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Marília Gonçalves


 

Lisboa Mar Largo


 

Lisboa Mar Largo
Lisboa Lisboa
mulher do afago
que o vento apregoa
mulher e cidade
menina Lisboa.


Menina cidade
do novo Rossio
esquecer-te
quem há-de
cidade navio
se tua saudade
queima até o frio
Cidade cidade
sempre com seu Rio.


Cidade Mar Largo
nova descoberta
teu nome é afago
na rua deserta
cidade cidade
cidade a nascer
no verso que largo
a quem o quiser
cidade cidade
minha irmã mulher.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Menino da beira-mar


 

Menino da beira-mar
de búzio na mão estendida
que mundos no teu olhar
Que luz, que sombra, que vida...


Chegas o búzio ao ouvido
atento escutas o mar
menino de olhar perdido
estàs vivo, sabes sonhar.


Caminhando pela praia
Ágil, em total nudez,
levas a cabeça cheia
De contos, era uma vez...


Menino da beira-mar
partilha o búzio comigo
vamos lutar contra a mágoa
meu menino, meu amigo.
 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Ivo Barroso, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Sombra

 

Na sombra
Da mata
A noite
Mulata
Gemia
De amor
A lua
De prata
A trança
Desata
Na névoa
Sem cor.
Só tu
Feiticeiro
Só tu
O primeiro
Sonho primaveril
Tens do mundo
Inteiro
Travesso
Matreiro
Moreno
Perfil.
Teu corpo
Viril
Vence
Quantos mil
Meus olhos
Veriam
Sou filha
De Abril
Nos ares
De anil
Anda solto
O dia.
Ó meu feiticeiro
O beijo
Primeiro
Não chegou a ser
Mas na alvorada
Tu és minha estrada
Eu sou a mulher.
 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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José Santiago Naud

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Laranjeiras


Laranjeiras de Agosto
Em verde esquecimento
Perfume dos frutos evapora
Memória de pétala perdidas.
Só o futuro incerto se encaminha
Rumo às mãos, rumo à terra, à água clara
No vento ao passar ainda vacilam
Murmúrios do sumo de teus lábios.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Luar


Meu luar d’esperma e de malícia
Meu concreto luar de maré-cheia
Meu erecto luar, minha carícia
Meu corpo morno num lençol de areia.


Meu luar presente, ora abstracto
Titilando desejo em mim desperto
Com luar assino teu retrato
Em filigrana d’oiro no deserto.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Negro irmão

 

Ao Assane por Ludmila



Um olhar firme e directo
Para dizer o teu nome
O respeito só completo
Ao dizer a tua fome.
Se falar da tua história
Dói a quem lhe sente a culpa
Se em mar de tua memória
Tua inocência resulta;
Se te escrevem e descrevem
Sem chegar ao que tu és
É que ficaram aquém
Da essência das marés.
Lavraste a história do mar
Com o teu nome cativo,
Mas trazes no teu olhar
O mundo em que sobrevivo.
Tu sim, conheces o preço
Do amor e da família
Perdidos desde o começo
Dos que eram tua matilha.
Tu que és ainda o olhar
Da frescura juvenil
Que semeaste no mar
O teu coração viril
Tu meu irmão, que és o filho
Da mãe de todas as mães
Trazes nos olhos o brilho
Dessa ternura que tens.
Tu que da tua pobreza
Fazes riqueza de tantos
E abres a tua mesa
Ao causador de teu espanto
Tu que sabes repartir
Dando do pouco que tens
E que choras a sorrir
Porque sabes donde vens;
Eu quero ser tua irmã
Tua mulher, tua amiga
Pra levantar amanhã
Ao que hoje o pensar me obriga.
Mas eu nem sei se o mereço...
Apesar de querer o esforço
Pró mundo futuro e moço.
É a ti negro, que falo
É a ti que me dirijo
Pois cada verso que calo
No porão do esconderijo
Não vê nunca a luz do dia
Não chega à tua verdade
Nem à voz que principia
Numa nova sociedade.
Tu tens o valor da terra
Trazes o respeito em ti
Numa alegria sincera
Que extravasa quando ri.
Como é pequeno o poema
Para dizer coração
Pra cantar pele morena
Do negro que é meu irmão.
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Juarez Leitão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Marília Gonçalves


 

Amanheci mais triste

 

 

