Astrid Cabral
Elegia Derramada
Manaus de matinês que sabem a flertes e chicletes.
Chaplin, bangue-bangues, Gordo e Magro, astros a brilhar
nas telas dos cines Politeama, Guarany, Avenida e Eden.
Noturnas madrugadas de sinos, galos e lerdas estrelas,
alturas de lua morosa, sobras de chuva pelas sarjetas.
No púlpito da Matriz o padre possesso vocifera contra
comunistas e protestantes e joga as chamas do inferno
para apagar os irreverentes bocejos nos bancos da igreja.
Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra,
resmungo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas,
ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá,
bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida
nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta.
Manaus cheirando a borracha, bogaris, andiroba e pau-rosa,
pães-de-milho e erva-doce que chegam pontuais às portas
em vespertinas visitas de tabuleiros e cestas de vime.
Verdureiros a vender verdura com o orvalho da véspera
amoladores que negociam o fio das facas e dão de quebra
fagulhas e o fino falsete de metálico mineral gemido.
Manaus de patrióticas paradas, setes de setembro ajaezados
de chapéus, luvas, polainas, pendões, mascotes e balizas.
Bandas alvoroçando praças na filigrana dos coretos, pondo
euforia ou melancolia nos enredos de amor tão cerimoniosos.
arcaicos rituais, platônicas tranças de bem-querer mal-querer.
Bailes e blocos nos sábados gordos e magros dos clubes,
cordões e corsos carnavalescos em carros de capota aberta,
valsas, marchas, mambos-jambos, sambas e frenéticos frevos.
Bodas com banquetes, batizados e aniversários de fartas mesas
transbordando bolos: mães-bentas, babas de moça e biscoitos.
Manaus de eloqüentes, loquazes comícios de loucos rivais
políticos: pessedistas, pessepistas, petebistas, udenistas
e demais alas dissidentes, alto-falantes e rádios bradando
inflamadas falas por saias e becos: avalanches oratórias,
plataformas que se propõem domar o caos e consertar o mundo.
Manaus de portas lojas de turcos, brilhosas fazendas no chão
de vitrines entupidas, vidros de perfume, potes de brilhantina
quinquilharias, peças de rendas sujas, ranço de mofo e mijo.
Bares, joalherias e farmácias belle-époque, requinte e luxo
de mármores e cristais que invadem as escadarias e esquadrias
de solarengas casas num outrora de acácias e buganvílias.
Manaus de banhos e agrestes piqueniques em picadas e igarapés,
passeios em férreas pontes e improvisadas hesitantes pinguelas,
flutuantes que são favelas em baixo-relevo no painel dos rios,
pardas praias em que aportam catraias de relutantes peixes,
cais de diligentes incansáveis guindastes abastecendo a cidade
de esnobes fomes de batata inglesa, manteiga da Holanda, rubros
redondos queijos do Reino, vinhos da França, linhos da Irlanda
e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos
de vapores tisnados de Europa, vigias fedendo a gringa maresia,
âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas,
abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria.
Manaus de altas mangueiras a compor portais de arcos de ruas,
a estraçalhar vidraças, impacto de frutas sob fúria de chuvas,
que desmoronam tetos de nuvens e fazem ganir cães vira-latas,
soezes comensais do lixo que fermenta às soleiras sob o sol.
Tardes tarjadas de jururus urubus debruando beiras de casario,
céus que papagaios de papel e tela singram em aladas batalhas
sobre telhados encarunchados e postes floridos de trepadeiras,
galhadas em que papagaios decorebas cantam peremptas cantigas
e desafiam as manhas de macacas de sutiã e calcinha ganhando
o tão difícil dia-a-dia para saltimbancos malandros cafetões.
Manaus de negras águas onde naufrago. Manaus de águas passadas.
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