicial e prepara o caminho para o livro de 1984, cuja história remonta ao fim dos anos 50, conforme entrevista do autor a Walmir Ayala:

Há precisamente ano e meio venho me preparando com certos estudos, sobretudo de mitologia, para um poema, carregado de encantações, no qual pretendo o absurdo, e temo, mas realizarei. L’Encantation virgilienne, de Marie Desport, tem me valido de roteiro preliminar, além de Odisséia, o Fausto, de Goethe, a Divina comédia, a Teogonia, de Hesíodo, As metamorfoses, e outras obras clássicas. (Jornal do Brasil, 8 ago. 1959, Suplemento Dominical)

A mutação dos títulos desse grande poema explica alguma coisa do longo período de amadurecimento da idéia e a sua realização definitiva: O livro das alucinações, O andarilho e a aurora, Geometria da sombra e por fim Pedra da transmutação. Dez mil decassílabos dispostos em dois mil e quinhentos quartetos. Poema órfico, mergulho numa mitologia de revelações agônicas, denuncia um processo que se autorefere a todo momento, numa orquestração genesíaca. Só o vocabulário de que se utiliza suscita um estudo à parte, onde se destacam palavras-chaves como o ouro, o ovo, a Natureza, a sombra, o sol, o cego, o duplo, o fogo, o espelho, a pedra. A partir daí, criam-se dialogismos internos que conduzem a um núcleo, à idéia do círculo ou do infinito, muito embora, como quer Marco Lucchesi: “Para dizer como os místicos, o centro de seu poema está em toda parte, embora a circunferência não se encontre em parte alguma.” Uma construção ciclópica que gira “nos limites da enorme pedra obscura” e que se completa presa ao mistério do uroboro:

cuja cauda acompanha o soluçar
de círculos de ferro sem o espanto
que torna a sombra mais difícil no ar.

(...)

O seu ventre de treva gera o atrito
a repartir-se em luz, colado rente
à face do que, dividido em dois,
é círculo, e a cauda da serpente.

A poesia, para Foed Castro Chamma, como escreveu Wilson Martins a respeito de Saint-John Perse, “é uma criação da inteligência, é um raciocínio sobre a emoção e a tentativa de estruturar uma língua que fosse ou seja, contraditoriamente, poética em si mesma”. Tal qual Edgard Allan Poe, Foed também poderia ter escrito a “filosofia da composição” de seu poema. Mas não escreveu, de maneira que se tornou lugar comum registrar os muitos caminhos de leitura para essa floresta negra da Pedra da transmutação. Registre-se ainda que a regularidade métrica e estrófica, diante da magnitude do poema, pode não passar de um mero dado estrutural, mas é talvez fator preponderante da tendência fatal e manifesta, em determinadas passagens, à monotonia e, às vezes, ao exercício hermético (que poema longo escapou disso?). Esse é um dos tantos desafios para o leitor. Tanto quanto os conhecimentos da alquimia, da mitologia etc., que nos limitam certas entradas, os elementos biográficos presentes em vários trechos não devem ser desprezados. Alguns depoimentos do poeta para jornais e revistas ajudam a elucidar esses pontos: “Precisava livrar-me de meus demônios interiores e, no início do trabalho, fui perseguido por toda sorte de alucinações”, disse em entrevista a Ricardo Vieira Lima (Tribuna da Imprensa, 11 abr. 1995). 

Os fundamentos da alquimia, contudo, conduzem-nos às suas origens no estoicismo, que nos remete a leituras da filosofia greco-latina, um referencial que pode começar em Heráclito e chegar aos nossos dias - horizonte que as epígrafes de Hart Crane e Hesíodo, de certa forma, acusam. Contra tudo o que se tem dito a respeito dessa obra, creio que a sua linhagem não estaria exatamente no Jorge de Lima de Invenção de Orfeu, que recua ao Sousândrade de O Guesa, ao Manuel de Araújo Porto-Alegre de Colombo, ao Bento Teixeira de Prosopopéia, ao Camões de Os Lusíadas, ao Virgílio de Eneida, a Homero, numa regressão conhecida - pois a Pedra da transmutação não é poema narrativo nem um épico nacionalista.

