Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos



Soneto Áspero
(poema augusto / poesia dos anjos)


Noite de natal, e o mundo é piedoso.
Eu, estou só, no quarto de dormir.
A intermitente (ano não, dia sim)
bondade e caridade é-me demais.

Um papai-noel pousou-me na sorte,
e eu lhe disse, então: — Buuh, você é um saco!
Todos são felizes (na solidão,
eu velo o fim da neve de algodão).

Cheguei até aqui vivo — não sei
se sou melhor ou sou pior por isso.
Apenas, eu cheguei. De qualquer jeito,

hoje sei se ontem amei: não amei.
Burocraticamente, amei amém.
(Nisso, cheguei ao limite do spray.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Soneto Patético


Acordo para um mundo novo no jornal.
Notícias junto ao hálito acre da manhã.
Espreguiçadamente explode a realidade.
O sonho se desfaz nas cores do papel.

Refaço o mundo com exercício matinal.
Lavo os dentes, sorrio, a vida fica sã.
Precipito-me às ruas e ganho a cidade.
Refugio-me no trabalho — há paz como um véu.

As horas vão... e a tarde cinza fica escura.
O dia chega compassadamente ao fim.
A vida, que gritava, agora só murmura.

Tranco-me em casa, e o mundo sangra na TV.
Sangue do meu sangue, tudo se esvai. Enfim,
durmo, não sei quem te viu, não sei quem me vê.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

Início desta página

Manoel de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos



Angústia Precipícia


Como posso estar só, se estou sempre comigo?
Minha ausência é a presença que tanto persigo.
Quero estar só, sem mim, pra não ter um motivo
pra tentar escapar do desgosto em que vivo.

Tenho lágrimas metafísicas — eu sei
que há muito que não choro, desde que gostei,
há pouco, quando alguém me disse que não vem
mais agora, e agora eu não quero mais ninguém.

Queria a solidão mais rústica e absorta,
como um coral num mar sem onda que o revolva
— e eu, sem jeito, sem fim, consumindo a revolta...

Revolta que é de mim, de estar preso a mim mesmo,
como um coral num mar sem fim — e eu, sem desejo,
sem revolta, sem nada que me traga apego.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

Início desta página

Álvaro Pecheco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Memórias da Casa dos Mortos


Mais parece um túmulo esse meu corpo de pedra.
Túmulo de tantas sensações.
Pedra sem vida — pedra.

Mais parece um túmulo esse meu coração de pedra.
Túmulo de tantas paixões.
Pedra sem amor — pétrea.

Mais parece um túmulo esse meu espírito de pedra.
Túmulo de tantas idéias.
Pedra sem razão — petrificada.

Em visita a esse cemitério de jazigos e lápides,
levei uma pedrada,
e o único sangue possível foi
a palavra.

 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

Início desta página

Roberto Pompeu de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Soneto Contemporâneo


Aos coeternos.

Penetra surdamente no reino das palavras,
que outro valor mais alto se alevanta.

Drummond/Camões


Que vem a ser fazer poesia de seu tempo?
Eu faço a do momento, a poesia de hoje.
Eu faço sempre hoje, pois meu tempo é hoje.
Toda a poesia é hoje, pois hoje é seu tempo.

Hoje é sempre o momento de fazer poesia.
Choveu hoje? faz sol hoje? que dia é hoje?
Meteorologia e calendário não, hoje.
Hoje não! Hoje é dia de fazer poesia.

De hoje que Camões é de hoje também!
Carlos Drummond de Andrade é de hoje também.
Todos são de hoje, destacados do tempo.

Não me venham com necessidade de ser
linguagem nova, tudo novo, tudo a ser,
pois na poesia estou destacado do tempo.

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

Início desta página

Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Nunca Mais Serei Eu Mesmo


Cada último poema é o último, pois
nada há mais a dizer depois, pra nunca mais,
que sempre, se me entrego ao verso, é totalmente
— mais nada sobra em mim, vazado, mais que sempre.

Toda em cada verso, a poesia (que mistério)
nunca se esgota ou esvai, pois, com seu próprio lastro,
está pra sempre inteira, pronta a um novo verso
— e cada novo poema é o novo! ... e eu sou o resto.

Se me dou por inteiro, o que sobra de mim?
Se me fluí no verso, perdi-me de vez...
— vez que, na alma do verso, só está quem o lê.

Sendo assim (que destino, esse meu!), pra me ter,
devo ler-me a mim mesmo no verso que fiz
— eu, que tenho essa imensa poesia a viver!...

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

Início desta página

Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Entre o Sono e a Vigília
(soneto sonolento, ao dormir)


Na indolência do tempo, as horas morrem,
a madrugada avança seu crepúsculo,
um silêncio selvagem rasga o mundo,
e a vigília se abriga sob as pálpebras.

Um frio silente e aflito, quase um susto,
tão lépido quão lívido, perpassa,
que a imensidão do instante se revela,
e os abraços desfazem-se inconclusos.

Entre luzes e sombras vacilantes,
o assombro de mil séculos desvai-se,
e o espírito gazeia e se dissipa.

No espasmo mais recôndito do sonho,
o pássaro se furta da gaiola,
e o gato esconde o pulo entre almofadas.


 

 

 

José Saramago, Nobel

Início desta página

Jorge Amado

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Luz e Breu
(soneto sonolento, ao acordar)


Quando a luz da manhã penetra pelas fímbrias
da cortina, eu percebo a escuridão de tudo
sumindo pouco a pouco; em pouco tempo, o mundo
invade a solidão e rouba ao sonho a vida.

Quando a sombra de tudo assoma e expõe o corpo
e a mente ao modo cru, entre o sono e a vigília,
não há nada a versar, pois que já testa a língua
o amargo amanhecer para um poema roto.

Na sombra-e-luz do dia, a escuridão se abriga
sob os meus olhos, livre e plena de sentidos,
embora nem eu saiba o que isto significa.

À luz do dia, fecho os olhos, sonho e vejo:
se este verso pudesse, enfim, levar-me além
de mim, a escuridão saciaria o desejo.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

Início desta página

Vicente Franz Cecim