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Lêdo Ivo



A Recompensa


Eis a dádiva da noite:
fenda, cova, gruta, porta
casto pássaro sem canto
cisterna oculta no bosque
concha perdida na praia
viva natureza-morta.
Um corredor de coral
matriz e canal de mangue
trilha, sebe, valva, furna
voluta cheia de adornos
desfiladeiro da tarde
tumba de sol e corola
sereno da madrugada.
Manga madura da infância
que cai num chão de mentira
sol de lábios e camélias
esconderijo dos sonhos
caminho do descaminho
brancura negra da carne
pousada em seu próprio ninho
abertura pura e escura
entre-fechado botão
ou entreaberta rosa
na noite misteriosa.
 

 

 

 

Ticiano, Flora

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José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

Advertência a um Gavião


O gavião sobrevoa
a plantação de tomate.
Meu irmão gavião,
eu não aceito a morte.
Na partilha do mundo
não estarei ao teu lado.
Jamais admitirei
a usurparão do dia.
Só sei enfileirar-me
no cortejo da vida.
Meu caminho me leva
a floresta onde fluem
as fontes escondidas.
Mesmo longe adivinho
uma árvore que tenha
frescor de fruto ou ninho.
Gavião! Gavião!
embaixador do não,
o céu não pode ser
sepultura de pássaros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

Haicai


Noite de Domingo

Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.

O Lago Habitado

Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Ricardo Alfaya

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

A Marmita


Em sua marmita
não leva o operário
qualquer metafísica.
Leva peixe frito,
arroz e feijão.
Dentro dela tudo
tem lugar marcado.
Tudo é limitado
e nada é infinito.
A caneca d'água
tem espaço apenas
para a sua sede.
E a marmita é igual
à boca do estômago,
feita sob medida
para a sua fome.
E quando termina
sua refeição,
ele ainda cata
todas as migalhas,
todo esse farelo
de um pão que suasse
durante o trabalho.
Tudo quanto ganha
o operário aplica
como um capital
em sua marmita.
E o que ele não ganha
embora trabalhe
é outro capital
que também investe:
palavra que diz
em seu sindicato,
frase que se escreve
no muro da fábrica,
visão do futuro
que nasce em seus olhos
que só com fumaça
se enchem de lágrimas.
Em sua marmita
não leva o operário
o caviar de
qualquer metafísica.
E sendo ele o mais
exato dos homens
tudo nele é físico
e material,
tem seu nome e forma,
seu peso e volume,
pode-se pegar.
Seu amor tem saia
pêlos e mucosas
e, fecundo, faz
novos operários.
As coisas se medem
pelo seu tamanho:
sono, mesa, trave.
No trem ou no bonde
nenhum operário
pode se espalhar
sem fazer esforço.
É como no mundo:
— tem que empurrar.
Vasilhame cheio
de matéria justa,
sua vida é exata
como uma marmita.
Nela cabe apenas
toda a sua vida.
E não cabe a morte
que esta não existe,
não sendo manual,
não sendo uma peça
de recauchutar.
(Artigo infinito,
sem ferro e sem aço,
qualquer um a embrulha
sem usar barbante
ou papel almaço.)
Fabril e imanente
o operário vive
do que sabe e faz
e, sendo vivente,
respira o que vê.
O tempo que o suja
de óleo e fuligem
é o mesmo que o lava,
tempo feito de água
aberta na tarde
e não de relógio.
E a própria marmita
também é lavada.
E quando ele a leva
de volta pra casa
ela, metal, cheira
menos a comida
do que a operário.

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Antônio Houaiss

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

Os Morcegos


Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteiro no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda
o dia ofendido.

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre os nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

 

 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

The Bats


Bats hide in the eaves of the customs house.
But where do the men hide who also fly
Their whole lives in the dark,
Bumping against white walls of love?

Our father's house was full of bats
hanging like lanterns from the old rafters
that supported the roof threatened by the rains.
"These children suck our blood," my father would sigh.

What man will throw the first stone at that mammal
who, like himself, is nourished by the blood of other beasts
(my brother! my brother!) and, banded together, demands
the sweat of his like even in the dark?

Man hides on the halo of a breast as young as the night;
on the fabric of his pillow, in the lantern light
man hoards the golden coins of his love.
But the bat, sleeping like a pendulum, only hoards the
offended day.
When he died, our father left us (myself and my eight brothers)
his house where, at night, it rained through the broken tiles.
We redeemed the loan and saved the bats.
Between our walls they wrangle, blind as we.

 


 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

Os Pobres na Estação Rodoviária


Os pobres viajam, Na estação rodoviária
eles alteiam os pescoços como gansos para olhar
os letreiros dos ônibus. E seus olhares
são de quem teme perder alguma coisa:
a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio num dia sem sonhos,
o sanduíche de mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a própria viagem
escondida no névoa dos horários.
Os que dormitam nos bancos acordam assustados,
embora os pesadelos sejam um privilégio
dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios assépticos como o algodão que
tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres assumem um ar grave
que une temor, impaciência e submissão.
Como os pobres são grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à distância!
E não têm a noção das conveniências, não sabem
portar-se em público.
O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve apenas a remela.
Do seio caído e túrgido um filete de leite
escorre para a pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles vão o vêm, saltam e seguram
malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidos nos guichês, sussurram
palavras misteriosas
e contemplam os capas das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o caminho do salão da vida.
Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de azeite de dendê que doem
na vista delicada
do viajante obrigado a suportar tantos cheiros incômodos,
e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto
embora alguns deles possuam até televisão.
Na verdade os pobres não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma morte feia e deselegante.)
E em qualquer lugar do mundo eles incomodam,
viajantes importunos que ocupam os nossos
lugares mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Lêdo Ivo


 

O cavalo


No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente,
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,
e se muda em estátua.

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Alphonsus de Guimaraens Filho