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Marta Gonçalves


 

Seis cantos para Zobeide


I

Na ilha, agapantos lilases partiam o corpo dormido no linear da manhã. A água batia nas pedras. Papagaios povoavam nuvens. Rostos idos com círios levavam louros. A videira esperava o fim da procissão.


II

Vestia de anjo em azul opaco. Pastilhas Valda no timbre da voz. A grinalda em Maria, rostos no altar. Balas de amêndoas. Balas de amêndoas.


III

Matizes da terra no linho formando flores. Flores bordadas no jogo sutil das mãos. Na mesa, a toalha, o ciclo, o desafio à vida. Cavalos de ferrugem arrastavam o corpo. Brancas as paredes e havia portas e janelas.


IV

O assobio chegava quando as nuvens desenhavam o céu. Dinossauros soterrados. Melodia é riso no lábio. Bicicletas vermelhas desciani a rua. A música de um tempo sem tempo. A canção de Zobeide ficou nos pés. No cisco do olho. A embarcação, a vela branca, levaram o azinhavre do piano. Faz silêncio na rua à direita.


V

As flores se vão sem sofrimentos. Fenecem ao oxigênio. O pássaro dorme no relâmpago. Foram calendários, a lágrima na face. O corvo espiava na cumeeira, escondia a luz da tarde. Na Matriz, gritavam teu nome. Era maio. Eram dálias amarelas. Tua roupa azul opaco. A grinalda. Maria. Amêndoas.


VI

Marinheiros vieram de Aldebarã, ungiram os olhos. Douraram o pente nos cabelos. Banharam as pálpebras com malva e fecharam o sol nas mãos. A quilha de açafrão esperava o óleo dos ossos. A cal da tarde marcou a eternidade. Vieram gralhas, o sino. Uma chuva de mariscos nos olhos. Escutei na pedra a voz de teus cantores dormindo o sono. Havia sementes de gergelim. Havia pergaminho nos olhos. O pássaro levando o adeus de maio.


Zobeide Gonçalves de Castro
08/06/1932 - 12/05/1996
O carinho de tua irmã poeta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

Marta Gonçalves


 

Palavras
 

 

O vegetal que me cerca e envolve meu corpo arreia as correntes dos braços. Deixaremos vidros quebrados nas manhãs e o sol brotará sementes de milho. Chegará a época de recriarmos o solo da terra, de aleitarmos a infância. Deve existir uma mudança cósmica neste pó que habitamos. Sorveremos água das pedras e as montanhas que nos cercam perderão a chave. Ao abrir as portas, a palavra chegará na ponta do mar. A areia quente das praias vai sorver borboletas. Descobrirão que a poesia chega no vento. Ela precisa de olhos além do infinito. O poeta não deve sair de sua solidão. Quieto em seu canto, armazena a alquimia. Existem palavras que são lâminas cortando veias. E essas veias sangrarão as faces nodosas. Destruiremos o lodo, mas a erva continuirá crescendo nas noites. Jogaremos margaridas brancas, poucos estenderão as mãos para colhê-las.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

Marta Gonçalves


 

Simples cerejas


Eram apenas cerejas na cesta


            ao sorvê-las senti


algo dentro de mim.


            Um sino libertando os olhos


do velho telhado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

Marta Gonçalves


 

O pássaro de pedra

 

(... sucumbiremos para renascer sem calendário e roda de fiar.)
Sérgio Campos


 

Era dezembro. O anjo vestido de açafrão
voava na Estrada da Bica. O flamboyant
florido. O poeta recolhia o silêncio nos olhos.


Pastorava poemas o rosto perdido no tempo.
Ouvia os pardais na janela. Longe, o sonho derretendo
no último verão. O pássaro se esconde do dilúvio.
Os escorpiões estancam o relógio de marrom glacê.


O sal nas paredes, vultos alastram lembranças.
O poeta sente as vértebras soterradas. A liberdade
da mão forma concha e asas morrem no pórtico da casa.


Era dezembro. O anjo vestido de açafrão sangrou a túnica
do poeta. Levou os pardais. O vento sopra na noite os lábios
de pedra.


Vejo a tocha da poesia no caminho. Coloco âncoras,
os sinos dobram, escuto ladainhas de Ouro Preto.


