Marília Gonçalves
Amanheci mais triste
Amanheci mais triste, os dias vão passando dentro de mim, sem horas
de paz, sobrevoam-me a memória, não chegam a acontecer, quem sabe
talvez pertençam a outra realidade, em que não avanço por
desmerecida, ou por não ter chegado ainda o comboio dos
acontecimentos desconhecidos, inutilmente esperados, na esperança
sem apoio, aquela teimosia estranha, a levar-nos onde se tivéssemos
senso comum não iríamos nunca, que para lá ninguém nos manda, vamos
por caturrice, ou para justificar anteriores passos, que ao
parecerem-nos absurdos, nos empurram para a aceitação de outros que
tais, foi aí que me surpreendi a olhar para mim, a ver-me com olhos
que não tenho e nada me diz que venha a ter, assim, decidi não
perder mais tempo e começo a viver por fora o que não me foi
autorizado por dentro, lembro-me dos amarelos em que gritei de sol e
perplexa procuro o caminho da chuva, eis senão quando, deparo com o
espelho do tempo a atravessar a imagem como eco do futuro, e disse
para mim própria, rapariga, a ires por este caminho não vais a parte
nenhuma, que te não ouve o mar das palavras sequer, não te admires
por conseguinte, de não compreenderes tu mesma, o que a fria análise
não poderia interpretar, nem tentes justificar o engano com outros
parecidos ou iguais, ouvi a estranha reposta vinda do outro lado de
mim, a dizer-me que não escutasse a voz que me contraria a vontade,
a que não me quer deixar ser eu, com a minha velha sensibilidade,
com a fome de ver mais, para afinal não me propor senão a
concretização da renúncia, estava neste chove e não molha, quando me
surgiu o Afonso, que não era o Henriques, não senhor, pois para esta
história, não tem nada a contar, nem ninguém o chamou cá, era o
Afonso das cerejas, coitado, que não tinha cerejas nenhumas, mas
deram-lhe a alcunha por ser muito beijoqueiro e ter lembrado ao avô
o ditado antigo, que os beijos são como as cerejas, atrás dum vem
outro, mandou-me como chalaça, então rapariga para quê essa
pensatividez, palavra nele muito a gosto, que estás a fazer uma cara
que mais lembras um caracol no tempo quente por mais um pouco até
cheiras a oregãos e levas ainda alguma alfinetada, sorri sem grande
vontade, as preocupações a ralar-me os miolos, que se não fossem de
gente, sempre dariam para uns ovos mexidos, mas francamente melhor
préstimo lhes hei-de achar, que lhes faça brilhar a fama que sempre
vão tendo de racionalistas, inteligente papa que me parece ser neste
momento e não mais o meu mostruário de sabedoria humana, desgosto
teria o meu pai, que deus tenha, pois era sinal que deus sempre
existia, assim até a existência de deus anda com um grande ponto de
interrogação por companhia, o que já nao é mau, comparado comigo,
farta que estou de falar não com os meus botões, que os não tenho,
mas talvez com o meu fecho éclair, que segundo o António Gedeão, o
Filipe espanhol nunca teve, o que denota grande actualização na
minha sorte, em comparação com tão subido monarca, que não teve
nessa ascensão outro mérito, que o parto de sua mãe, para o qual seu
pai, sempre deve ter dado opinião, mãozinha indispensável, a mais
qualquer ingrediente promissor, lá se me foi o tal dos frutos, a
deixar-me boca amarga, mais embrenhada que dantes, no decorrer de
intrincados raciocínios, foi quando a Rosa se lembrou das laranjas e
me entra esbaforida cozinha adentro, a gritar que era uma tristeza,
que nunca tal vira, umas laranjas daquelas, que nos outros anos eram
encanto de todos e mais davam agora era vontade de chorar, perguntei
interessada como lhe iam os limões, ao que nem se dignou responder,
denotando grande desconhecimento das antigas cantilenas que lhe
louvavam o nome e desinteresse supremo pelo acomodador fruto de
tanto prato e sobremesa, foi neste intrincado e complicado pesar que
vai toca o telefone, era a Maria bacalhoa, não se sabe donde lhe
veio o cognome, mas dalgum lado terá sido, que estas coisas sempre
têm a ver com outras, a contar a história da mula rica porque não
tinha alinhado nisso da reforma agrária, que bem se sabe eram coisas
dos pobres sem padrinhos, ora esta mula, era muito bem nascida,
muito acomodada de seus bens, zelosa de grandes interesses, o que
lhe permitiu seguir pela estrada fora, com outro toque que nao fosse
o de caixa, ou o toc do errante jumentinho de Guerra Junqueiro, nem
de outra guerra que tal, que para labuta, sempre lhe ia chegando a
de ter que fazer pelo porta-moedas, para não se dizer a carteira,
não fosse ouvi-la algum larápio, ou algum esfaimado do bem alheio,
para não chamar para aqui, os casos sociais, que são sempre bastante
incomodativos e degeneram facilmente em perigoso deslize, ora a
deslizar me sinto eu, mais, que se de patins andasse, como no tempo
em que a tia sabia escorregar, para o que diga-se de passagem sempre
a ajudavam aquelas pernas hábeis em piruetas, que até lhe mereceram
