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Majela Colares


 

Minha aldeia e meus chinelos


em meus chinelos trago a minha aldeia
sob meu rastro tatuada e eterna

meu trisavô pulsando em minhas veias

minha palavra é sua voz interna
o seu olhar em meu sorriso sonha

em meu sorriso, seu olhar hiberna

e minha aldeia segue o meu destino
meu trisavô em mim refaz seus elos

se no universo penso e me confino
é que meu mundo trago em meus chinelos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

Banquete para um fantasma


numa bandeja foi servida a hora
em um castiçal, meio tempo aceso

um sopro magro vinha porta fora

e porta adentro vinha um sopro obeso
na sala, ao canto, tinha um riso torto

em pé junto à porta um vulto ao revesso

todos falavam, ninguém se entendia
nas mãos um aceno em forma de enfeite

na mesa, à testa, um fantasma comia
cantava e sorria atento ao banquete


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

Tratado sobre um poema


quis um poema sem razão nem fim
um canto surdo de areia e noites
bem mais veloz que ilusão do tempo
que fosse a vida muito além da morte

quis um poema que tivesse o fim
de ser apenas um rascunho torto
entre as lembranças de qualquer rascunho
entre os rascunhos de alguém já morto

quis um poema de tempo e de tempos
regado a vinho – se possível tinto –
do instante imune, que não foi instante
do tempo impuro, do mais puro cisco

quis um poema que fosse um poema
de pele clara, de cabelo ruivo
que fosse a pedra fecundando o húmus
e a luz gestante fecundando a luz

quis um poema... se quis um poema
foi assim quase... meio, fim e meio
sangrei a noite, mas fisguei o verbo
quis um poema lacerado ao meio


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

Paragem para um fim de tarde
A Orlando Tejo


os fantasmas iam chegando, nas asas de vento dos morcegos

chegavam, também, no vôo de anjo dos morcegos
os primeiros zumbir de estrelas
o cricrilar dos grilos
a inquietação das sombras e os vultos da noite

a noite era de rumores profundos
murmúrios distantes
bocejos sombrios
quando os fantasmas despertavam para o tempo

os fantasmas e o tempo
instigavam a morte e fustigavam a vida
no vôo surdo e sombrio dos morcegos

a noite

os fantasmas iam chegando, nas asas de anjo dos morcegos


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

A memória das areias


caravanas, sabbath, caravanas
traziam na memória a terra e Deus

e o sagrado descanso das areias

nos lábios um canto – eternas origens
palavras de Abraão e de Jacó

em silêncio Davi pensando salmos

caravanas, silêncio, caravanas
um sábado futuro, um amanhã

de pastores, carneiros, tempos, homens
entre Deus e as colinas de Golã


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

Tinta sobre tela


pintaria de azul a cor do vento
de vento pintaria a lua cheia

se pudesse pintar esse momento

pintaria de céu e luz que ondeia
colorido eu faria o tempo, sempre

chocolate, vermelho, creme-areia

na mistura de tempos, fim errante
a cor do pensamento se desfaz

com um resto de tinta e meio instante
vou pintar seu nariz de cor lilás


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

O homem pelo homem


naquela noite eu não podia, pense
deixar meu gesto preso no sapato

fingir que flores surgem do cimento

depois voltar imune pro meu quarto
pensar talvez, um tanto inconseqüente

que no futuro só serei retrato

naquela noite eu não podia apenas
deixar que um susto fosse meu receio

tinha que ter em meu semblante, pense
meio sorriso laminado ao meio


 

 

 

 

 

01/11/2006