Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Causa e consequência


Eis um conceito bizarro de democracia:
substituir um governo opositor
a custa de milhares de homicídios.
O ódio nascerá desses atos infames.
Com o lenocínio, o desvelo.
Com as migalhas, a sordidez.
Bombardear outros países, derrubar os seus governos,
a revolta germinará das agressões.
Com os aduladores, a autoflagelação.
Com as bombas, o Natal.
Com o petróleo - os disparos.
Uma voz no aeroporto:
"Favor evitar problemas de segurança,
não deixando bagagem desacompanhada".
Com a cobiça, o metabolismos dos sapos.
Com Dionísio, os pênis arrancados dos altares.
Eis a forma mais cínica de autodefesa:
vincular a força bruta aos valores espirituais,
Devastar o mundo para melhorá-lo.
Outras vozes ecoam no mundo:
"Favor evitar problemas de segurança,
eximindo-se de bombardear o território de outros países!"
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Não à guerra!


O canalha, mãos sujas de sangue, é um tarado.
Outros patifes o apoiam.
Uma chusma inominável se constitui, sado-masoquista.
Eles ditam as leis do mundo!
Passou o tempo do protesto e as bombas detonam.
É contra a humanidade que o crime se perpetra.
É contra todos que avançam os carros de combate
e as explosões levantam línguas de fogo.
Bombardeiros despejam mísseis sobre os inocentes.
E os inocentes somos nós.
O genocídio, um dilúvio de fogo,
lança bombas do alto sobre as casas e as crianças.
Um povo é martirizado e esse povo somos nós.
Seria gente ou um grupo de monstros
quem patrocina esse cúmulo de ódio?
E somos nós esses possessos de soberba,
diabolicamente maculados?
Somos nós os que desafiam a justiça divina?
Somos nós também os que repugnamos esse absurdo!
Que dizemos não à guerra e ao massacre.
Mas por que esse paradoxo e esse paroxismo?
Por que invadir, oprimir, submeter-se à insânia,
matar-nos uns aos outros,
se estamos matando a nós mesmos?
Somos nossos próprios genocidas,
idiotas ante a intempérie.
Os que gastam milhões de dólares só para matar,
somos mesmo nós, esses insaciáveis?
Somos mesmo nós os réus dessa Corte,
ou os que repugnam esse absurdo?
Somos a represália que não tarda.
Violencia gerando violência.
Protestamos nas ruas de todos os países,
enfrentamos policiais, somos espancados,
leventamos muitas vozes em defesa da paz.
Criamos a nova consciência do mundo,
unidos contra a barbárie, a horrorosa catástrofe.
Basta de chacinar os povos indefesos!
Gritamos contra a nação governada pelo louco,
o homicida impenitente.
Somos nós mesmos que denominamos liberdade
essa carnificina?



II


Os cadáveres se levantam.
Os estudantes gritam até à morte.
Mas até quando o desespero?
Nasiriyah resiste aos ataques aéreos.
Umm Qasr enfrenta as tropas agressoras.
Os impostores hediondos comandam o extermínio.
Na multidão maltrapilha e faminta,
à margem da estrada, uma mulher, vestida de negro,
pede água e comida.
Uma criança carbonizada
jaz nos braços de um velho de turbante.
Outros homens gritam, terrificados,
ante a morte dos entes queridos.
Omar Ali, de dez anos, tem uma bala no ventre
e olha mudo para o infinito.
Sua família estava jantando.
Morreram com ele as 12 pessoas de sua casa.
Emergirão os cadáveres das ruínas de Bagdá?
Quantos edifícios estremecerão ainda,
vidraças estalaçadas, o pavor estampado nos rostos.
Com que palavras rechaçaremos o holocausto?
Guerras que convertem bandidos em heróis,
a humanidade escarnecida pelo escândalo.
300 bombas diárias caem sobre a cidade arrasada.
Gasta-se um bilhão de dólares por semana
para financiar esse delito!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

