Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

A carpideira


O esquife no meio da sala, intransigente,
Com a seda branca e fúnebre aconchegando
O corpanzil do morto, glacial e infando,
O vulto exausto, repousando eternamente.


Tece preces, a esposa, pelo Miserando,
Enquanto o filho, ajoelhado e penitente,
Em alta voz pranteia, sua mão tremente
A soltar a fria do pai, segue negando!


Anda, lentamente, a fila das despedidas:
Aproximam-se, um a um, benzem-se, balbuciam
E enfim prosseguem com as almas recolhidas...


Num canto, em espetáculo de encenação,
Soluços teatrais, lágrima financeira,
Concentrada e calma, chora uma carpideira!


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

Pão e circo.


No Coliseu, o urro das famintas feras
O povaréu romano alvoroçava.
O circo mais o pão que alimentava
A Roma augusta das passadas eras.


Ao sinal das trombetas, os escravos
Empurrados para a morte, gritavam...
Na tribuna, prazenteiros, brindavam
Ave César e uma súcia de ignavos.


Os caninos cravados no pescoço...
Ventres rasgados expelindo a entranha...
O banquete das feras inclementes...


O brilho rubro aumentava o alvoroço...
Enquanto César, com a face estranha,
Mudo, sorria, sorrateiramente...


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Nei Duclós

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

Natal.


Muitos Josés e muitas Marias,
No mês dezembro, todos os anos,
Crianças, dormem nos desenganos
Das noitadas natalinas frias.


Nas infaustas mansardas sombrias
(Longe dos brindes palacianos,
Dos fartos desperdícios vesanos)
Ceiam, então, sopas azedias.


Sem luzes piscantes, sem divícias,
Ou tertúlias ou árvore adornada,
Levam suas cruzes natalícias.


A Ausência embaixo das velhas camas
Choram, com o sangrar da alvorada
Das Más-festas tristes, desumanas!


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

Bernini_Apollo_and_Daphne_detail

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Luiz Bello

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

Cegueira.


No silêncio dos olhos mudos
Estão mortas duas retinas.
As quimeras são cristalinas
No silêncio dos olhos mudos.


Observam, atentas, as mãos,
O verde incolor do vergel.
E o azulado incolor do céu
Enxergam-no nos sonhos vãos!


Lúdica ironia do olhar:
Cegueira, onde ver é pensar!
Na prisão eterna das Trevas


A Luz das suas almas sondam.
E as almas dos que vêem rondam
Tontas, cegas, da visão servas!


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Erorci Santana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

Odes.


I

Não sei se o sonho que tenho
É o sonho que sonho.
A mesma
Chuva que irriga os vales,
Inunda as pequenas aldeias.
A lua sobre os amantes risonhos
É a mesma,
Sombria nos bosques escuros.


II

Se creres que podes:
Tenta.
Arrisca a perder-te,
Mas desbrava longe.
Arrisca à deriva,
Mas navega além do horizonte.
Melhor é a certeza da derrota
Que a vitória na possibilidade.
Se creres que podes:
Ousa.
Confia em ti.


III

As tuas esperanças
Deposita-as em ti.
As pedras do teu jardim,
Remove-as.
Planta as tuas sementes,
Varre os teus canteiros,
Rega as tuas árvores.
Não esperes que o vento
Limpe o chão do teu Outono.
Limpa-o tu. Sê teu estro.


IV

Reina sobre ti,
Mas não como um César: ergue o teu polegar.
Calígula perscruta
As viscosidades do teu corpo: reina sobre ti.
Estrangula o Iscariotes
Nas tuas mãos avarentas:
Reina sobre ti.


V

A mesma terra que calcamos
É a manta que nos recama no sono da sepultura.
Como uma brisa beijando as ramagens,
Passamos...


Após dormirmos
As folhas cinzas,
Ao pé das árvores
No Outono alheio,
Todos os anos
Ainda assim
Sobrevirão.


VI

Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.
O beijo na face dado
Ainda hoje
Nós o damos!
Nada diferentes
De escribas e fariseus.
Esbanjamos Avarezas
E Vaidades, Vaidades.
Facilmente corrompidos
Por um punhado de moedas.
Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.


VII

Meu coração publicano,
Corrupto cobrador de impostos...
Meu coração fariseu,
Mesquinho doutor da lei...
Meu coração soldado romano com as mãos ensangüentadas,
Pôncio Pilatos com as mãos impecavelmente lavadas,
Caifás com a consciência impecavelmente limpa,
Barrabás impecável.


Lázaro meu coração...


O ladrão
Meu coração
Na cruz.


VIII

Com a força com que abraçamos
Somos abraçados.
O beijo que pomos na face,
Simultaneamente,
Na face é-nos posto.
Das sementes do Mal plantadas,
O Mal medrará.
No espelho invejoso fitamos
Nossos olhos invejosos...


IX

Entre lobos
Lobos sejamos.
Entre ovelhas:
Ovelha.
Perante tantos Césares,
Submissos nunca.
Os oprimidos, entre nós,
Não sejam oprimidos.
Demo-nos
As mãos.


X

Melhor é a coroa na choupana
Que o esfregão no palácio.
Enfuna as tuas velas,
Conduz a tua jangada:
O parco peixe pescado
É teu.
O mar
Pertence a Deus.


XI

Aos deuses,
Nunca tarda,
A dádiva pedida...