o peito todo de medalhas, diga-se na melhor das intenções, já que
poucos se lembrarão de tal, neste ponto vou escorregando, a
lembrar-me de esquecer o que me não interessa, que todo o meu
interesse vai a caminho de nova descoberta, quando de descobertas
for caso, sempre me vai lembrando as tais, que deram tanta glória a
grandes e tanta lágrima a pequenos, que com mais pequenos ainda
ficaram sabendo a gente como sabe, que sempre o português se semeou
por onde andasse, o que teve como consequência, mais lágrimas ainda,
acréscimo de mar, de tanta historia já, no tempo da Ulisseia, com a
pobre da Penélope a esperar que o marido acabasse também as suas
sementeiras, pior é que mais um pouco o que se acabava mesmo eram as
sementes, o que seria sem perigo para Itaca, pois o espertalhão,
antes de ir embora, lá carregou a pobre da mulher com a carga de
trabalhos que sempre vão sendo os filhos, por únicos que sejam, não
fosse faltar-lhe o gosto pelos bordados, que de bordar se farta quem
mais nada faz, por destino ou necessidade, havendo sempre faltas
como as há, muito me admiraria que ninguém bordasse nada, senão vão
a ver as bordadoras dos arquipélagos, a trabalho de mãos sem igual,
para serem pagas ao preço da água, só que nós, se lhes queremos
comprar o trabalho, aí a água já é outra, pois já não deve ser da
encanada e passa a qualidade superior, com termas e tudo, mas sem
termos nenhuns, pelo que nada mais nos resta a não ser a
contemplação das mesmas, nas montras da baixa, que as ditas, a
ganharem como lhes pagam, não chegam por este andar a ver nunca, ora
a falar de ver, está-me cá a lembrar a piada que ouvi aqui há um ano
sobre o Tratado do José Saramago, escritor, que já é a ele só,
verdadeiro tratado de imaginação e destreza no maneio da língua, que
antes dele, havia sido do Camões e do Pessoa, e doutras pessoas
também, ainda que de há um tempo a esta parte, parecia que só uma
pessoa ocupava a paisagem literária portuguesa, vai senão quando, o
Saramago arranca por merecido o Nobel prémio, agora que lhes doa ou
não, sempre podem carregar as tintas de que vem pintado e já a
cegueira se lhes acaba, que é para saberem como o diabo os pinta,
ora por pinta, vem agora a talhe de foice, aquela amiga, que usava
esta palavra de código com o Abílio e que se estoirou a berrar,
quando a filha, após a derradeira viagem do progenitor, a saudou com
a mesma, sem se lembrar que não tinha inventado o desgosto, nem o
gosto fraco da chalaça, que chalada andava ela, sem perceber qual
era esta história, de morrer um homem longe da terra pela qual dera
a vida, a ver degenerada espécie de ourangotangos, à solta, fora de
grades, que afinal bem as mereciam, que o diga o pinochet, que está
agora à rasquinha, pois a voz do rei povo se faz ouvir sempre mais
vale tarde que nunca, só que Portugal anda a sofrer de rouquidão
crónica, o que explica o meio século onde se calhar só os mais
afortunados em saúde escaparam à moléstia, que molestados andavam
quase todos, desta ou daquela maneira, desse modo ficamos a gramar a
pastilha, que sempre havia de ser elástica, para durar tanto, como
no tempo do tal Filipe e dos outros vindos da mesma banda, o que
prova que paciência portuguesa, dura à volta de meio século, mas
sempre era bom não ensinar o truque aos vindouros, que é para não
chegarem como o carro dos japoneses, como se dizia em tempos na
televisão, agora já não fala disso, só se ouve a história do outro,
na américa, que até parece que nunca ninguém tal fez, ora eu acho
que era o momento de cada um por a barba de molho, pois se aplicam
castigo a um, tirando-lhe o posto, os que só têm outra coisa para
tirar, sempre me está a parecer que arriscam mais, tudo depende do
valor atribuído, como se de hipoteca se tratasse, que aí sim, sabe a
gente, que onde cheira a cacau, a conversa é outra, senão veja-se o
estado a que chegou a nossa riquíssima civilização, onde se olha
primeiro para a conta bancária do indivíduo, passando a meter o
nariz no que sempre andou tão escondido, que é para ser como o rabo
do dito, só que nesta história, não se sabe bem quem é o caçado nem
o caçador, o que talvez faça pensar duas vezes pelo menos, pois é
possível que o primeiro se transforme no segundo e vice-versa ou
verso, que se de poesia se tratasse, as coisas sempre haviam de ser
possíveis, habituada que está, a deitar abaixo o que a impede de
avançar, quando o poeta lhe segue o passo até à luz que nela
procura, se procurar fosse bastante, porque afinal se calhar o
indispensável seria sermos mais activos na nossa espera, que lá
dizem os franceses, ajuda-te e o céu te ajudará, mas isto de
costumes brandos nunca leva a parte nenhuma, principalmente quando
nos impede de falar, que sempre faz bem o desabafo e se calha a
encontrar eco, então aí nem se fala, que pode germinar em solução,
sabe-se lá...
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