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Dante Gatto

gattod@terra.com.br

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

      
Notícia do poeta: 

  1. Biografia

  2. Dante Gatto é professor de Literatura da UNEMAT, em Tangará da Serra, MT, e participa da lista de discussão Litteratura <LITTERATURA@yahoogroups.com>

  3.  


 

Poemas:

  1. Se ela vier

  2. Extermínio

  3. A palavra Amor

  4. A visita

  5. Estações

  6. Remorso

  7. O dia da ausência

  8. Sei que saberei

  9. Tristeza

  10.  

 


Ensaio, crítica, resenha e comentário:

  1.  

  2.  

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

Dante Gatto


 

Se ela vier

 

Quando ela chegar

abrirei a porta como sempre.

Ficaremos um diante do outro,

terei seus grandes olhos de procura e tédio,

terei meus pensamentos e

não diremos nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

Dante Gatto


Extermínio

 

A moça mastiga o chiclete

enquanto eu espero na fila

a moça mastiga o chiclete.

 

Enquanto analisa um cheque,

enquanto conta dinheiro,

sorrindo,

somando,

carimbando,

a moça mastiga o chiclete.

 

A moça tem olhos cinzentos,

São loiros seus cabelos,

castíssima sua pele,

seus dedos são longos,

suas mãos são tão ágeis,

suas roupas, impecáveis.

Sapatos...

que importa os sapatos se a moça não anda.

Seus dentes são brancos

de um branco cortante

que fere o chiclete.

 

A sala é enorme,

O vigia é discreto,

seus olhos são vivos,

os dentes são brancos,

a sala é tão branca,

os móveis, modernos,

o ar,

condicionado.

 

O gerente sorri

seus olhos são cinzas

seus dentes são brancos,

a sala e tão branca,

branca e condicionada,

branca e cortante.

 

A moça no caixa é bonita,

o banco tão branco é bonito,

o dinheiro escorre em seus dedos,

o chiclete escondido na boca,

eu escondido na fila.

 

O chiclete,

o dinheiro,

eu,

a fila...

 

O banco,

a moça,

a fila,

o chiclete.

 

A fila,

o banco,

eu,

o chiclete.

 

A moça e eu,

o banco e o chiclete.

 

O banco, eu, a moça, o chiclete, a boca...

 

Eu, o chiclete na boca da moça.

 

O chiclete, a moça, eu na boca do banco.

 

A moça acena e sorri,

sou o primeiro da fila:

a moça mastiga o chiclete,

o banco mastiga e minha vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

Dante Gatto


 

Estações

 

Quando abriu a porta, o ruído se desfez em música...

harpas, avenas, violinos...

Tomou o café que esfriava e

ocupou a poltrona sempre vazia.

 

Um sol de verão se fez em pleno agosto.

 

Quando fechou a porta, o ruído ecoou absoluto

como um violino sem cordas

que se derruba acidentalmente ao passar.

 

Experimento o café frio,

sentado ao lado da poltrona vazia,

diante da porta que se fechou.

 

Um vento frio varre as folhas mortas em plena primavera.

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

Dante Gatto


 

A visita

 

 

Sempre a mesma visita

à noite, altas horas,

quando todos dormem...

Há muito dormem, é verdade.

O dia foi duro e o que virá também.

 

Permaneço, no entanto, insone com meus pensamentos.

Insisto

como se nada valesse a pena,

como quem nada tem além de

pensamentos.

Como se o vasto dia fosse uma ilusão desprezível.

 

Ela chega sempre

quando pressinto que devo dormir.

Só eu para atendê-la.

Os outros todos, meus companheiros, dormem...

ou simulam que dormem?

Quem sabe, os covardes!

 

Há também os que morreram...

Mataram-se por medo!

Haveria afinal outra razão?

Mataram-se sem explicação,

sem um bilhete sequer.

 

Há os que preferiram o álcool, o ópio...

 

Só eu para recebê-la...

Ela chega e repousa seus olhos,

seus grande olhos de procura e tédio,

nos meus olhos cansados

e não fala nada.

 

Qualquer palavra bastaria,

qualquer palavra seria um lenitivo,

traria, talvez, reminiscências e nostalgia.

Quem sabe teríamos muito em comum

além da muda e estéril solidão.

 

Por que, então, bate à minha porta,

altas horas,

quando todos dormem,

profundamente

e assenta-se diante de mim

com seus grande olhos?

 

E se eu não a recebesse?

Ou se, melhor, acordasse todos para vê-la,

os idiotas que duvidam da sua existência?

E diante de todos,

todos os meus companheiros,

eu a obrigasse a falar,

a explicar-se por que me procura?

 

Quando ela chegar, hoje,

gritarei!

Gritarei a plenos pulmões

em direção ao corredor vazio.

 

Bem sei, afinal, que será inútil.