Amanheci mais triste, os dias vão passando dentro de mim, sem horas de paz, sobrevoam-me a memória, não chegam a acontecer, quem sabe talvez pertençam a outra realidade, em que não avanço por desmerecida, ou por não ter chegado ainda o comboio dos acontecimentos desconhecidos, inutilmente esperados, na esperança sem apoio, aquela teimosia estranha, a levar-nos onde se tivéssemos senso comum não iríamos nunca, que para lá ninguém nos manda, vamos por caturrice, ou para justificar anteriores passos, que ao parecerem-nos absurdos, nos empurram para a aceitação de outros que tais, foi aí que me surpreendi a olhar para mim, a ver-me com olhos que não tenho e nada me diz que venha a ter, assim, decidi não perder mais tempo e começo a viver por fora o que não me foi autorizado por dentro, lembro-me dos amarelos em que gritei de sol e perplexa procuro o caminho da chuva, eis senão quando, deparo com o espelho do tempo a atravessar a imagem como eco do futuro, e disse para mim própria, rapariga, a ires por este caminho não vais a parte nenhuma, que te não ouve o mar das palavras sequer, não te admires por conseguinte, de não compreenderes tu mesma, o que a fria análise não poderia interpretar, nem tentes justificar o engano com outros parecidos ou iguais, ouvi a estranha reposta vinda do outro lado de mim, a dizer-me que não escutasse a voz que me contraria a vontade, a que não me quer deixar ser eu, com a minha velha sensibilidade, com a fome de ver mais, para afinal não me propor senão a concretização da renúncia, estava neste chove e não molha, quando me surgiu o Afonso, que não era o Henriques, não senhor, pois para esta história, não tem nada a contar, nem ninguém o chamou cá, era o Afonso das cerejas, coitado, que não tinha cerejas nenhumas, mas deram-lhe a alcunha por ser muito beijoqueiro e ter lembrado ao avô o ditado antigo, que os beijos são como as cerejas, atrás dum vem outro, mandou-me como chalaça, então rapariga para quê essa pensatividez, palavra nele muito a gosto, que estás a fazer uma cara que mais lembras um caracol no tempo quente por mais um pouco até cheiras a oregãos e levas ainda alguma alfinetada, sorri sem grande vontade, as preocupações a ralar-me os miolos, que se não fossem de gente, sempre dariam para uns ovos mexidos, mas francamente melhor préstimo lhes hei-de achar, que lhes faça brilhar a fama que sempre vão tendo de racionalistas, inteligente papa que me parece ser neste momento e não mais o meu mostruário de sabedoria humana, desgosto teria o meu pai, que deus tenha, pois era sinal que deus sempre existia, assim até a existência de deus anda com um grande ponto de interrogação por companhia, o que já nao é mau, comparado comigo, farta que estou de falar não com os meus botões, que os não tenho, mas talvez com o meu fecho éclair, que segundo o António Gedeão, o Filipe espanhol nunca teve, o que denota grande actualização na minha sorte, em comparação com tão subido monarca, que não teve nessa ascensão outro mérito, que o parto de sua mãe, para o qual seu pai, sempre deve ter dado opinião, mãozinha indispensável, a mais qualquer ingrediente promissor, lá se me foi o tal dos frutos, a deixar-me boca amarga, mais embrenhada que dantes, no decorrer de intrincados raciocínios, foi quando a Rosa se lembrou das laranjas e me entra esbaforida cozinha adentro, a gritar que era uma tristeza, que nunca tal vira, umas laranjas daquelas, que nos outros anos eram encanto de todos e mais davam agora era vontade de chorar, perguntei interessada como lhe iam os limões, ao que nem se dignou responder, denotando grande desconhecimento das antigas cantilenas que lhe louvavam o nome e desinteresse supremo pelo acomodador fruto de tanto prato e sobremesa, foi neste intrincado e complicado pesar que vai toca o telefone, era a Maria bacalhoa, não se sabe donde lhe veio o cognome, mas dalgum lado terá sido, que estas coisas sempre têm a ver com outras, a contar a história da mula rica porque não tinha alinhado nisso da reforma agrária, que bem se sabe eram coisas dos pobres sem padrinhos, ora esta mula, era muito bem nascida, muito acomodada de seus bens, zelosa de grandes interesses, o que lhe permitiu seguir pela estrada fora, com outro toque que nao fosse o de caixa, ou o toc do errante jumentinho de Guerra Junqueiro, nem de outra guerra que tal, que para labuta, sempre lhe ia chegando a de ter que fazer pelo porta-moedas, para não se dizer a carteira, não fosse ouvi-la algum larápio, ou algum esfaimado do bem alheio, para não chamar para aqui, os casos sociais, que são sempre bastante incomodativos e degeneram facilmente em perigoso deslize, ora a deslizar me sinto eu, mais, que se de patins andasse, como no tempo em que a tia sabia escorregar, para o que diga-se de passagem sempre a ajudavam aquelas pernas hábeis em piruetas, que até lhe mereceram o peito todo de