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Mário Hélio 

Poussin, The Judgment of Solomon

   

 

 

 


Terceiro grito:
Limitações

 

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

 

 

 

Mário Hélio


 

I (As fezes da festa)


hoje derramamos
o líquido e a lágrima,
amanhã beberemos
o sangue e o suor de sempre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

Mário Hélio


 

II (Poema para ayer)


onde havia teus olhos
grandes e dois
uma lâmpada de neon
fonte estranha e incompreendida
ponte achada e para sempre perdida
como um matagal de idéias incontaminadas
por isso incompreendidas
por um grito maior que a própria voz
por isso inaudível
por um amor sem nomes nem partidos
por isso tolo e desinteressante
por um grande mistério claro e simples
por isso profundo e sem sentido

 

 

 

Ticiano, Salomé

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Eleuda Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

III (Estático)


uma estrela cai no mar
um silêncio enche o mundo
um pavor se compenetra.
um poema cai no mar
uma gota d’água se misturva
ao mormaço.

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Xenia Antunes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IV (Espaçonavegavelar)


num acúmulo de horas vejo coisa rodopiar
através de cabeça por se desvendar
através do espaçoar
do mar
num acúmulo de oras vejo rosto corar
vejo a prece do medo do modo do homem gritar
através do escaçomar
do ar
num acúmulo de ras tos nareia domar
vejo gente morrendo ao se procurar
anular
num acúmulo de ascosturandoobarcomopodeumsóhomem
tanta coisa desvendar?

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Ieda Estergilda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

V (A angústia)


a angústia é um barco
a angústia é um porto


a angústia é uma semente
na mente da carne do homem
louco que morre sem saber


a angústia é um homem
excessivamente morto

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Adrianne D. Meyer-Gruhl Fontoura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

Mário Hélio


 

VI (Expássaro)


ícaro sem asa
pássaro sem casa
trovador
trova
dor
a
caro em as
ássaro em asa
rovador
rova
or
a v
aro ma
ssaro m sa
ovador
ova
r
a vi
ros
saro as
vador
va
a v id
o s
aro s
a dor
a
a v id a
o
aro
a or
a vida a
a
a
a vida a v
a
a vida a vi
a vida: ávida ave do ar

 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Cecília Quadros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VII (Incomunicável)


trancou-se no quarto
já sem mundo sem pátria pra ambicionar
já sem bússola sem norte para se abrigar
sem campo que a chuva regue
sem diabo que carregue
o nosso deus
e como não havia estrela pra contar
e como não havia doença pra curar
e como não havia remorso pra curar
e como não havia vida para matar
e como não havia morte para aumejar
ficou imóvel hirto supremo
lembrando as imperfeições das primeiras rimas.

 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VIII (O mágico)


o pássaro voou da cartola do mágico
mas não havia cartola nem truque
o pássaro-saíra da mão do mágico
mas não havia mão
o mágico num acidente mágico havia perdido
as duas mãos
e então de onde saíra o pássaro?
do chão, sim, do chão de onde saem
todos os pássaros
mas não havia chão
a multidão bem observou
não havia multidão nem mágico
mas o pássaro realmente voou.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Maria do Socorro Cardoso Xavier

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IX (Choro e luz)


num dia de festa de muita alegria
lavei meus sonhos na velha pia
e tive medo de quem sorria
e do segredo de quem morria
mas era festa de só um dia
já não bastava tanta agonia?
eu precisava da tal fatia
de choro e luz de fantasia
mas a batalha era que ardia
a sarça ardente na mente fria
meu ser uma linha já que seguia
seu próprio passo de travessia
e para longe do espaço ia
e até bastante cedo descobria
não era amor o que se amou um dia
era outra alegria que irônica ria
era o nome do bicho que verônica via
que me espantava mas não fugia
que me matava mas nãomorria
era outra alegria... e é triste toda alegria

 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Laeticia Jensen Eble

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

X (Dos que vivem na sombra)


ontem suspeitei o cego em mim
andei errante por ruas e não encontrei luas
e me castiguei com medo de mim
ontem descobri o monstro hurrando em mim
quisera que meu corpo fosse vosso corpo
o sombrio vagalume por pousadas de mim.


ontem suspeitei o descoberto em mim
e pensei em andar pra sempre nutando
pra ver o rosto vasto que se esmaga em mim
vencido contrafeito morto
me agarrei ao quindavia de intato em mim
há muito eu constatei a insegurânsia em mim
o anjo rebelde que havia em mim
o estranho prisioneiro nas masmorras em mim
escrevi versos duros de dura ansiedade
mas não constatei verdade alguma
escrevi versos pálidos num suspiro
mas não encontrei nenhuma só lição
à tona tropeçando nos meus passos
penso que é angústia o sentimento vácuo
mas não sei ao certo se existe angústia.
quisera que meu bálsamo fosse o vosso beijo
tendes lábios enormes e eu não os vejo
mas no alto do rosto se incendeia
a mesma luz sombria que me guia.
as forças me forçam a fins que desconheço
mas suspeito que está no universo falido
ontem descobri o pouco que conheço
e me vi trancado pelo avesso
não sei se foi remorso o que passou por mim
ou foi vontade de fugir de mim.


ontem descobri o desespero em mim
verti meu sangue no vasto mundo
amorte doido feito busquei
rasguei papéis desfiz contratos
que com meu ego o tempo fez,
sonhei loucuras calei-me há tempo
meu sofrimento é tão imenso e tão presente
que nem notei
é lodo e mundo ida sem volta
amorte é sangue maldiçoado
corpo do livro pastirrasgado
amorte é medo nunca explicado
há sempre uma possibilidade de não me esconder,
e vocês sorririam se eu dissesse que a tristeza
é supérflua enquanto importa esta análise?
deixa nua a verdade do medo todos temos medo
talvez seja pela cereja que tenho no corpo
e ninguém a colheu.
nunca mais amorte amarei
nunca direi sim direi sempre talvez.


ontem suspeitei o inacabado em mim
orgasma prometida à minha estrela
à custa da revolta que houve sempre em mim
os conhecidos seres conformados como eu
inconformado que apesar da fraqueza
nunca olhei pro fim
às vezes penso que somos frutos das ondas dos instantes
que arrebatadas nos levam distante
mas é bastante pra da tal verdade ficar mais distante


ontem constatei o espectro em mim
com sua mão de fogo exorcizando a dor
mas sei e muito sei que não existem santos
apesar do ódio que sou eu amo tanto.
ontem cobri redescobri grotescos arabescos
ridículo estranho e iníquo eu era para mim.
há sempre uma possibilidade (mesmo que longínqua)
de esquecer a culpa e escapar de mim.

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Adelaide Lessa

 

 

11.05.2006