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Aníbal Beça


 

Balada do Desespero
Para Ivan Junqueira


Canto I
Narciso e Sísifo

Sereno já me agasalho
No casulo do meu ócio
Com a veste leve da espera
Cobrindo todo o meu corpo.
Os ponteiros já me apontam
- Setas cediças ao vento -
Minutos intumescidos
Na febre lenta das horas.
Antes tão despudorada
Acesa em fogo de instantes
Durando enquanto durassem
Os momentos mais afáveis.
Nos limites de mim mesmo
Todo o espaço se faz pouco
Para abrigar qualquer gesto
Nesse meu canto insulado.
Em territórios de espelhos
Vi refletido e me vi
Sem nunca ter visto a face
Que outros pretendem ter visto.
Estrangeiro no convívio
Nunca me soube de mim
Aconteci para os outros
E me calco nesse acaso
(Agora mesmo me flagro
E não sei quem se confessa,
Se aquele solto de amarras
Ou se o preso atormentado) .
A questão é, mais que ser,
Saber ser o que se exporta.
Apenas sei que vim vindo
E não me vejo chegar.
Mas sei que vou para o encontro
levando todas as pedras
Que empurrei pela montanha.

Fogo de mim e tanta água
Nos quatro cantos do mito
Qual dos cantores me assalta?


Canto II
Íxion

Disperso ainda me vejo
Na roda que me aconteço
Salto a ciranda de fogo
Exortando meus pecados.
Por que fugi da parelha
Da tarefa dos moinhos
Dos grãos macios do trigo
Para as campinas das trevas?
Ó sombras que me pernoitam
Manto cinzento de mágoas
Afastai-me bem dessa aura
De incandescente tristeza.
Apenado sentencio
Os fantasmas de mim mesmo
Réu e juiz me consagro
No perdão sem ser culpado.
Eis que o outro lado me aflora
Do cofre das alegrias
E solta o som do repúdio
Para o cântico do vinho.
Mulheres que me habitaram
Vibrai comigo nessa hora
Por mim cantai e dançai
Perenes sempre perenes.
Meu desespero se escora
Em saber que novamente
Levanto para cair
Nessa Doença Mortal.
Escuto só a mim mesmo
Nesse torneio noturno
O som de tortas canções
Nos mesmos pecados de hoje .
Outrora me fui noutra hora
Anoitecido de estrelas
Do brilho que me conduz.

Fogo de mim e tanta água
Nos quatro cantos do mito
Qual dos cantores me assalta?


Canto III
Tântalo

Dissimulado me assumo
Na correnteza do símile.
Não eu mesmo senão outro
De múltipla face e só.
Existir além do ser
Constrói-se em muitas pegadas.
Árdua leitura de chão
Aprendizado de ventos
Em alfabeto de nuvens.
A escrita larga-se larva
Resenha multiplicada
Impressa na pele nova
De reinventada serpente.
Não sou eu quem se renova
Neste corpo quem me habita?
Não sou eu quem se declara
Neste discurso postiço.
Sou o que pensa e que sonha
Toda a magia do ser
O que se inventa de dúvidas
Para se afirmar criatura.
O que não veio beber
Mas imolar-se na sede.
Ó águas do meu suplício
Banhai o sal da memória
A fala que desarvora
As árvores que se afastam.
Ó sede do meu tormento
Umedece este egoismo
O Eu que em mim regurgita
Por demais pleno de mim.
Preso de seca sentença
Bebo das águas dos olhos
Nascidas da dor palustre
Da partilha dos sedentos.

Fogo de mim e tanta água
Nos quatro cantos do mito
Qual dos cantores me assalta?


Canto IV

Enredado em desespero
Sozinho cuido de mim.
E o que me salva é esse outro
Que vem na viagem comigo
Ele é quem tem alegria
Eu de triste me confesso
Hospedeiro de agonias.
Ele é quem vem e me afasta
Do cálice da tormenta
Do vinho rubro da culpa
Essa invenção dos mortais.
Não conheço ninguém triste
Só tenho amigos alegres
Nem me dano por ser triste
Assim me sei vencedor
Subindo a escada da festa
Para o sonho dos opostos
No sono eterno dos ossos
Da negação revelada
Na consciência do ser.
A diferença me assoma
Na busca do anel da aliança
Entre mim e esse outro, e sermos
Nós, a terceira pessoa,
Reunidos em amor do outro
No sortilégio liberto
Da síntese concedida.
Assim a pedra vai leve
Calçando novos mistérios;
O espelho nunca se embaça
Em solitário reflexo;
A roda alimenta o fogo
Para o calor das distâncias
E as águas que nunca secam
Molham conflitos de falas.

