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Neide Archanjo


 

O amor é camisa


O amor é camisa
que se carrega sobre o esqueleto
sem saber que por dentro
está cerzido o Tempo.


E passa o Tempo por dentro
das pedras não decifradas
dos mapas portugueses
do oceano que já foi mar
e antes rio
do assassinato do fundista solitário.


E passa o Tempo por dentro
de Publio Virgilio Marão
sonhando Enéias
de Ragusa no Adriático
dos navegantes de Urano e Netuno
de certos tons de abril
que será sempre e estranhamente
abril.


E passa o Tempo por dentro
do bisavô Affonso Donato
visitado por um anjo
no dia da sua morte.


E passa o Tempo por dentro
da Quinta Sinfonia de Mahler
das janelas de Veneza
dos 150 Salmos de Israel
e daquilo que se amou de verdade.


Passa o Tempo por dentro
desta página
como passa o incenso
por dentro do labirinto
de um relógio chinês.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Não pude ser


Não pude ser
o teu amor perfeito
antes esta ferida.
Por isso para ti
não serei a pele
— poro a poro teu alumbramento —
serei apenas a cicatriz.


Perfeita.


Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.
 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Cláudio Portella

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Ah, meu coração


Ah, meu coração
         fluente atento apocalíptico resoluto
pleno de vícios
alegre formoso
         e em forma de gota.
No amor tem seu reino:
exercício inquieto e longo
(de claro e lúcido desempenho)
invadindo o outro
mas invadindo-o de fato
         além do tato do cansaço do medo
cavalgando-o como idéia
         esporas leves
         pernas        rudes
         égua e cavalos
galope escancarado
à luz de outras janelas.
Porque se não agarra assim o outro
meu coração se perde
deixa-se ficar como coisa conclusa
vendo e tendo como urgente
         um limite falso e amortizado.


Solidão de árvore
esperando o fruto.


Solidão de Lázaro
esperando o Cristo.


Solidão de alvo
esperando a seta.


Ave, poeta.
 

 

 

Culpa

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André de Sena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Noite adentro


Noite adentro
olhos ancorados em Deus
dormem os animais
as crianças as plantas


Ninguém mais.
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Nirton Venâncio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Estou aqui


Estou aqui
numa das esquinas do planeta
entre o Mediterraneu e o Oceanus Atlanticus
nestas costas
onde cerraram-se para sempre
rios abras e baías
e mesmo algumas ilhas
estuários interiores.
Eu, selvagem, mulher silvestre,
florida em telas e museus
vergonhas não-cobertas
—ah, Iracemas Paraguaçus Moemas! —
entre os deleites da corte instalada.
Eu que não tive por trisavô nenhum celta
bem rico e bem atrevido no mar
a quem chamasse armador.
Eu que deixei para trás
sertões não-navegados
em terra e mar fundidos
nossas Aljubarrotas e Alcácer-Quibires
chão de estrelas e derrotas
compostas identidades
onde o imenso amadurece.
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Jorge Pieiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Ontem


Ontem
noite alta
na cama desfeita
tua imagem me surpreendia


cravando um punhal doce
no meio do meu corpo
onde o desejo renascia.


Ninguém nos via
nem o sono
que diante da tua presença
bruscamente se evadia.


         Ontem
         noite alta
         na cama desfeita
         nasciam flores
         nasciam flores.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Márcio Catunda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

Neide Archanjo


 

Receita de poeta
 

 

Ternura, menos cruel que a paixão
Bondade, tão bela quanto a manhã
Consideração, aquela de que São Bernardo fala
Desvelo, de pai, amigo, amante, irmão
Palavra, instrumento que lapida história, estórias, faz versos e [reversos
Navegação, no céu brilhante do computador e também no branco
da página em branco
Soares Feitosa, Ulisses no sertão!
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

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Álvaro Pecheco