Há muitos quartos e ninguém me ouviria.

As portas estão fechadas,

bem fechadas,

para que não ouçam o ruído das ruas.

Afinal o dia foi longo e terrível ...

 

Tomarei um forte calmante e

dormirei a ponto de não ouvi-la.

Que procure outro lugar,

que durma na rua

se é que dorme,

a descarada, a vagabunda...

 

Todos dormem.

Há muito dormem.

Ouço passos vindos da rua,

do barulho louco da rua.

 

Quando ela chegar

abrirei a porta como sempre.

Ficaremos um diante do outro,

terei seus grandes olhos de procura e tédio,

terei meus pensamentos e

não diremos nada.

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

 

 

Dante Gatto


 

A palavra Amor

 

Tenho medo de algumas palavras,

sobretudo temo a palavra Amor.

O poeta Carlos Drummond de Andrade aconselhou:

"Não a jogue no espaço, bolha de sabão.

Não a pronuncie".

 

Quando tento emoldurá-la,

apropriar-se dela para meu uso cotidiano,

sofro

a dor inconsolável,

irremissível,

do seu peso infinito.

 

Remorso.

 

(Não pensem na estranheza deste fato, se é que lhe pareceu estranho).

 

Justamente eu,

o conformado,

que tenho dado largas risadas do meu cinismo,

que tenho abusado da confortável e sólida hipocrisia,

que tenho me calado diante de vergonhosas infâmias,

que tenho compactuado, com silêncio, com toda sorte de mentiras,

guardo-a de toda virulência.

 

No entanto,

com o coração oprimido,

com esse mistério de vida ou morte

busco-a

(e toda a explicação é insuficiente),

atordoado  pelo seu poder,

inebriado pelo seu fascínio,

sua face múltipla e misteriosa.

 

Pressinto-a aproximando-se,

quero e não quero,

fico a sentir-lhe o marulho

- rebojo de um afogado -

e com uma força imprevisível sempre

ela esmurra meu peito enfraquecido,

crava as unhas no meu coração cansado

e sangra-o ainda.

E vem...

Arremessa-se às cordas da laringe

num doloroso atrito

e despenca, chorando, da boca desprevenida,

num salto acrobático e suicida

pela língua estúpida.

 

Cai...

 

Soa como um gemido

e se arrebenta no chão estorricado

num grande estrondo,

desfazendo-se em infinitos pedaços.

 

Todas as palavras lá amontoadas

(e é o que eu mais tenho feito)

não lhe amortecem a queda vertiginosa.

 

Reajo entretanto,

enxugo os olhos secos...

a boca seca...

a garganta seca...

e reuno os pedaços espalhados.

 

“Fez-se em mais pedaços do que havia louça no vaso”.

 

Voltarei a espalha-los, bem sei,

como quem sabe da absurda distância,

mas não se conforma.

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Dante Gatto


 

 

Remorso

 

Caminhava entre muros indiferentes

sem deixar marcas dos meus passos

no chão ressequido.

Então, perguntei-lhe,

com o coração trespassado de remorso,

dos seus mais recônditos sentimentos,

esperando que o seu coração flutuasse entre estrelas inacessíveis

apesar da mão cuidadosa descer às ervas e aos moluscos.

 

De tal modo perguntei-lhe que meus olhos cobriram-se de névoa.

 

Como nunca antes ela estremeceu.

O silêncio se fez espesso

e assisti ao desmoronar de magníficos castelos

ao mesmo tempo que o espírito de Deus

sangrava os pés caminhando nas ruínas.

 

A boca que nega a palavra

me absorve

indefinidamente...

Seu corpo pulsa,

seus olhos fecham...

 

Fico ansiando o exorcismo da palavra,

medíocre escravo do signo,

do conceito,

da absolvição.

 

Os sinais!

Preciso dos sinais!

Os seus olhos fixados num ponto qualquer?

Uma observação, a esmo, que não decifrei?

O cigarro, talvez o cigarro...

Sim. No momento depois,

indescritível momento de tristeza da contingência da carne,

sua alma disfarçada

subiria na fumaça do seu cigarro

e se aninharia aos pés de Deus,

torturando sua consciência de criador.

 

O silêncio se faz espesso e inexplicável.

 

A busca se repete,

a tristeza se repete,

o silêncio se repete.

 

Todas as suas palavras, afinal

cairiam por terra

diante do sentimento que habita meu coração.

 

Não é possível removê-lo

a não ser que ela viesse

escavasse meu peito

lavasse a alma no meu sangue

e me devolvesse enfim

a remissão do eterno.

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

 

 

Dante Gatto


 

O dia da ausência

 

Não dei conta da sua ausência

no dia em que partiu

sem alarde.

Foi um dia desses

que se perderia na memória

como tantos outros dias iguais

se perderam

não fosse pelo que foi.