Nessa mesma linha, paralelos com Milton e, como apontou César Leal, com o Lucrécio de A natureza das coisas, com Goethe, Dante e, de novo, Homero, talvez não passem de especulações programáticas - e, como tais, só eventualmente poderão auxiliar no esclarecimento dos vários pontos obscuros nos quais o livro é pródigo. De fato, O Guesa, conforme anotou Fausto Cunha em livro indispensável sobre o romantismo no Brasil, é quase todo construído em quartetos decassilábicos - o que, vale reiterar, não vai além de um dado técnico sem muitas ressonâncias para o que nos compete aqui.

Por fim, nos sonetos de Sons de ferraria (1989), o poeta prolonga a sua magia verbal ao abrir as portas de sua oficina, seu laboratório

do lavrador de pedras, de metais,
a trabalhar com o calor das mãos
as fulgurantes ligas de uma fórmula
alquímica no forno da oficina.

vinculado sempre, e visceralmente, à sua vivência na qual a poesia é instrumento de encantação de um oficiante,

lavrador de pedras, de metais,
a trabalhar com o fulgor da brasa
as misteriosas ligas de uma fórmula
alquímica na obscura ferraria

conforme registra na segunda versão desse mesmo poema. Um sinal de que a arte mágica das palavras é contínua, um

metal precioso
do sol a rebrilhar na pele escura,
a faiscar no olhar, nas curvas breves
das filhas de hélio como belas pérolas
da noite

território de domínios metafísicos, mediúnicos, que não permitem explicação e que transcendem qualquer parafernália técnica:

Que os amados dos deuses tocam fímbrias
do fogo sem queimar-se também sabem 
os poetas, pois eles com a luz 
cresceram e coroam-se humildes
na mais santa loucura.

A partir desses sonetos que guardam muito do intrincado musical de Pedra da transmutação, chegaremos a essa totalidade existencial que o conjunto da obra espelha, e podemos assim penetrar nas suas “ruínas do tempo”, conduzidos por esse dínamo de alegorias que é o poeta, num trânsito que não termina, pois recomeça onde

a luz é matéria
em movimento,
o sangue
é pensamento.

Pastor do absurdo, Foed Castro Chamma trabalhou incansavelmente na filtragem de todas as suas alucinações. Se a sua idéia era fazer com que tudo que escrevesse tomasse o rumo da obra única e definitiva, opinião que pode nos seduzir demasiado, é preciso dizer que esta é apenas uma de suas leituras possíveis. É de bom alvitre desconfiar do que os autores pensam a respeito da própria obra. Talvez na pequena máquina de palavras de Ir a ti, permaneçam quietas algumas chaves de interpretação das tendências fundamentais de sua obra - e não apenas de sua obra, mas de toda uma geração na moderna poesia brasileira.  

 

Foed Castro Chammas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

André Seffrin

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

21.7.2001


JOSÉ OLYMPIO: O DESCOBRIDOR DE ESCRITORES, 
de Antônio Carlos Villaça. Thex, 292 págs., R$ 35,00.

Depoimento de um amigo e de um quase companheiro de geração, evocativo e fraternal, José Olympio: O Descobridor de Escritores é um livro sem arestas, uma homenagem carinhosa ao grande editor. Poucos terão admirado J. O. tanto quanto o memorialista de O Nariz do Morto (1970), biógrafo de Alceu Amoroso Lima e de Cândido Mendes de Almeida (não o atual, membro da ABL, mas o seu bisavô, autor do clássico Direito Civil Eclesiástico Brasileiro, publicado em quatro volumes, de 1866 a 1873, por Garnier), e que fez a sua estréia com uma biografia de Rio Branco: Perfil de um Estadista da República (1945).