A clarineta veste a alma e papoulas enfeitam nuvens.
Viaja para o equinócio. Seu corpo é o mito da linguagem.
Coloco o manto de lã repleto de memórias. O vôo leva os pardais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

Marta Gonçalves


 

Cantata para Francisco Carvalho


O mar aquece a palma da mão e verdeia a alma.
Singro a água com sentido na barca. Orquídeas
no mastro trazem a força das palavras. Girassóis.


O que somos está nos dedos. Plantamos o trigo e escutamos
o vento. São crônicas das raízes amanhando faces no sono.
Marejamos distância e velamos o arco-íris na praia.


A noite sopra o mistério do Ceará. O som do atabaque
acorda os lábios. O poeta prepara a alquimia. O galope
do Pégaso ronda montanhas e cobre de borboletas a túnica
                            dos serafins.


Francisco Carvalho compõe sonatas leves como asas de pássaros.
O homem dorme ao som da música. O Aquilão chega, o barco à [deriva.
Punhais sangram anjos maus no fim da lua.


O sol nasce, crescem pombas. O poeta veleja imagens e coloca
tâmaras em meus olhos. Sinto a cor da poesia nos poros. Banho
de eucalipto o leito. A chuva é o bálsamo do homem.


Canto o poeta que desfolha nuvens nos dentes:
vive no pêndulo do relógio de Minas. Amadurecendo uvas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

Marta Gonçalves


 

O retrato de Biel

(Em memória do Poeta e Professor
Gabriel Archanjo de Mendonça)



Vestia o inverno, na foto marcando viagem. Os olhos vinham das águas, do rio, dos pássaros que voavam em seu corpo. A voz cantava uma canção. Canção embrenhada na distância. No silêncio, a risada de Biel. Existia um olhar aberto à procura dos seres que formavam o caule da vida. Reencontro de amigos. O mistério do espírito se preparando ao hiato da ausência. Biel desenhava no porão. Os olhos em vigília. Olhava os campos calcinados, onde borboletas secas dormiam. Biel, inflexão do corpo criando versos de origem, criando grãos no espaço. Biel menino. Ah, os cabelos de Biel! O canário nos dedos trazia o sol. Biel, viajante de tudo que já foi visto. Rindo, rindo, rindo, do barco à espera. Tantas flores chegando. A festa de Biel

O desamparo arrastando o sino. Formigas retalhando memórias. O desgaste no oco dos olhos. Poemas guardados em álbuns amarelados, trazendo emoções. Fazia frio no dia 31 de julho de 1996. Tarde de Biel. De poemas. À margem da praia distante vejo o texto crescendo. Uma flor azul entre as pedras dorme o fim. Biel menino, poeta, desenhista, cantor de canções perdidas. Nada explica o professor do vento da velha São João Nepomuceno.

Leio sua poesia, vejo o retrato vestido de inverno. Encarno a geografia de sua vida. O vôo não foi rasteiro. Plantaram a semente. Depois o pânico do silêncio. Lá fora a chuva marca o nascimento do poeta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marta Gonçalves


 

Mar interior


O veleiro se perde no mar. No mastro,
cicatrizes do rosto. Espero a maré.
A volta da vela branca purificando
                 os olhos.


No horizonte o azul estagnado.
A ternura do tempo das amêndoas.
O beijo ficou além da geografia
e crucificou o lábio seco.


Sou marinheira do cansaço, da aceitação.
O desamor toma conta do mar interior.
Salgo a retina na água verde. O vazio
contorna os dedos. Dedos esquecidos do calor.


O que existe além dos nossos olhos?
Uma flor branca esperando o branco dente.
O exílio se alonga e a vida é cardume.
Há de chegar o vento. A imensidão dos anos.
                  Pouso da terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vale or Farewell, ARTHUR HACKER, (1858 - 1919)

Marta Gonçalves


 

O retrato

(Em memória de Teresinha, minha irmã, em seu aniversário).


Na tarde o perfume da gardênia
                 os sóis entrando na vidraça.


O retrato navega no oceano
                  com olhos de tempestade.


Nasce uma rosa em março
nascem passos de ausência
          na alma.


Na cristaleira o licor
        o licor guardado
na interminável partida.


Vieste alimentar os pássaros
        no alpendre
vieste guarnecer de lágrima os olhos.


Há dias preparo as paredes
        preparo a cadeira marrom
                 preparo a carcaça.


Tua figura traz uma mensagem
        que se desfaz no espaço
                         no vento.


O afeto o afeto
        devassa os elementos do ser.


Resta o verão o jardim os violinos
        o desespero do rosto
                 que jamais veremos.

 

 

 

 

 

 

 

21.07.2005