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Salomão Rovedo


 

As areias cores


Um pouco de azul não faz mal a ninguém,
nem o verde que se esgueira entre as casas
ou a mesma estrela multicor que me segue,
cintilando mistérios, emprenhada de segredos.


Faz bem o cristal salinoso que emerge da onda
e penetra entre as frestas das roupas, botões,
a espuma que lambe a epiderme rugosa e sã,
lábios ressecados noutros lábios ressecados.


Não faz mal o cheiro de mar aromatizado,
vasa que entranha e fere as narinas da alma,
nem faz mal a água doce que corre nos dedos
enquanto o rio se mexe direito a outros rios.


Faz muito bem a luz clara, manhã aventurada
que se debruça em cumprimentos e mesuras,
perseguindo o som em partitura emoldurada,
letra de música ministrada às rezas vesperais.


Não é mal despertar sobre o corpo dela em duna,
lençol de areia monazítica, amplo de vivacidade,
salgada sebe, glândulas salivares, cuspe, licor,
pudor rouco, gozo em azul, destilado entre coxas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Salomão Rovedo


 

As marés


Direi: é sábado, 30 de outubro,
a lua imensamente enorme,
muito maior do que o sol,
acachapante, humilhando
o pouco que restou de nós.


Boa noite antiguíssima lua,
pode entrar, o coração é seu,
aplastra as vagas sem dó:
mete de entremeio o amor,
(afinal eleva-se a palavra).


Não há sentimento, nem maré,
nem provocação no céu vasto,
boa noite amiga lua, lua dela,
pode entrar, aplastam-se as vagas,
o coração é seu, ama-o sem dó.


Digo que é sábado de outubro,
de lua imensa (a mente dorme),
ó sol grande, de joelhos e casto,
indulgente e demasiado humano,
ama um pouco a sombra de nós.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

Salomão Rovedo


 

Os mariscos


Saboroso senti-los vivos:
Água do mar na saliva,
uvas tintas de vinhos
e gotas azedas de limão.


Mariscos a la ostra – crus
bom tinto entre garfadas
agora vão morrer na boca
beijo venenoso das deusas.


Completamente de porre,
em Viña del Mar e Reñaca,
Oceano Pacífico valente,
ou no Atlântico pacífico.


São Luis, Rio de Janeiro,
em Araçagy ou Recreio,
sabem o puro rico sabor,
ressecada boca de areia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens, Julgamento de Paris

Salomão Rovedo


 

Os rios


Cantar os rios, sim, eles são belos
e contemplá-los muito nos ensina.
Mas para que servem as margens?
Sim, o rio tem águas importantes,
transforma as margens em paisagens
passageiras, em visões e miragens...
O rio é, sim, o Rei das Selvas
e das planícies, cujas águas límpidas
formam remansos e correntezas.


Mas – e as margens?
Ninguém canta as margens,
sós os rios e suas águas milagrosas.
Todos cantam, mas as margens,
serão simples terras a desfilar
rapidamente à vista dos passantes?
Terras férteis – filhas fixas e perenes
dos rios, imutáveis barrancos.
O rio passa célere, mas as margens
presenciam vidas verdes,
que ali permanecem pela eternidade.
Volta e meia revoltam-se, mudam de lugar.


Todos cantam os rios, mas as margens?
Os rios são assim: importantes
mais pelas águas cristalinas,
que pela margem.
As estrias das margens enodoam
de humo e lodo o rio e desse
contrastante milagre foi de onde
resultou a vida – não a morte...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Salomão Rovedo


 

Os mares


"Débil llega el mar
           hasta mi cuarto
           meciéndome
           entre sus algas dedos"
                      Carmen Berenguer


Mar de meditação.
Mar primordial.
Mar principalmente carioca.


Origem e fim de tudo,
bate no Rio de Janeiro
mandado por Iemanjá
ou por Posídon.
Banha Uiaras de areia,
engole atrevidos, ousados.


Mar de cores impuras,
que manda a saúde embora.
Bendito seja o fruto
do teu profundo ventre,
zelai os pescadores.


Trazei no toldo das ondas
o alimento de todos os dias,
o sal amargoso do batismo,
o sal da fé e da vida.


Mar que aceita surfistas,
travessos amantes notívagos,
ambos enfeitiçados
pelo encanto das sereias.
Barcos, iates, saveiros,
mar de engolir navios.


Mar de desertos e praias:
Copacabana – verde de musgo,
Arpoador – altar de beleza,
Ipanema – convite ao carinho,
Leblon – caminho da Barra.


Grande ventre de silêncios,
algas negras que geram
moléculas viscerais,
amniótico líquen,
negro ventre abençoado,
rezai por nós predadores.


Mar perdido por meandros
das praias do Recreio,
lagoas, seios, pântanos,
coxas, restinga de Vênus,
rumo a outros litorais.


Mar de liturgias e orações,
mar essencial, onde navegam
pensamentos e pirilampos,
mar que é rio, mar de rosas,
mar da antropogênese de nós.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

Salomão Rovedo


 

Os lençóis dunas


Dentro da praia deserta
Dentro do ventre do mundo
Não durou nem um segundo
Estar nos braços de Rita


Foi num dia de domingo
Um dia não uma noite
A ventania bailava o açoite
Na cabeleira de Rita


De longe divisei o Farol
Que me guiou para a praia
Nos braços de uma sereia
Que tinha o cheiro de Rita


A estrela que me guiou
E me livrou do tormento
Embaçou por um momento
As coxas negras de Rita


E ali mesmo me salvei
Foi um momento divino
Quis o sereno destino
Atracar no porto de Rita


E fui navegando a esmo
Nas dunas alvas dos Lençóis
Ao som das ondas bemóis
Bailava o sorriso de Rita


Sem documento ou celular
Sem passado nem futuro
Vou vivendo a cor do ouro
Na identidade de Rita


Por avenida tenho o deserto
Minha casa eterno oásis
A alma carregada de paz
Respiro o hálito de Rita


Ei meninada corre cá
Me diz quem é tua mãe
Não precisa nem dizer
É tudo escritinho a Rita!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

Salomão Rovedo


 

As ondas


Entre dois horizontes,
entre o céu e a terra.


Entre quatro paredes,
entre o teto e o chão.


Entre os oito caminhos,
entre o muro e a estrada.


Entre os doze oceanos,
entre a margem e o vão.


Entre quatorze destinos,
entre mim e o amor dela.


Entre dezoito infinitos,
entre a nascente e o mar.


Entre vinte tormentos,
entre o começo e o fim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

Salomão Rovedo


 

Os dias mágicos


Braços abertos, correndo contra o vento.
Por que de repente veio essa lembrança?


Só se foi o retrato de um dia da infância,
brincando na areia dura de Olho d'água.


Chorar a vida, se de tudo um pouco eu ri?
Esquecer pequenos amores que não tive?


São sonhos, terra para a lavratura, medos,
plantei-os tais sementes que jamais brotam.


Mas havia o demônio, indômito hóspede,
insaciável, Agnus Dei, libera-me Dominé.


Sobrevivendo à morte e à transfiguração,
arma teleguiada: um coração que explode.


A alegria me alegrou, de tristeza entristeci,
enquanto o tempo disfarça perigosamente.


Enquanto não metamorfosear em calendário,
uma data de nascimento, transporte e destino.


A data na lápide, a citação na enciclopédia,
verbete de biblioteca, livro que ninguém lê.

 

 

 

 

 

 

10.10.2006