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Um esboço de Da Vinci

 

 

Castro Alves



Último abraço



"FILHO, ADEUS! Já sinto a morte,
Que me esfria o coração.
Vem cá... Dá-me tua mão...
Bem vês que nem mesmo tu
Podes dar-lhe novo alento!...
Filho, é o último momento...
A morte — a separação!
Ao desamparo, sem ninho,
Ficas, pobre passarinho,
Neste deserto profundo,
Pequeno, cativo e nu!...

"Que sina, meu Deus! que sina
Foi a minha neste mundo!
Presa ao céu — pelo desejo,
Presa à terra — pelo amor!...
Que importa! é tua vontade?
Pois seja feita, Senhor!
"Pequei!... foi grande o meu crime,
Mas é maior o castigo...
Ai! não bastava a amargura
Das noites ao desabrigo;
De espedaçaram-me as carnes
O tronco, o açoite, a tortura,
De tudo quanto sofri.
Era preciso mais dores,
Inda maior sacrifício...
Filho! bem vês meu suplício...
Vão separar-me de ti!

"Chega-te perto... mais perto;
Nas trevas procura ver-te
Meu olhar, que treme incerto,
Perturbado, vacilante...
Deixa em meus braços prender-te
P'ra não morrer neste instante;
Inda tenho que fazer-te
Uma triste confissão...
Vou revelar-te um segredo
Tão negro, que tenho medo
De não ter o teu perdão!...

    Mas não!
Quando um padre nos perdoa,
Quando Deus tem piedade
De um filho no coração
Uma mãe não bate à toa.


 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



Mãe penitente


"OUVE-ME, pois!... Eu fui uma perdida;
Foi este o meu destino, a minha sorte...
Por esse crime é que hoje perco a vida,
Mas dele em breve há de salvar-me a morte!

"E minh'alma, bem vês, que não se irrita,
Antes bendiz estes mandões ferozes,
Eu seria talvez por ti maldita,
Filho! sem o batismo dos algozes!

"Porque eu pequei... e do pecado escuro
Tu foste o fruto cândido, inocente,
— Borboleta, que sai do — lodo impuro...
— Rosa, que sai de — pútrida semente!

"Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes:
— Criei um ente para a dor e a fome!
Do teu berço escrevi nos brancos vimes
O nome de bastardo — impuro nome.

"Por isso agora tua mãe te implora
E a teus pés de joelhos se debruça.
Perdoa à triste — que de angústia chora,
Perdoa à mártir — que de dor soluça!

"Mas um gemido a meus ouvidos soa...
Que pranto é este que em meu seio rola?
Meu Deus, é o pranto seu que me perdoa...
Filho, obrigada pela tua esmola!"

 

Jornal de Filosofia

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Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



O segredo



"AGORA VOU dizer-te por que morro;
   Mas hás de jurar primeiro,
Que jamais tuas mãos inocentes
Ferirão meu algoz derradeiro...
   Meu filho, eu fui a vítima
   Da raiva e do ciúme.
Matou-me como um tigre carniceiro,
   Bem vês,
Uma branca mulher, que em si resume
   Do tigre — a malvadez,
   Do cascavel — o rancor!...
Deixo-te, pois...
   — Um grito de vingança?
   — Não, pobre criança!...
Um crime a perdoar... o que é melhor!...

"Depois. teve razão... Esta mulher
É tua e minha senhora!

..........................................

"Lucas, silêncio! que por ela implora
   Teu pai... e teu irmão!...
"Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dor!)
"Teu pai — que é seu marido... e teu senhor!...

"Juras não me vingar? — ó mãe, eu juro
   Por ti, pelos beijos teus!
   "— Obrigada! agora... agora
   Já nada mais me demora...
   Deus! — recebe a pecadora!
   Filho! — recebe este adeus!"

Quando, rompendo as barras do oriente.
A estrela da manhã mais desmaiava,
E o vento da floresta ao céu levava
O canto jovial do bem-te-vi;
Na casinha de palha uma criança,
Da defunta abraçando o corpo frio,
Murmurava chorando em desvario:
— Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!..."

