Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

Ribeiro Couto


 

A invenção da poesia brasileira


Eu escutava o homem maravilhoso,
O revelador tropical das atitudes novas,
O mestre das transformações em caminho:

 

"É preciso criar a poesia deste país de sol!
Pobre da tua poesia e da dos teus amigos,
Pobre dessa poesia nostálgica,
Dessa poesia de fracos diante da vida forte.
A vida é força.
A vida é uma afirmação de heroísmos quotidianos,
De entusiasmos isolados donde nascem mundos.
Lá vai passando uma mulher... Chove na velha
praça...
Pobre dessa poesia de doentes atrás de janelas!
Eu quero o sol na tua poesia e na dos teus amigos!
O Brasil é cheio de sol! O Brasil é cheio de força!
É preciso criar a poesia do Brasil!"

 

Eu escutava, de olhos irônicos e mansos,
O mestre ardente das transformações próximas.

 

Por acaso, começou a chover docemente
Na tarde monótona que se ia embora.
Pela vidraça da minha saleta morta
Ficamos a olhar a praça debaixo da chuva lenta.
Ficamos em silêncio um tempo indefinido...
E lá embaixo passou uma mulher sob a chuva.


Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.110
 

 

 

Elaine Pauvolid

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J. Romero Antonialli

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

Cantiga do avô português


O meu avô foi à caça
Na serra do Cubatão.
Mas, ano vem, ano passa,
Nunca volta do sertão.

 

Dizem que os índios são bravos.
Nem sempre as índias também!
Meu avô levou escravos
Com redes que embalam bem.

 

O bafo das noites quentes
Faz pensar noutros Brasis
Em que andam nossos parentes
Com outras índias gentis.

 

"A caça, que tempo dura?",
A minha mãe perguntei.
"Vai até a sepultura,
Porque é serviço de El-Rei."


Publicado no livro Entre Mar e Rio: poesia (1952). Poema integrante da série Neto de Emigrante.
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.387
 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Ribeiro Couto


 

Discurso afetuoso


Ó poetas de gabinete,
Que da vida sabeis apenas a lição dos livros,
Vossa poesia é um jogo de palavras.
Vossa poesia é toda feita de habilidades de estilo,
Sem a marca um pouco suja da experiência vivida.

 

Não sabeis de nenhuma espécie de sofrimento,
De nenhum dos aspectos sedutores do mal,
Não sabeis de nada que está realmente na vida.

 

Não vos inquieta o desejo de quebrar a monotonia,
A exasperada fadiga das coisas iguais,
A saborosa audácia do mau gosto.

 

Tudo em vós é correto, frio, sem surpresas.

 

Ah, tudo que sabeis é através dos livros.
Não sofreis a curiosidade viciosa das aventuras,
Nem a mágoa dos meses vividos à toa,
Nem o bocejo que a mulher tão desejada provocará um dia.
Não conheceis o remorso das devassidões
E a desvairada esperança que há num amanhecer depois
da noite perdida.

 

Para vós não existe a vida: existem os temas poéticos.


Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.131
 

 

 

Luiz Bello

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Paulo bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

Fado de Maria Serrana


Se a memória não me engana,
Pediste-me um fado triste:
Triste Maria Serrana,
Por que tal fado pediste?

 

Na serra, a fonte e as ovelhas
Eram só os teus cuidados;
Tinhas as faces vermelhas,
Hoje tens lábios pintados.

 

Hoje de rica tens fama
E toda a cidade é tua;
Tens um homem que te chama
Ao canto de cada rua.

 

Mas ai! pudesses de novo
Tornar à serra, Maria!
Se não te perdoasse o povo,
A serra te perdoaria.

 

Lá te espera o mesmo monte,
E a casa junto ao caminho,
E a água da mesma fonte
Que diz teu nome baixinho.

 

Secos teus olhos de mágoa,
Se não tivessem mais pranto,
Choraria aquela água
Que já por ti chorou tanto.


Publicado no livro Entre Mar e Rio: poesia (1952). Poema integrante da série Guitarra e Violão.
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.425
 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Ribeiro Couto


 

Festa na Bahia


Andorinha cantou é dia.
(Motivo popular.)
Cristo nasceu na Bahia.
(Motivo popular.)

 

Andorinha cantou é dia,
Cristo nasceu na Bahia.

 

Aqueles sábios das Escrituras
Já não gostavam de nós, eu sei.
Era o preconceito contra as misturas.
Índios e negros, raças impuras,
Que era aquilo, com portugueses de lei?

 

Andorinha passou contando
Que o Filho de Deus estava chegando.

 

Teve sempre de tudo na Bahia.
A gente querendo acha: acha porque ainda tem.
Mulheres, então, nem posso dizer as que havia!
Umas de pé descalço, outras com colar de pedraria,
Iaiá, cafuné, berenguendém.
No céu de coqueiros cantou a andorinha.
A cidade ficou sabendo: Nosso Senhor do Bonfim já vinha.

 

Houve de tudo na Bahia e de todas as cores,
Houve tudo que é bom e ainda há.
Risos de todos os dentes, braços de todos os odores,
Mulatas enfeitiçando padres e governadores,
Azeite-de-dendê, moqueca de peixe, vatapá.

 

Andorinha cantou é dia,
Cristo nasceu na Bahia.
Domingo eu vou lá.


Publicado no livro Cancioneiro de Dom Afonso (1939).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.279
 

 

 

Nei Duclós

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

II - Café


Sabor de antigamente, sabor de família,
Café que foi torrado em casa,
Que foi feito no fogão de casa, com lenha do mato de casa,
Café para as visitas de cerimônia,
Café para as visitas de intimidade,
Café para os desconhecidos, para os que pedem pousada,
para toda a gente.

 

Café para de manhã, para de tardinha, para de noite,
Café para todas as horas do riso ou da pena,
Café para as mãos leais e os corações abertos,
Café da franqueza inefável,
Riqueza de todos os lares pobres,
Na luz hospitaleira do Brasil.


Publicado no livro Província (1933). Poema integrante da série Produtos Nacionais.
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.228
 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

Ribeiro Couto


 

Ilha distante


Ilha de melancolia,
Sem portos e sem cidades —
Só praias de areia fria
E coqueiros com saudades;

 

Praias de uma areia morta,
Conchas que ninguém apanha,
Coqueiros que o vento corta,
Brandido por mão estranha;

 

Morta já à flor da onda
A espuma a sumir na areia;
Nenhuma voz que responda
Aos ais que o vento semeia;

 

Ilha deserta, deserta,
Nem sequer junto a outra ilha;
E à noite uma luz incerta
Que não se sabe onde brilha;

 

Ilha de um só habitante,
Com seu mar fora do mundo,
Mar que na maré vazante
Cava cem braças de fundo —

 

Ainda hás de ser a alegria
De um vaporzinho cargueiro
Que a ti chegará um dia
Perdido no nevoeiro.


Publicado no livro Entre Mar e Rio: poesia (1952). Poema integrante da série Litoral Bravio.
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.422
 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos

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Maria Maia