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Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


Última Visio


Quando o homem resgatado da cegueira
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!


A impérvia escuridão obnubilante
Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gasofiláceo de diamante!


Nessa última visão já subterrânea,
Um movimento universal de insânia
Arrancará da insciência o homem precito...


A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!


 

Augusto dos Anjos

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Último credo


Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!


É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um,
Que matou Cristo e que matou Tibério.


Creio como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolue...


Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!

 

Augusto dos Anjos

Jornal de Filosofia

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Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Uma noite no Cairo


Noite no Egito. O céu claro e profundo
Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.


Os mastins negros vão ladrando à lua..
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.


O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quêdo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!


Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.


Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzía
Solta um brado epiléptico de injúria!


Em derredor duma ampla mesa preta
— Ultima nota do conúbio infando —
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.


Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Em baixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.


Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...
Apenas como um velho stradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!

 

Augusto dos Anjos

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

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Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Vandalismo


Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.


Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.


Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...
 

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


 

Augusto dos Anjos

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Vencedor


Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E á rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!


Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.


Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,


Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

 

Augusto dos Anjos

A menina afegã

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Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Vencido


No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.


Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!


Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu...


E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

 

Augusto dos Anjos

Um cronômetro para piscinas

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Versos a um cão


Que força pode, adstricta a ambriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!


Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.


Cão! — Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais. . .


E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos seus pais!

 

Augusto dos Anjos

Blake, O compasso de Deus

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Versos a um coveiro


Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!


Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!


Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais


Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números
A tua conta não acaba mais!

 

Augusto dos Anjos

Michelangelo, Pietá

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Versos d’um exilado


Eu vou partir. Na límpida corrente
Rasga o batel o leito d’água fina
- Albatroz deslizando mansamente
Como se fosse vaporosa Ondina.


Exilado de ti, oh! Pátria! Ausente
Irei cantar a mágoa peregrina
Como canta o pastor a matutina
Trova d’amor, à luz do sol nascente!
 

Não mais virei talvez e, lá sozinho,
Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho,
D’onde levo comigo a nostalgia


E esta lembrança que hoje me quebranta
E que eu levo hoje como a imagem santa
Dos sonhos todos que já tive um dia!

 

Augusto dos Anjos

Hélio Rola

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Versos de amor
 

A um poeta erótico
 

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.


Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!


Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.


Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.


Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!


É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!


Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!


Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!


Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!
 

Augusto dos Anjos

Ruth, by Francesco Hayez

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Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido