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Um esboço de Da Vinci

 

 

Gonçalves Dias


Voltas e mortes glosados


I
 

Não posso dizer que não,
Não posso dizer que sim.


VOLTA
Senhora, pois que podeis
Dizer que não, ou que sim,
A ambos não magoeis:
Dizei — sim, mas não a ele;
Dizei — não, mas não a mim.


OUTRAVOLTA
Senhora, que amor é esse,
Ou que nova sem-razão!
Que se eu vos pergunto — sim?
Respondeis-me sempre — não!


Senhora, é isso paixão?
Oh! que o é, mas não por mim;
Que quando vós dizeis — sim,
Um não quisera eu então!


Já nem sei que bem vos queira,
Nem que mais querer vos possa;
Sede antes vossa que dele,
Sede antes minha que vossa.


Rio, 24 d'outubro de 1846
 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


Soneto


Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem d'ar, de perfumes, d'ambrosia?
Que vagando por mares d'harmonia
São melhores que as próprias borboletas?


Não creias que eles sejam tão patetas.
Isso é bom, muito bom mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas!


Talvez mesmo que algum desses brejeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.


Eu que sou pecador, — que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,
Julgo um beijo sem fim cousa excelente.


Rio de Janeiro - 1848.

 

Jornal de Filosofia

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Gonçalves Dias


Oh ! Que acordar!


Se o que somos, se o que temos sofrido
Não fosse mais que um sonho!
A despedida sem adeus, a ausência,
O desterro medonho!


O viver sem família, sem ventura,
Sem esperanças mais...
Este penar eterno, este sofrer sem crime,
Este descrer dos mais;


E aquele ver-te qual t'eu vi, co'o pranto
Nos olhos a brilhar,
E nos lábios sorrisos porque vias
Qual era o meu penar!


Se esse fingir que a vida te esgotava
Do pobre coração,
Se tudo fosse um pesadelo horrível,
Um sonho vão;


Se outra vez amanhã meiga sorrindo
Me viesses contar
Teu sonho mau, durante a noite, e o ledo
Venturoso acordar!


E que de ver-te se me fosse d'alma
D'angústia o sentimento,
Como visão noturna, como um traço n'água,
Nuvem que tange o vento!


Se em nossos peitos desses caos surgissem
Os êxtases de amor,
Como aves mil, que no romper do dia
Voam de um ramo em flor!


E a vida entre nós franca! o amor possível,
E o paraíso ali!
Oh! que acordar!... Venham dizer-me agora
depois do que sofri,


Que o mundo é vasto, que não devo amar-te,
Que renuncie a ti!
Fazei-o vós, se sois capaz de tanto...
Não o peçais de mim.


Qual o horrendo porvir que após nos guarda
Não o sabeis, eu sei!
É ser morto por dentro, é dizer d'alma
Jamais feliz serei!


É criar tédio à vida! — um só receio
Ter-se — que seja eterno
Este viver, este descrer de tudo,
Este penar do inferno!


Manaus - 30 de maio de 1861.
 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


Se muito sofri já, não me perguntes


Se muito sofri já, se ainda sofro
Por teu amor?!
Não me perguntes! que do inferno a vida
Não é pior! ...


Eu! vegetar da terra entre os felizes!
Que faço aqui?
Sonhos de amor, de glória, — lá se foram
Atrás de ti!


A ver se encontro d'esperança um raio
Olho em redor,
E nada vejo, e mais profunda sinto
No peito a dor!


Que faço aqui? Dias cansados, anos
Sem fim — durar!
Depois que te perdi, viver ainda,
Viver! penar! ...


Eu, não! Quem for feliz que preze a vida,
Tema perdê-la!
Por mim não tenho horror, nem tédio à morte,
Clamo por ela!


Bendita seja pois a que mandada
Me for — por Deus.
Matar-me, não; que quero ver-te ainda
Feliz nos céus!


Mas no pego da dor, em que me abismo?
— Nesta aflição
Negra como a do cego que na estrada
Esmola o pão!


Como a do viajor que pelas trevas
Sem tino vai,
E, errado o trilho, se embrenhou nas matas,
Nem delas sai!


Neste viver sofrendo, errante, louco,
Mísero Jó,
Que amigos e inimigos à porfia
Pungem sem dó!


Às vezes, da amargura no remanso,
Ao Criador
Minha alma eleva cânticos de graças,
Hinos de amor!


Que se estivesse em mim renascer hoje,
Sofrer o que sofri...
Eu quisera viver para ainda amar-te
E amado ser por ti!


Manaus - 16 de junho de 1861.
 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Gonçalves Dias


No jardim!