Maria calou-se... Na fronte do Escravo
Suor de agonia gelado passou;
Com riso convulso murmura: "Que importa
Se o filho da escrava na campa jurou?!...

"Que tem o passado com o crime de agora?
Que tem a vingança, que tem com o perdão?"
E como arrancando do crânio uma idéia
Na fronte corria-lhe a gélida mão...

"Esquece o passado! Que morra no olvido...
Ou antes relembra-o cruento, feroz!
Legenda de lodo, de horror e de crimes
E gritos de vítima e risos de algoz!

"No frio da cova que jaz na explanada
— Vingança — murmuram os ossos dos meus!"

— Não ouves um canto, que passa nos ares?
— Perdoa! — respondem as almas nos céus!"

— "São longos gemidos do seio materno
Lembrando essa noite de horror e traição!"


— É o flébil suspiro do vento, que outrora
Bebera nos lábios da morta o perdão!... "

E descaiu profundo
Em longo meditar...
Após sombrio e fero
Viram-no murmurar:

"Mãe! Na região longínqua
Onde tua alma vive,
Sabes que eu nunca tive
Um pensamento vil.
Sabes que esta alma livre
Por ti curvou-se escrava;
E devorou a bava...
E tigre — foi reptil!

"Nem um tremor correra-me
A face fustigada!
Beijei a mão armada
Com o ferro que a feriu...
Filho, de um pai misérrimo
Fui o fiel rafeiro...
Caim, irmão traiçoeiro!
Feriste... e Abel sorriu!

"De tanto horror o cúmulo,
Ó mãe, alma celeste
Se perdoar quiseste,
Eu perdoei também.
Santificaste os míseros;
Curvei-me reverente
A eles tão-somente,
Somente... a mais ninguém!

"Ninguém! que a nada humilho-me
Na terra, nem no espaço!...
Pode ferir meu braço...
— "Lucas! não pode não!
Mísero a mão que abrira
De tua mãe a cova...
O golpe hoje renova!...
Mata-me!... É teu irmão!..."


 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

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Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



Crepúsculo sertanejo



A TARDE morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!... Tal vez uma — orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto ...
Do átomo — à estrela... do verme — à floresta!...

As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite —;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...

 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



O bandolim da desgraça



QUANDO de amor a Americana douda
A moda tange na febril viola,
E a mão febrenta sobre a corda fina
Nervosa, ardente, sacudida rola.

A gusla geme, s'estorcendo em ânsias,
Rompem gemidos do instrumento em pranto...
Choro indizível... comprimir de peitos...
Queixas, soluços... desvairado canto!

E mais dorida a melodia arqueja!
E mais nervosa corre a mão nas cordas!...
Ai! tem piedade das crianças louras
Que soluçando no instrumento acordas! ...

"Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos..."
Diz estalando o bandolim queixoso.
... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...
E fere, e fere em dedilhar nervoso!...

Sobre o regaço da mulher trigueira,
Doida, cruel, a execução delira!...
Então — co'as unhas cor-de-rosa, a moça.
Quebrando as cordas, o instrumento atira!...

........................................

Assim, Desgraça, quando tu, maldita!
As cordas d'alma delirante vibras...
Como os teus dedos espedaçam rijos
Uma por uma do infeliz as fibras!

— Basta —, murmura esse instrumento vivo.
— Basta —, murmura o coração rangendo,
E tu, no entanto, num rasgar de artérias,
Feres lasciva em dedilhar tremendo.

Crença, esperança, mocidade e glória,
Aos teus arpejos, — gemebundas morrem!...
Resta uma corda... — a dos amores puros —...
E mais ardentes os teus dedos correm!...

E quando farta a cortesã cansada
A pobre gusla no tapete atira,
Que resta?... — Uma alma — que não tem mais vida!
Olhos — sem pranto! Desmontada — lira!!!

 

A menina afegã

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Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



A canoa fantástica



PELAS SOMBRAS temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que s'escoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa! ...