Fogo de mim e tanta água
As quatro canções eu canto
Em desespero lavado.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Aníbal Beça



O Gato
(Ária para tenorino e flautim)
Para Carô Murgel


O gato aparece à noite
com seu esquivo silêncio
de passos bem calculados
num jogo de paciência
as garras bem recolhidas
na concha de suas patas
O gato passeia a noite
com seu manto de togado
como se fosse um juiz
de presas resignadas
a sua sentença de sombras
seu apetite de gula


O gato varre essa noite
facho de suas vassouras
vermelhas de olhos ariscos
e alcança nessa limpeza
o movimento mais presto
o guincho mais desouvido


Mais que perfeito no bote
(tal qual Mistoffelees de Eliot)
do pulo que nunca ensina
tombam baratas besouros
peixes de aquário catitas
ao paladar sibarita


Nada à noite falta ao gato
nem a presteza no salto
nem a elegância completa
do seu traje de veludo
para o baile dos telhados
roçando as fêmeas no cio


O gato é ato em seu salto
e a noite luz do seu palco:
ribalta luciferina
lunária ária da lua
na réstia de seus dois gozos
é felix feliz felino


Guardei a sétima estrofe
para o canto do mistério
das sete vidas do gato
e seu tapete aziago
nas noites de sexta-feira
há provas do seu estrago.
 

   

 

Hélio Rola

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Jorge Medauar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Aníbal Beça


 

O Destino
(Pastorália com três leituras para solo de avena)

 

“Aquella noche corrí el mejor de los caminos montado en potra de nácar sin bridas y sin estribos.”
García Lorca



Em cerdas de seda arremeto em pausa
meu coração toca arremato em pouso
música de pasto linha de nervura
nervos de galope todo corpo é frouxo
na ravina clara todo corpo é fúria


As línguas de fogo são galhos erguidos
incendeiam tufos tuas mãos ardentes
brasas de gramínea regendo canteiros
amornam primícias e a secreta rosa
no rubro casulo desvela essa tosa


Um sol veste orgasmo nas ervas das águas
e se põe arco-íris remato regato
e o jato de curva molhado regaço
alavanca a anca tão umida/mente
em forte arremesso sereno adormeço
 

   

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Aníbal Beça



Sonata para ir à Lua


Desnudo já me dou de mim doendo
na doação das folhas da floresta
que vão caindo sem saber-se sendo
pedaços de nós na noite deserta


A lua imponderável vai ardendo
cúmplice em nossa luz de fogo e festa
Meus braços são dois galhos te dizendo
que o forte às vezes treme em sua aresta


Esta outra face frágil de aparência
que só aos puros é dado conhecer
no abraço da paixão e sua ardência


Mesmo cego de mim eu pude ver
e sentir no teu beijo a clara essência
que faz do nosso amor raro prazer
 

   

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Aníbal Beça



Canção de Barreirinha

 

Para meu irmão Thiago de Mello no ano do seu 70° aniversário, e para Thiaguinho, enfermo no Rio de Janeiro



Um largo afago me abraça
nas águas de Barreirinha
vem comigo o rio Negro
saudando as águas do Ramos
Vim para encontrar o amigo
jogar a conversa dentro
do meu coração saudoso
que jogar conversa fora
poeta não joga não
Em pé na ponta do porto
o poeta já me espera
ornado da luz em aura
de carinho e de candura
Mas no semblante reflete
algo estranho em urdidura
Abraça e nada me diz
os seus olhos falam mais
que sua boca vivaz
Pressinto:
riso disfarçando pranto
canto molhado dos olhos
poros fervilhando eventos
ventos rendilhando auroras
horas desossando o tempo
teto cobrindo metáforas
pássaros riscando sílabas
voam cartesianamente
entre o gris de duas nuvens


Tudo se exaure impotente
(maduro chão de verdades)
perante as asas concretas
não há como se enfeitar
para a ciranda dos fatos
Somente o grão da ternura
germina a viva canção
na boca do coração:
caligrafia mais simples
na rima fácil do chão


E o poeta se disfarça
sabendo-se fingidor
Só não finge plenamente
por que é dor de vera dor
essa dor que agora sente
forjada na dor do amor


Uma lágrima vacila
glaucos olhos fatigados
marejando águas domadas
Não quer rio de torrente
molhando a várzea do rosto
nem chuva de sal na pele
Que seja apenas a gota
(simples gota de regar)
lavando o lugar das rugas
canteiro de cicatrizes
que sabe de águas remotas
guardadas no barro frio
desse alguidar da memória


O aprendizado lhe diz
(no rastro a viva vivência)
pela boca de outro amigo
que as amargas não se leva
nem na conta nem no alforje
senão para o riso largo
que de rir também se chora