Passem-se os anos:
Não tardará
O que nunca tarda.


Em breve,
Sobre o campo seco,
O amanhecer da chuva.


XII

Antes pelos jardins em que caminho,
Sem uma única flor,
Que caminhar por jardins floridos de outrem.


Quando fui semear
A terra não era minha...


Quando olhei para trás
Tinha virado à esquerda
Ao invés de à direita...


XIII

As lágrimas perdidas,
Na face humana
Diamantes são
Garimpados da vida...
A risada de hoje
É o soluçar de amanhã.


A mesma
Lagarta
Que hoje,
Penosamente,
Arrasta-se,
Amanhã,
Borboleta,
Graciosamente,
Voa.


XIV

Brinca enquanto ainda
Tens tempo para brincar.
A infância não é infinda
Há de chegar ainda
O tempo em que vais chorar.


O Outono em breve vem
Com as folhas murchas e pardas.
O Verão ficou mais além,
A Primavera passou também
O Inverno no peito guardas!


XV

De mim mesmo
Padrasto.
Estou farto da disciplina!
Ando
Por cima dos muros.
Salto
Das sacadas das janelas.
Da educação que me deram,
Restaram os pés descalços.
Algum dia
De mim mesmo
Pai.


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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J. Romero Antonialli

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

A "epopéia" da fome


I

(Episódio do incêndio na feira)


No meio de tanto lixo
Um homem revira e cheira.
E muito parece um bicho
Nutrindo-se na lixeira.


A alface murcha e roída
E o queimado rabanete,
São mais que a simples comida,
São na verdade um banquete.


A fome tem hora certa
E vem três vezes ao dia,
Tanto faz haver oferta
Ou ainda haver carestia.


Um homem fuça os detritos
Entre os chamuscados restos.
E tem os olhos aflitos
E tem o ventre indigesto.


Mas sua dormente língua,
Da boca que nunca come,
Só sente o gosto da míngua,
Só sente o gosto da fome.


E os bichos da redondeza
Promovem competição.
Ratos têm sua destreza
E querem o seu quinhão.


É a sua lida diária,
A sua infinda mão-de-obra,
Pôr no dorso da alimária
Para seus filhos a sobra.


II

De um lado do muro.
Do outro lado do muro.


De um lado do muro: a brincadeira,
O lazer, a diversão.
Do outro lado: o trabalho,
O dever, a obrigação.


De um lado do muro:
Velhos e jovens sorvendo a vivência.
Do outro lado: a sobrevivência.


De um lado do muro: o que cai no chão não se come.
Do outro lado: no chão se sacia a fome!


De ambos os lados do muro: mergulhos.
Na piscina, de águas tranqüilas.
No lixão, com ondas de entulhos!



III

A fome
Está à espreita de sinais vermelhos.


A fome
Está em todas as esquinas
E nas janelas de todos os carros.


A fome
Rouba relógios de pulso nas praças
E biscoitos nos supermercados.


A fome
Disputa os restos nos lixões
Com ratos e urubus.

...................................................................


A fome
(Tomara)
Mate logo
A fome
Sem que mate,
Para isso,
O homem.


IV

Água com açúcar
No lugar do leite
Na mamadeira.


A derradeira
Súplica de quem
Não tem a quem
Suplicar.


A fome,
De fato,
É um prato
Cheio
De descaso.


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Ricardo Alfaya

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Daniel Mazza


 

A "epopéia" da morte


I

Na companhia dos bichos,
Na terra que lhe foi dada,
O homem com os seus caprichos
São o resumo do nada.


Seiva das árvores altas,
A sua carne é do fruto.
O homem com as suas faltas
Paga por fim o tributo.


O homem é cálcio e carbono,
O húmus a nutrir a terra.
O seu corpo é um abono
Doado a faminta terra.


O homem é a pele...E os ossos,
Braços e rins, sangue e dedos,
Carne exalando remorsos,
Pútrida de ânsias, de medos.


O homem enriquece o solo
Como o fez a sua avó.
E repete o protocolo
Assim retornando ao pó.


E a sombra noutrora viva
Agora é raiz de um horto.
Foi a solução aditiva
Da terra o seu corpo morto.


Debaixo do chão que o cobre
O homem, servido, é a ceia.
Da terra a ceia tão nobre
Temperado com areia.


Debaixo do chão que o enterra
É o homem a comida farta
Que a fome enorme da terra
Nem os seus ossos descarta.


Debaixo dessas ramagens
O homem alimenta os milhos.
E transforma-se nas vagens
Que nutrirão os seus filhos.


Debaixo do chão que o come
O homem a vida renova.
E sobra apenas seu nome
Para, da vida, dar prova.


II

Propriedade divina,
A morte arrendou esse chão.
E eis que moureja na sina
Do homem nessa plantação.


A lida infinda da morte
É ceifar toda a arrogância,
E plantar toda a coorte
Junto com sua ganância.


III

A morte não quer passagem
Para a viagem fortuita.
E o homem não leva bagagem
Nessa viagem gratuita...


Com o seu infindo labor,
Essa Matrona infalível,
No sofrimento e na dor
Traz a benção indizível.


Com o seu infindo labor,
Essa Matrona usurpável,
No regozijo e no amor
Traz a agonia execrável.


(FIM DE TARDE, 1º EDIÇÃO, EDITORA FUNPEC, ISBN: 85-87528-71-8)
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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José Alcides Pinto