Gonçalves Dias
Palinódia
O céu não te dotou de
formosura,
De atrativo exterior, e a
natureza
Teu peito inficionou co’a vil
torpeza
D'ingrata condição falaz e
impura!
BOCAGE |
Se só por vós, Senhora, corpo
e alma,
Apesar da aversão que tenho ao
crime,
Inteiro me embucei nos seus
andrajos,
Em tremedal de vícios;
Se só por vós descri do que
era nobre,
Porque envolto em torpeza
imunda e feia,
As vestes da virtude imaculada
Rebolquei-as no lodo;
Se só por vós persegue-me o
remorso,
Que os dias da existência me
consome,
E entre angústias cruéis minha
alma anseia,
— Ludíbrio dos meus erros:
Consenti que a moral os seus
direitos
Reivindique uma vez, e que a
minha alma
Das lições que bebeu na pura
infância
Uma hora se recorde!
Agora, agro censor, hão de os
meus lábios,
Duras verdades trovejando em
verso,
Fazer de vós, o que a razão
não pôde,
— Mulher ou estátua!
Mentistes quando amor tínheis
nos lábios.
Mentistes a compor meigos
sorrisos,
Mentistes no olhar, na voz, no
gesto...
Fostes bem falsa!...
Falsa, como a mulher que em
bruta orgia
Finge extremos de amor que ela
não sente,
E o rosto of’rece a ósculos
vendidos,
Ao sigilo de infâmia.
Quantas vezes, Senhora, não
caístes
Humilhada, a meus pés,
desfeita em pranto,
Chorando — e que choráveis? —
a jurar-me...
— Que juráveis então?
Se pois sentisses compaixão
amiga
A cair gota a gota dos meus
lábios
No que eu supunha cicatriz
recente,
e que era úlcera funda;
Se me vistes os olhos
incendidos,
Sangrar-me o coração no peito
aflito
Ao fel das vossas dores, que
azedáveis
Co'o pranto refalsado:
Ouvi! — não éreis bela, — nem
minha alma
Vos amou, que um modelo de
virtudes,
— Um sublime ideal — amou
somente;
Vós o não fostes nunca.
Que uma alma como a vossa, já
manchada,
Aos negros vícios mais que
muito afeita,
Já feia, já corrupta, já sem
brilho...
Amá-la eu, Senhora!
Deitar-me sob a copa
traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra,
o engano, a morte;
Recostar-me no seio onde
outros dormem,
Que por ninguém palpita!
Beijar faces sem vida, onde se
enxerga
Visgo nojento d'ósculos
comprados;
Crer no que dizem olhos
mentirosos,
Em prantos de loureira!
Antes curvar o colo envilecido
Ao jugo vil da escravidão
nefanda;
Beijar humilde a mão que nos
ofende,
Que nos cobre de opróbio!
Antes, possesso d'imprudência
estúpida,
Brincando remexer no açafate,
Onde por baixo de mimosas
flores,
O áspide se esconde!
Mas eu, nos meus acessos de
delírio,
Voz importuna de contínuo
ouvia,
Cá dentro em mim, a
repr'ender-me sempre
De vos amar... tão pouco!
Assim o cego idólatra se
culpa,
Nos espasmos d'ascética
virtude,
De não amar assaz o vão
fantasma,
De suas mãos feitura.
Porém se luz melhor de cima o
aclara,
Cospe afronte e desdém, e à
chama entrega
O cepo vil, que não merece
altares,
Nem d'ofrendas é digno!
Releva-se a imprudência
feminina,
Inda um erro, uma culpa se
perdoa,
Se a desvaira a paixão, se
amor a cega
No mar de escolhos cheio.
O Deus, que mais perdoa a quem
mais ama,
Talvez da vida a negra mancha
apaga
A quem as asas de algum anjo
orvalha
De lágrimas contritas.
Mas não àquela, em cesto peito
mora
Torpeza só, — onde o amor se
cobre
De vícios — a nutrir-se
d'impurezas,
Como vermes de lodo.
Se porém te aproveita o meu
conselho,
A quem, mais do que a mim,
tens ofendido,
Que entre os risos do mundo,
vê tua alma
E lê teus pensamentos;
Se não crês noutra vida além
da morte,
Roga sequer a Deus, que te
rompa
A luz do sol divino da Justiça
A máscara d'enganos!
Que a rainha da terra
inamolgável,
— A dura opinião — te não
entregue,
Sozinha, e nua, e d'irrisão
coberta,
À popular vindita!
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