 

Não dei conta do que senti

no dia em que partiu

sem propósito.

Nada me anunciou este acontecimento.

Os móveis soturnos...

os quadros processionais...

a manhã abafada e melancólica

dessa melancolia que escapa das coisas

de não estar sendo o que são.

 

Melhor se esquecesse este dia.

Ainda assim ficaria o dia

anterior ao dia em que partiu

sem renúncia.

Um dia ermo de adjetivos,

de olhares perdidos no horizonte breve,

de reticência e ranger de dentes.

 

Antes esquecesse também esse dia.

Ainda assim ficaria o dia

anterior ao dia que antecedeu o dia em que partiu

sem catarse.

Um dia de sorriso ambíguo,

sem uma, sequer, ilação

que pontificasse a existência

e adormecesse os anjos.

 

Não há como, afinal, o esquecimento.

Assisto a desastrosa romaria

dos dias que chegam, seguindo

o dia da sua partida.

 

Percebo a estranha ironia

e abraço a sua presença.

Estava comigo somente

no dia da sua ausência.

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dante Gatto


 

Sei que saberei

 

Não sei explicar como sei

e pouco importa.

Importa é que sei.

Sei...

Sei que saberei.

 

Na tarde quente,

talvez,

atravessando a rua,

os olhos fixos no verde do sinaleiro,

o passo certo, firme, acelerado...

Sei que saberei.

 

Os sinais?

Não haverá sinais,

Só uma certeza abrupta e absoluta,

uma certeza do tamanho da vida.

 

Ninguém perceberá,

porque não haverá nada pra perceber.

 

Tomando a calçada

não cairei prostrado diante das contradições todas que me massacraram,

não olharei o horizonte confuso em busca de alguma luz,

não gritarei em vão por um Deus inexistente,

não...

Mas saberei...

Sei que saberei.

 

Outros também saberão:

velhos, jovens, crianças...

Até crianças.

Não há idade pra se saber.

Sabe-se, de repente, e pronto.

 

Reconhecer-nos-emos, os sabedores!?

É certo que sim.

E o reconhecimento se fará sem alarde:

um olhar muito comum de quem compartilha uma fila

ou se encontra no elevador.

Os mais afoitos não reprimirão um tapinha nas costas.

As crianças... estas sorrirão.    

As crianças riem atoa.

No colo da mãe, a menininha sorrirá pras minhas barbas brancas,

A mãe sorrirá também, sem entender nada,

E eu gargalharei intimamente, entendendo tudo.

 

Entendendo tudo

caminharei, como sempre, pra casa.

Jantarei, sem cerimônia, assistindo televisão

E o verde do alface contrastando com o branco do arroz será um acontecimento

tão importante quanto o word trade center destruído,

e Jesus Cristo

e Tom Jobim.

 

Deixarei o corpo cansado pesar no colchão

e de olhos abertos, com a luz apagada,

sozinho no escuro,

viverei a delícia de não me importar com nada,

sentindo um detrito microscópio,

que escapou ao fio dental e à escova de dentes,

encostar-se delicadamente na gengiva desprevenida,

dizendo que ainda existo

para além da própria vida.

 

..............................................

 

Saberei,

Sei que saberei.

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Dante Gatto


 

Tristeza

 

 

              I

Tudo se tornou irremediável...

definitivo.

Os minutos arrastam-se lentamente

e o sono não vem me socorrer.

 

 

A lua é uma esfera fria,

não consola nem enternece.

 

 

Ouvi um tiro na madrugada vazia,

mas meu coração continua pulsando

num ritmo sôfrego...

insuportável.

 

 

A porta entreaberta é um convite,

mas eu sei, há muito,

que a noite já não me quer.

 

 

Nada acontece.

Ninguém romperia casa adentro

para me proporcionar, um segundo sequer,

do mais completo (e absurdo) lenitivo.

 

             II

 

Ausência absorvida...

Dor assimilada...

Solidão incrustada...

 

...

 

Uma forma luminosa se insinua

junto a linha do horizonte.

Uma brisa perpassa...

 

 

            III

 

Ah... Tristeza! Afinal quem diria?

Bruxa-musa, anjo vampiro, fera!

Revestida de amor e de quimera,

encantada nas asas da poesia.

 

 

Ah... Tristeza! Esta noite vazia

é toda nossa, louca violinista!

Num frenético arroubo masoquista,

beijo a boca feroz que me mordia.

 

 

O salto se faz, por fim, deste inferno.

As velas postas ao vento bandido.

Árvore caída, machado partido,

lambe o chão ferido o sopro do eterno.

 

 

             IV

 

Respiro um segundo de eternidade

e busco capturar a absconsa beleza

que nascerá deste momento-tristeza

como  um verme,

uma flor,

uma verdade.