Antonio Carlos Villaça é escritor que se compraz em contar casos da vida literária, transitando entre homens e livros no tecido incerto e fugidio dos dias que sucedem aos dias. Escreve de maneira despojada, sem mistérios, num ritmo de quem rememora, de quem busca recompor o passado evocando-o subliminarmente. No ensaio, bem como nas suas memórias, ele não abandona os passos do cronista do mundo da literatura. Os títulos de seus livros são sugestivos: Encontros (1974), Tema e Voltas (1975), Literatura e Vida (1976). É nesse sentido que podemos ler José Olympio: O Descobridor de Escritores, como a crônica de um dos momentos gloriosos da vida literária brasileira. E a história de J. O. é a história da sua editora, tal a sua entrega ao ofício, seu amor ao livro. O depoimento do secretário Sebastião Macieira é curioso, conforme registra Villaça: "Nota que Seu José tem amor fora do comum ao livro. Quer que se lavem as mãos antes de pegar num livro." 

Esse grande personagem que foi J. O. talvez não tivesse o tino comercial, porque era antes um homem da cultura, um homem que, do ponto de vista financeiro, foi um saltimbanco. Ele se tornava uma espécie de pai dos seus editados, conforme escreve Rachel de Queiroz no prefácio, num texto revelador da personalidade do seu editor. A consideração que tinha pelos autores, a dignidade com que os tratava talvez seja o que mais o diferencie da maioria dos grandes editores brasileiros atuais, cada vez mais distantes dos escritores e, conseqüentemente, da realidade do país, dos problemas brasileiros. 

Villaça compôs de J. O., insisto, um retrato de amigo, muito próximo do perfil que Erico Verissimo traçou de seu editor em Um Certo Henrique Bertaso (1972), cujo subtítulo é sugestivo: "Pequeno retrato em que o pintor também aparece." Como no livro de Erico, em que se conta a história da antiga Livraria do Globo, também aqui temos a trajetória de um homem que acreditou no sonho e que o realizou, num tempo em que o Brasil ainda se definia intelectualmente por meio das idéias de alguns mestres como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. 

Claro, o século 21 não comportaria mais uma figura como J. O., com as suas idiossincrasias, com o seu quixotismo, à maneira de um Henrique Bertaso, de um Monteiro Lobato. Personalidades paradigmáticas do livro brasileiro, eles tiveram os seus seguidores: Ênio Silveira (Civilização Brasileira), Pedro Paulo Moreira (Itatiaia), Gumercindo Rocha Dórea (GRD), Massao Ohno, que também já são figuras de um outro tempo, e que pertencem mais à história literária do país que à atualidade. 

O livro que Antonio Carlos Villaça escreveu é um manancial de histórias no qual os personagens atendem pelos nomes de Jorge Amado, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Otávio Tarquinio, Otto Maria Carpeaux, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Gilberto Amado, Graciliano Ramos, Luís Jardim. De cada um extraiu-se um pouco, uma confidência, uma anotação casual, uma informação que auxilia na compreensão da personalidade um tanto retraída do editor. E o pintor é caprichoso na precisão do traço: "O vácuo não era o seu reino. Gostava de pisar no chão firme dos fatos, das realidades precisas, das grandes questões. O seu mundo não eram as aparências, mas as verdades concretas, aqui e agora. Fascinava-o a exatidão da verdade." 

Vale destacar ainda a transcrição de uma polêmica carta de Carlos Lacerda e de uma outra, reveladora do pensamento de Alceu Amoroso Lima. Mas é a transcrição de uma terceira, de Jorge de Amado, exercício de admiração ao amigo quando completava 60 anos, que sintetiza o papel fundamental de J. O. à frente de sua livraria e editora: 

"No dia em que se escrever a história da grande obra realizada por José Olympio, terei um depoimento a prestar. Sinto hoje a satisfação de ter sido funcionário e editado da Casa nos seus inícios, nos tempos heróicos, quando você iniciou uma revolução em nossa indústria editorial. Outros haviam realizado algumas escaramuças, entre eles o inesquecível Gastão Cruls. Mas foi você quem fez a revolução, mudou os dados do problema, acreditou na literatura nacional, em nossos escritores. Éramos uns meninos rebeldes e agressivos e o moço paulista nos deu o apoio necessário." 

Estávamos a 19 de dezembro de 1962. As perspectivas aí estão: um dia se escreverá de maneira definitiva a história da literatura brasileira dos últimos 100 anos. Nela, o nome de J. O. (e da J. O.) deverá alcançar a sua dimensão. O livro de Antonio Carlos Villaça aponta os caminhos. 

 

Tiziano, O sagrado e o profano