Mas há mazelas tinhosas
como as panteras de Borges
Cravam as unhas da angústia
no pátio do peito frágil
e fazem seu carnaval
de cinzas adormecidas


E aí só resta ao poeta
dançar a valsa dos ventos
trinar a flauta de vértebras
(emprestada a Maiakóvsky)
aquele tango argentino
que o seu compadre Manuel
entristecido tocou


Porque a certeza da festa
o remédio salvador
se faz da própria matéria
que serve a todo poeta
na alegria ou na dor:
tomar o pião na unha
domar o sino rebelde
(que zune na contramão
para os ouvidos do mundo)
colocá-lo em linha reta
nesse alegre sortilégio
que só da poesia cresce
nas ramas da claridão


E que assim seja E será


Como poeta prevejo
augúrio azul de lianas
a brisa das cataléias
com seu frescor de lavanda
lavando a dor intestina
do teu caçula tão belo
poeta no decassílabo
nome gaio goitacaz
Thiago de Ana Thiago de Mello.


Como pai já antecedo
a vidência de profeta
coração já calejado
nas sinas de mala sorte
de certa bala perdida
cravada abaixo dos olhos
do meu querido Ricardo
(o Pimpa filho do meio)
Essa dor que compartilho
se iguala na dor antiga
vidente de mim me vejo
em ti querido Thiago


Na profecia dos sons
o Andirá todo levanta
soam tambores gambás
de ganidos mensageiros
são os cães de buenas-dichas
os cães de plumas e bênçãos
ligeiros cães telemágicos
levando o recado de ervas
força dos tambatajás
puçanga de pajelança
que a selva não deixa os filhos
(galhos da verde floresta)
sem o seu velho mormaço
Mormente os suburucus
mamotes sovados de ova
do peixe acari-bodó


Barreirinha 11 de fevereiro de 1996.

   

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Aníbal Beça



Bruto Tributo

 
Para Soares Feitosa que moldou em poesia os nefandos reflexos de uma lei espúria.



Desde sempre
a cobra morde o próprio rabo,
e tudo recomeça e se acaba
numa mandala girante,
e vira e mexe e volta,
e vai ser bruta matéria
refinada pelo papo
de alguma pelikan
sangrando de azul
as penas de garças afoitas:
folhas brancas em campo blau.


À benção poeta!
Tudo é tema para poesia.


Teu tributo é teu poema,
que pagas no reverso do verso
e se abusa da paciência
e dos cegos aspeados de plantão.


Onde, os dracmas
dos donos do drama?
Com Mandrakes?


Tua pena não se aluga
se doa a Bil que é Severino,
e a Ribamar que é José
saídos de ventres marianos.


No circo
erras pelo picadeiro,
e ficas com os atirados
às feras de sempre:
retirantes do barreiro,
os mesmos moldados
filhos do barro
barrotes do oleir-Mór - Ele.


E os outros assistem
da platéia
a argila se derretendo
viscosa
para o repasto ardiloso
de muitos leões famintos.


Dai a César então
os muitos partos,
a moeda nascitura
cesariana
bem-vinda de dúvidas
no forceps da dívida.


Ó tributário rio
contrariando Heráclito
tu voltas em eterno retorno
e deságuas nas mágoas
de versos ressequidos
para a goela de muitos orós
para as águas grandes
de marombas manjedouras
de palafitas alagadas
em alugadas preces.


Até quando abusarás?
 

   

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Myriam Fraga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Aníbal Beça



Celebrando Garrincha, o santo inventor da ginga
[Anibal Beça Para Antonio Carlos Secchin]
 

         Frente a frente
              4 colunas
de dois templos em ebulição:
        raios arqueados
             oscilam
                    ossos
                      músculos
                              nervos
                   pernas em balanço:

              arquitetura móvel
      para o pêndulo da sur-
                 presa.
        Não se sabe ao certo
- dono de um mundo em rotação
                          verde
rolado no plano pleno de desejos -
               a direção
    daquele equilibrando a esfera
                  a fera
                  perseguida
          Se para a direita
                             ou
                       para a esquerda
             se para trás
                     ou pelo vão
                             que se arre-
                                      ganha

                                   à frente
  (abóbada de igreja livre
para a passagem do andor
  com seu santo rotundo)
       No frêmito feroz
                   olhos vivos e
                    lentes onduladas
      se congelam no cristal
         da ânsia espectável
                  Súbito
                    pára
                          e
                       dispara
                  navegante da luz
                em direção ao corpo
                                         só-
                lido
         num fio evanescente
   de malabarismo alumbrado
      o espectro do clown
                            Parte
               com ela
                    a esfera
                           a fera

     aos olhos de espanto
   de feras de outra esfera:
                                    Vai
                            Não        Vai
                                    Foi

   

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Dimas Macedo