Lembra-te o Jardim, querida!
Lembra-te ainda da vida
Aquela quadra florida,
Que ali passamos então!...
— Duas salas, um terraço,
Poucas flores, muito espaço,
Muita luz; mas a melhor,
— A flor do teu coração,
A luz do teu santo amor!
Não tinha a casa pintura,
O chão não tinha cultura:
Paredes nuas, ladrilho,
Tudo singelo, sem brilho...
Ninguém diria a ventura
Que ali se pudera achar!
É porque ninguém sabia
Que tu ali vinhas ter
A cada romper do dia
Como um raio de alegria!
É que o sol no seu morrer
Seus raios ali mandava,
Como que nos céus fixava
A história do amanhecer!
— Que o ciclo da nossa vida
Da terra oscilava aos céus,
Na luz do amor teu, querida,
Na luz mandada por Deus!


E depois, se vinha a noite.
Fossem trevas ou luar,
— Como em sonhos prazenteiros,
Como em mágicos luzeiros,
Do infinito pelos campos
Se ia minha alma a vagar!
— São menos os pirilampos
No bosque — à noite! — as estrelas
Nem tantas são, nem tão belas
Como os doces devaneios,
Desejos, temor, receios,
Daquele ameno cismar!
Vivia! estava desperto!
Eu contigo me entretinha;
Tu ali estavas — bem perto,
A voz te ouvia que vinha
De amor minha alma inundar!
Mais formoso que tal sonho
Era só meu acordar,
Vendo teu rosto risonho,
Vendo nele do meu sonho
A imagem se desenhar!
— Ouvindo-te a voz macia
Baixinho pronunciar
Frases de amor, de poesia,
Que ninguém pudera achar!


Crê-me! a infanta portuguesa,
De Inglaterra a princesa,
Laura, Elvira, Beatriz,
Nos cantos de ilustres bardos
Só — foram grandes: tu, não!
Distinta por natureza
No sentimento rainha,
A poesia te vinha
Sublime, estreme, feliz,
Traduzida em gesto brando,
Ou d'alma plena brotando
Do abundante coração,
Ampla, caudal como um rio,
Como pérolas em fio
A granizarem no chão!


Aquelas vivem eterno
Na história do seu amor!
Em trono de luz sentadas,
C'roadas de resplendor!
Mas, quem dirá o que foste!
O que és ainda — talvez!
Se estas pobres folhas soltas
Nem chegarão a teus pés?!
 

Manaus - 17 de junho de 1861.

 

A menina afegã

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


A baunilha


Vês como aquela baunilha
Do tronco rugoso e feio
Da palmeira — em doce enleio
Se prendeu!


Como as raízes meteu
Da úsnea no musgo raro,
Como as folhas — verde-claro —
Espalmou!


Como as bagas pendurou
Lá de cima! como enleva
O rio, o arvoredo, a relva
Nos odores,


Que inspiram falas de amores!
Dá-lhe o tronco — apoio, abrigo,
Dá-lhe ela — perfume amigo,
Graça e olor!


E no consórcio de amor
— Nesse divino existir —
Que os prende, vai-lhes a vida
De uma só seiva nutrida,
Cada vez mais a subir!


Se o verme a raiz lhe ataca,
Se o raio o cimo lhe ofende,
Cai a palmeira, e contudo
Inda a baunilha recende!


Um dia só! — que mais tarde,
Exausta a fonte do amor,
Também a baunilha perde
Vida, graça, encanto, olor!


Eu sou da palmeira o tronco,
Tu — a baunilha serás!
Se sofro, sofres comigo;
Se morro — virás atrás!


Ai! que por isso, querida,
Tenho aprendido a sofrer!
Porque sei que a minha vida
É também o teu viver.


Manaus - 17 de junho de 1861.
 

Um cronômetro para piscinas

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


Se te amo, não sei!


Amar! se te amo, não sei.
Oiço aí pronunciar
Essa palavra de modo
Que não sei o que é amar.


Se amar é sonhar contigo,
Se é pensar, velando, em ti,
Se é ter-te n'alma presente
Todo esquecido de mim!


Se é cobiçar-te, querer-te
Como uma bênção dos céus
A ti somente na terra
Como lá em cima a Deus;


Se é dar a vida, o futuro,
Para dizer que te amei:
Amo; porém se te amo
Como oiço dizer, — não sei.