Mas não branqueja-lhe a velar
N'água o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa! ...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa! ...

 

Um cronômetro para piscinas

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



O São Francisco



LONGE, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — co'a nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de lia calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...


 

Blake, O compasso de Deus

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



A cachoeira



MAS SÚBITO da noite no arrepio
Um mugido soturno rompe as trevas...
Titubantes — no álveo do rio —
Tremem as lapas dos titães coevas!...
Que grito é este sepulcral, bravio,
Que espanta as sombras ululantes, sevas?...
É o brado atroador da catadupa
Do penhasco batendo na garupa!...

Quando no lodo fértil das paragens
Onde o Paraguaçu rola profundo,
O vermelho novilho nas pastagens
Come os caniços do torrão fecundo;
Inquieto ele aspira nas bafagens
Da negra suc'ruiúba o cheiro imundo...
Mas já tarde silvando o monstro voa...
E o novilho preado os ares troa!

Então doido de dor, sânie babando,
Co'a serpente no dorso parte o touro...
Aos bramidos os vales vão clamando,
Fogem as aves em sentido choro...
Mas súbito ela às águas o arrastando
Contrai-se para o negro sorvedouro...
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.

Assim dir-se-ia que a caudal gigante
— Larga sucuruiúba do infinito —
Co'as escamas das ondas coruscante
Ferrara o negro touro de granito!...
Hórrido, insano, triste, lacerante
Sobe do abismo um pavoroso grito...
E medonha a suar a rocha brava
As pontas negras na serpente crava!...

Dilacerado o rio espadanando
Chama as águas da extrema do deserto...
Atropela-se, empina, espuma o bando...
E em massa rui no precipício aberto...
Das grutas nas cavernas estourando
O coro dos trovões travam concerto...
E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas
Caem de horror no abismo estateladas...

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!
A briga colossal dos elementos!
As garras do Centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.
Relutantes na dor do cataclismo
Os braços do gigante suarentos
Agüentando a ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai do ombro.

Grupo enorme do fero Laocoonte
Viva a Grécia acolá e a luta estranha!...
Do sacerdote o punho e a roxa fronte...
E as serpentes de Tênedos em sanha!...
Por hidra — um rio! Por áugure — um monte!
Por aras de Minerva — uma montanha!
E em torno ao pedestal laçados, tredos,
Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...


 

Michelangelo, Pietá

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



Um raio de luar



ALTA NOITE ele ergueu-se. Hirto, solene.
Pegou na mão da moça. Olhou-a fito...
   Que fundo olhar!
Ela estava gelada, como a garça
Que a tormenta ensopou longe do ninho,
   No largo mar.

Tomou-a no regaço... assim no manto
Apanha a mãe a criancinha loura,
   Tenra a dormir.
Apartou-lhe os cabelos sobre a testa...
Pálida e fria... Era talvez a morte...
   Mas a sorrir.

Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme
No sono asa de pombo, assim tremia-lhe
   O ressonar.
E como o beija-flor dentro do ovo,
Ia-lhe o coração no níveo seio
   A titilar.

Morta não era! Enquanto um rir convulso
Contraíra as feições do homem silente
   — Riso fatal.
Dir-se-ia que antes a quisera rija,
Inteiriçada pela mão da noite
   Hirta, glacial!

Um momento de bruços sobre o abismo,
Ele, embalando-a, sobre o rio negro
   Mais s'inclinou...
Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,
E um riso à flor dos lábios da criança
   À flux boiou!

Qual o murzelo do penhasco à borda
Empina-se e cravando as ferraduras
   Morde o escarcéu;
Um calafrio percorreu-lhe os músculos...
O vulto recuou!... A noite em meio
   Ia no céu!