O corrupto


Faz pose nas fotos do jornal.
Defende as ações do martelo de fogo.
Oferece voluntários ao holocausto.
Se diz íntimo do imperador dos exércitos.
Lambe o cu do próprio satanás.
Mas não sufoca o rumor de toda a gente.
Ante o passo da abominável estampa,
murmura-se - aí vai o corrupto...
A cidade ardente é seu reduto de escuridão.
Viaja aos portos de altivez.
Quer-se um paladino da simpleza.
Inventa deboche para emular a corja.
Macaqueia o protocolo das câmaras.
Finge ignorar a aversão que suscita.
Cultiva com cinismo o diploma da incompetência.
Mostra sem pejo a carapuça de enganador.
Mas já ninguém duvida do pútrido gesto, das artimanhas,
da máscara de trejeitos.
Ante aquela nefasta fauce,
todos entoam fabuloso uníssono: Eis o corrupto...
Vangloria-se do descaramento e da mentira.
Diz-se títere do Hemisfério,
mosquito da selva insana,
espécie da fauna indolente.
Delira, aclamado pelo desespero
e execrado pelo aplauso.
Ao espreitá-lo em covil degradado,
a grita demolidora vocifera qual tufão:
"estamos fartos do corrupto,
do patife que ludibria multidões,
do cafajeste que compra prosélitos com regalias pascoais,
que macula as mãos com a propina sobre a qual o diabo cagou".
No fragor das consciências,
além das massas alienadas,
escapa das bocas a palavra: CORRUPTO!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Fuga necessária


Como fazer para que não percebam
que conheço a psicose deles?
Como suportá-los, sem que eu me torne um deles?
Como não me confundir com a doidice deles?
Como não revelar as nossas diferenças indiscretamente?
Como adaptar-me à pontualidade absoluta?
À subserviência da arte de dizer sempre sim?
À hipocrisia ridente em nome de interesses espúrios?
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

O pior dos mundos


De todas as atitudes a pior é a violenta.
De todas as violências a pior é a armada.
De todas as agressões a pior é a covarde.
De todas as covardias a pior é a de um povo
que autoriza os seus governantes a massacrar outro povo.
De todas as guerras a pior é a hipócrita.
De todas as ilusões, a pior é a loucura.
De todas as atrocidades a pior é a cometida
sem justificativa.
Imagine dezenas de lutadores de karatê
atacando um paralítico.
É o que está acontecendo hoje no pior dos mundos.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Na ilha dos patifes


Vê a consumação da estupidez,
o encômio dos instintos inferiores.
Navega a calhordice vento em popa,
(ou melhor dito, fumaça em popa).
Lufadas de óxido de nitrogênio,
o diesel nosso de cada dia,
é a dose do suicídio coletivo.
Se paga pela luz que não se tem.
Um terrorismo de baixa tensão
em que se atenta contra os patrimônios
e contra a saúde comunitária,
nutrindo-a de partículas de veneno.
É a forma mais sutil de assassinato.
Observa como o canalha debocha:
se tem fila, já está na frente, rápido.
Vê como são espertalhões os putos:
põem cercado na praia e cobram ingresso.
O cafajeste mata, rouba, furta...
Menos um grau na escala pusilânime,
o canalha corta a preferencial,
entra na contra-mão, atrabiliário,
antes de abrir o verde já buzina.
Mesclando empáfia e exibicionismo,
pitecantropo brandindo a marreta,
eis o patife de intenções malévolas:
com algazarra sado-masoquista,
ri como a hiena, abraça como o urso,
humilha Catilina em abusar
da paciência dos quem não se acostumam
à excitação primitiva, psicótica,
à barafunda dessa extroversão
de esgares de panteras mentecaptas.
Supõe agora que essa imbecilidade
concentrou-se em determinada ilha
e entende o meu pavor dessa alcatéia.
Não há segundos - todos são primeiros,
portando algum revólver por prudência...
Entende agora a repulsa que sinto
em cruzar o meu santo com o deles.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Discurso oficial


Nada: é só distorção deliberada,
ou negligência culpável.
Mas em política tudo se perdoa,
afinal os errros são coletivos:
o povo delega,
os mandatários torturam e matam,
através de voluntários úteis,
uniformes salpicados de sangue.
Sobretudo mentir como estratégia.
O importante é sustentar a mentira
até que se transforme em não-verdade.
Afinal ninguém tem culpa,
já que não houve intenção de enganar,
mas de matar mesmo e a guerra é humanitária.
Que mal existe em liquidar populações?
São medidas inumanas, nada mais,
bombardeios mortíferos e exatos
que os sobreviventes saberão valorizar.
O absurdo está nos atentados
das milícias de insurgentes delinqüentes.
O crime está em não aplaudir os superprepotentes.
Mas o chato é aguentar essa carniça.
Exagera quem fala em hecatombe.
Tribunal sim mas para os genocidas de lá.
Tortura e pena de morte aos bandidos internacionais!
Afinal o mundo está mais seguro ...
O suicídio mútuo nos dois eixos.
A cruzada petroleira vale um mal-estar.
Pior que isso foi o corno Menelau
que por uma só infiel invadiu Tróia.