————


Sei que se um gênio bom me aparecesse
E tronos, glórias, ilusões floridas,
E os tesouros da terra me oferecesse
E as riquezas que o mar tem escondidas;


E do outro lado — a ti somente, — e o gozo
Efêmero e precário — e após a morte;
E me dissesse: "Escolhe" — oh! jubiloso,
Exclamara, senhor da minha sorte! —


"Que tesouro na terra há i que a iguale?
Quero-a mil vezes, de joelhos — sim!
Bendita a vida que tal preço vale,
E que merece de acabar assim!"
 

Manaus - 25 de junho de 1861.
 

Blake, O compasso de Deus

 

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


Como! és tu?


Como! és tu?! essa grinalda
De flores de laranjeira! ...
Branco véu, nuvem ligeira
Sobre o teu rosto a ondear!
Pálida, pálida a fronte
E os olhos quase a chorar!


És tu! bem vejo... não fales!
Cala-te! já sei o que é!
A mão vais dar, vida e fé
A outro!... Vais te casar.
Pálida, pálida a fronte,
Olhos em pranto a nadar!


E vais! e és tu mesma? — e vais!...
Fui eu quem te dei o exemplo...
Sei que te aguardam no templo,
Deixa-me aqui a chorar:
Fazes somente o que fiz,
Não fazes mais que imitar!


Mas eu quis ver-te feliz,
Não dar-te exemplo!... pensava
Que ileso e firme ficava
O teu amor — a guardar
A fé, que eu mesmo, insensato!
Fui o primeiro a quebrar!


Contradições d'alma humana!
Fui, sim, quem te dei o exemplo,
Isso quis, e ora contemplo
Essa grinalda — a chorar,
A fronte pálida, pálida,
E o branco véu a ondular!


E há de o mundo inda algum dia
Do olvido o véu tenebroso
Estender por tanto gozo,
Tanto crer, tanto esperar!
Vai que te aguardam: já tardas:
Deixa-me aqui a chorar!


Vai! e que os anjos derramem
Sobre ti flores, venturas,
Que as alegrias mais puras
Floresçam dos passos teus:
E que entres na casa estranha
Como uma bênção dos céus!


Que a fortuna — de veludos
Alcatife os teus caminhos,
Que o orvalho dos teus carinhos
A esse faça feliz
Com quem te casas — que te ame
Como te amei e te quis!


Porém procura esquecer-te,
Das venturas no regaço,
De mim, dos votos que faço,
De quanto pedi aos céus
Ver este dia... mas choro!
Vai! sê feliz! adeus!


Manaus - 25 de junho de 1861.
 

Michelangelo, Pietá

 

Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


A minha rosa


A mim! foi a mim que o ouviste?
Eu! — chamá-la minha rosa!...
De certo que é bem formosa,
Entre criança e mulher!
Se a vejo tão jovem inda,
Tão simples, tão meiga e linda,
Da vida no rosicler;


Podia chamá-la — rosa,
De musgo ou de Alexandria,
Rosa de amor, de poesia,
Mais lhe não dava que o seu;
Porque se essa flor mimosa
Já chegaste ao teu retrato,
Havias ver como a rosa
De repente esmoreceu!


Porém teu amor, querida,
Teu amor que é minha vida,
Que é meu cismar, que é só meu;
Esse que te faz formosa
Entre todas as mulheres,
Onde achá-lo?! — Minha rosa...
Minha és tu!... como sou teu.


Não nego que é meiga e linda,
Entre mulher e criança,
Tão jovem, tão meiga, e ainda
Da vida no rosicler;
Mas tu vales mais do que ela,
Não conheces bem teu preço,
Acho-te muito mais bela,
Como és, — entre anjo e mulher.
 

Hélio Rola

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gonçalves Dias


Minha terra!


Quanto é grato em terra estranha
Sob um céu menos querido,
Entre feições estrangeiras,
Ver um rosto conhecido;


Ouvir a pátria linguagem
Do berço balbuciada,
Recordar sabidos casos
Saudosos — da terra amada!


E em tristes serões d'inverno,
Tendo a face contra o lar,
Lembrar o sol que já vimos,
E o nosso ameno luar!


Certo é grato; mais sentido
Se nos bate o coração,
Que para a pátria nos voa,
P'ra onde os nossos estão!


Depois de girar no mundo
Como barco em crespo mar,
Amiga praia nos chama
Lá no horizonte a brilhar.


E vendo os vales e os montes
E a pátria que Deus nos deu,
Possamos dizer contentes:
Tudo isto que vejo é meu!


Meu este sol que me aclara,
Minha esta brisa, estes céus:
Estas praias, bosques, fontes,
Eu os conheço — são meus!


Mais os amo quando volte,
Pois do que por fora vi,
A mais querer minha terra,
E minha gente aprendi.
 

Paris - 1864.
 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido