Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Engano & esperança

 

Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano. (Camões)



Se por experiência se adivinha
se pela nuvem se conhece o vento
se por amor dormimos ao relento
sob o orvalho dos seios da vizinha


Se o mar gorjeia, pássaro e elemento
se põe seus ovos antes da galinha
se o rei decreta a morte da rainha
e dela se liberta o pensamento.


Se o corpo volta à infância da caverna
se a esfinge nos decifra e nos devora
se a volúpia do enigma nos governa


Se viver ou morrer é sempre um dano
se o acaso nos golpeia antes da aurora
qualquer grande esperança é grande engano.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

Início desta página

José Santiago Naud

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Fosso


O povo fala grosso
mas não segue adiante
porque tem um fosso.


O povo mostra o rosto
mas não pode ser visto
porque tem um fosso.


O povo não tem sobrosso
mas é expulso da festa
porque tem um fosso.


O povo paga imposto
mas fica à margem do rio
porque tem um fosso.


Fosse de que modo fosse
a vida não mudaria
porque tem um fosso.


A fome mostra o seu dorso
mas não prova do manjar
porque tem um fosso.


Espectros de pele e osso
contai vossa fome ao vento
porque tem um fosso.
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

Início desta página

Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Discurso da ira


Os pobres estão se evaporando
à vista de todos.
O tempo vai passando
os pobres vão se decompondo
seus rostos são apagados pelo vento
e da memória dos computadores
até que ninguém se lembre
mais de suas caveiras sorridentes
afugentando os parasitas dos burocratas
nas repartições públicas.


Os pobres estão sumindo
aos olhos de todos.
O tempo os vai tornando
cada vez mais parecidos com a morte.
Enquanto isso, os poderosos
sacodem suas nádegas fotogênicas


fazem belos discursos para a distinta platéia
e afagam avidamente as orquídeas.
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

Início desta página

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Liturgia da seca
 


O vento em disparada
arranca as plumas
da paisagem.
 


Boi morto
vaca morta
bezerro morto
cavalo morto.
 


O vento arquejante assobia
na estrada constelada
de gritos.
 


O dia áspero
tange a diáspora
(Homens aflitos
se sois do Norte
ide a procura
de vossa morte)
 


O vento é uma ave
de rapina em rodopio
sobre o esqueleto das plantações.
 


O dia áspero
tange a diáspora
tange o passado
tange o futuro
tange o fantasma
de nossa morte.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

Início desta página

Juarez Leitão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Poema para escrever no asfalto


Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração
e o quanto sobra do naufrágio
das nossas utopias.


Agora eu sei o que significa a fala dos mortos
e esta parábola soterrada
que jorra das veias da pedra.


Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras
e este pacto de sangue
com as metáforas do tempo.


Agora eu sei o que se passa no coração de treva
e do homem que morre mendigando
a própria liberdade.


Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido
com a nossa pobreza
e com a solidão de ninguém.


Agora eu sei que é preciso agarrar a vida
como se fosse a última dádiva
colocada em nossas mãos.
 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

Início desta página

Nilto Maciel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Escada do paraíso


Corpo feito de vagas
agitadas e búzios
sonolentos. Oh corpo
de mulher, entre medusas
e portulanos de areia.
Corpo seduzido pela
luminosidade dos cardumes
pelo movimento sinuoso
das marés. Oh corpo
de terracota e cristal.
Corpo aderido ao sexo
de Deus. Corpo nu
de gaivota em tarde azul
escada do paraíso.
Oh corpo varando a noite
E o dia em diagonal.
Corpo, oh corpo de lava
e lêvedo, fendido
pela cintura de um deus:
eu te celebro nesta
canção. Vertente e foz
dos pecados capitais.
 

 

 

Ticiano, Flora

Início desta página

Sânzio de Azevedo