 

Hélio Rola

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


 

Despertar para morrer


— "
ACORDA!"
  — "Quem me chama?"
        — "Escuta!"
     — "Escuto... "
  — "Nada ouviste?"
         — "lnda não... "
  — "É porque o vento
  Escasseou".
—"Ouço agora... da noite na calada
Uma voz que ressona cava e funda...
   E após cansou!"
— "Sabes que voz é esta"?
   — "Não! Semelha
Do agonizante o derradeiro engasgo,
   Rouco estertor... "
E calados ficaram, mudos, quedos,
Mãos contraídas, bocas sem alento...
   Hora de horror!...


 

Ruth, by Francesco Hayez

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Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


 

Loucura divina


"SABES que voz é esta?"
  Ela cismava!...
— "Sabes, Maria?
   — "É uma canção de amores.
   Que além gemeu!"
— "É o abismo, criança!..."
   A moça rindo
Enlaçou-lhe o pescoço:
   — "Oh! não! não mintas!
   Bem sei que é o céu!"

— "Doida! Doida! É a voragem que nos chama!..."
— "Eu ouço a Liberdade!"
   — "É a morte, infante!
   — "Erraste. É a salvação!"
— Negro fantasma é quem me embala o esquife!"
— "Loucura! É tua Mãe ... O esquife é um berço,
   Que bóia n'amplidão!..."

— "Não vês os panos d'água como alvejam
Nos penedos? Que gélido sudário
   O rio nos talhou!"
— "Veste-me o cetim branco do noivado...
Roupas alvas de prata... albentes dobras...
    Veste-me!... Eu aqui estou."

— JÁ na proa espadana, salta a espuma... "
— São as flores gentis da laranjeira
   Que o pego vem nos dar...
Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!...
Abram-se as ondas como virgens louras,
   Para a Esposa passar!...

"As estrelas palpitam! — São as tochas!
Os rochedos murmuram!... São os monges!
    Reza um órgão nos céus!
Que incenso! — Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme — Paulo Afonso!
   Que sacerdote! — Deus..."

 

Um cronômetro para piscinas

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Da Vinci, Homem vitruviano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves


 

À beira do abismo e do infinito


A CELESTE Africana, a Virgem-Noite
Cobria as faces... Gota a gota os astros
Caíam-se das mãos no peito seu...
... Um beijo infindo suspirou nos ares...

...........................................

A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo
    O precipício!... e o céu!...

                              Santa Isabel, 12 de julho de 1870

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Castro Alves



A Cachoeira de Paulo Afonso
(Nota incorporada por Castro Alves no final do texto do poema)

 

Lê-se no Dezesseis de Julho: "Depois de quatorze léguas de viagem, desde a foz do Rio S. Francisco, chega-se a esta cachoeira, de que se contam tantas grandezas fabulosas.

Para bem descrevê-la, imaginai uma colossal figura de homem sentado com os joelhos e os braços levantados, e o rio de S. Francisco caindo com toda sua força sobre as costas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços, ou em qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavaleiro sobre a cabeça.

Parece arrebentar de debaixo dos pés, como a formosa cascata de Tivoli junto a Roma. Um mugir surdo e continuado, como os preparos para um terremoto, serve de acompanhamento à música estrondosa de variados e diversos sons, produzidos pelos choques das águas. Quer elas venham correndo velocíssimas ou saltando por cima das cristas de montanhas; quer indo em grandes massas de encontro a elas, e delas retrocedendo: caindo em borbotão nos abismos e deles se erguendo em úmida poeira, quer torcendo-se nas vascas do desespero, ou levantando-se em espumantes escarcéus; quer estourando como uma bomba ; quer chegando-se aos vaivéns, e brandamente e com espandanas ou em flocos de escuma alvíssima como arminhos — é um espetáculo assombroso e admirável.

A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos. Há 17 cachoeiras, que são verdadeiros degraus do alto trono, onde assentou-se o gigante de nome Paulo Afonso.

Muitas grutas apresentam os rochedos deste lugar, sombrias, arejadas, arruadas de cristalinas areias, banhadas de frígidas linfas.

S.M, o imperador visitou esta cachoeira na manhã de 20 de outubro de 1859. O presidente, Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a idéia de erigir um monumento à visita imperial."


(Transcrita do Diário da Bahia)
 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

01/06/2005