medalhas, diga-se na melhor das intenções, já que poucos se lembrarão de tal, neste ponto vou escorregando, a lembrar-me de esquecer o que me não interessa, que todo o meu interesse vai a caminho de nova descoberta, quando de descobertas for caso, sempre me vai lembrando as tais, que deram tanta glória a grandes e tanta lágrima a pequenos, que com mais pequenos ainda ficaram sabendo a gente como sabe, que sempre o português se semeou por onde andasse, o que teve como consequência, mais lágrimas ainda, acréscimo de mar, de tanta historia já, no tempo da Ulisseia, com a pobre da Penélope a esperar que o marido acabasse também as suas sementeiras, pior é que mais um pouco o que se acabava mesmo eram as sementes, o que seria sem perigo para Itaca, pois o espertalhão, antes de ir embora, lá carregou a pobre da mulher com a carga de trabalhos que sempre vão sendo os filhos, por únicos que sejam, não fosse faltar-lhe o gosto pelos bordados, que de bordar se farta quem mais nada faz, por destino ou necessidade, havendo sempre faltas como as há, muito me admiraria que ninguém bordasse nada, senão vão a ver as bordadoras dos arquipélagos, a trabalho de mãos sem igual, para serem pagas ao preço da água, só que nós, se lhes queremos comprar o trabalho, aí a água já é outra, pois já não deve ser da encanada e passa a qualidade superior, com termas e tudo, mas sem termos nenhuns, pelo que nada mais nos resta a não ser a contemplação das mesmas, nas montras da baixa, que as ditas, a ganharem como lhes pagam, não chegam por este andar a ver nunca, ora a falar de ver, está-me cá a lembrar a piada que ouvi aqui há um ano sobre o Tratado do José Saramago, escritor, que já é a ele só, verdadeiro tratado de imaginação e destreza no maneio da língua, que antes dele, havia sido do Camões e do Pessoa, e doutras pessoas também, ainda que de há um tempo a esta parte, parecia que só uma pessoa ocupava a paisagem literária portuguesa, vai senão quando, o Saramago arranca por merecido o Nobel prémio, agora que lhes doa ou não, sempre podem carregar as tintas de que vem pintado e já a cegueira se lhes acaba, que é para saberem como o diabo os pinta, ora por pinta, vem agora a talhe de foice, aquela amiga, que usava esta palavra de código com o Abílio e que se estoirou a berrar, quando a filha, após a derradeira viagem do progenitor, a saudou com a mesma, sem se lembrar que não tinha inventado o desgosto, nem o gosto fraco da chalaça, que chalada andava ela, sem perceber qual era esta história, de morrer um homem longe da terra pela qual dera a vida, a ver degenerada espécie de ourangotangos, à solta, fora de grades, que afinal bem as mereciam, que o diga o pinochet, que está agora à rasquinha, pois a voz do rei povo se faz ouvir sempre mais vale tarde que nunca, só que Portugal anda a sofrer de rouquidão crónica, o que explica o meio século onde se calhar só os mais afortunados em saúde escaparam à moléstia, que molestados andavam quase todos, desta ou daquela maneira, desse modo ficamos a gramar a pastilha, que sempre havia de ser elástica, para durar tanto, como no tempo do tal Filipe e dos outros vindos da mesma banda, o que prova que paciência portuguesa, dura à volta de meio século, mas sempre era bom não ensinar o truque aos vindouros, que é para não chegarem como o carro dos japoneses, como se dizia em tempos na televisão, agora já não fala disso, só se ouve a história do outro, na américa, que até parece que nunca ninguém tal fez, ora eu acho que era o momento de cada um por a barba de molho, pois se aplicam castigo a um, tirando-lhe o posto, os que só têm outra coisa para tirar, sempre me está a parecer que arriscam mais, tudo depende do valor atribuído, como se de hipoteca se tratasse, que aí sim, sabe a gente, que onde cheira a cacau, a conversa é outra, senão veja-se o estado a que chegou a nossa riquíssima civilização, onde se olha primeiro para a conta bancária do indivíduo, passando a meter o nariz no que sempre andou tão escondido, que é para ser como o rabo do dito, só que nesta história, não se sabe bem quem é o caçado nem o caçador, o que talvez faça pensar duas vezes pelo menos, pois é possível que o primeiro se transforme no segundo e vice-versa ou verso, que se de poesia se tratasse, as coisas sempre haviam de ser possíveis, habituada que está, a deitar abaixo o que a impede de avançar, quando o poeta lhe segue o passo até à luz que nela procura, se procurar fosse bastante, porque afinal se calhar o indispensável seria sermos mais activos na nossa espera, que lá dizem os franceses, ajuda-te e o céu te ajudará, mas isto de costumes brandos nunca leva a parte nenhuma, principalmente quando nos impede de falar, que sempre faz bem o desabafo e se calha a encontrar eco, então aí nem se fala, que pode germinar em solução, sabe-se lá...
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Nilto Maciel