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Nagibe de Melo Jorge Neto

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Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto



O MEU AVÔ NAGIBE



 

Quando eu nasci, faltavam três dias para o meu avô completar 68 anos. Meus pais moravam em Quixadá e ele, em Fortaleza. A primeira lembrança que tenho dele é de uma véspera de natal ou outra comemoração; minhas tias e tios todos reunidos pela manhã, antes da festa, e eu brincando com uma bola de encher. - Nagibinho, me dê esse balão, meu filho. Se estourar, é capaz do seu avô ter um troço com o susto – eram os cuidados da tia Salete.

Por essa época o vovô já era meio surdo e estava longe de onde eu brincava; até hoje me pergunto como se daria o susto.

Uma grande distância nos separava; mas nem por isso, ele deixou de me influenciar enormemente. Eu observava de longe aquele velhinho de andar arrastado, circunspeto, indiferente às superficialidades da vida, reverencial. O modo cerimonial como se sentava à mesa na hora do almoço, sempre depois de acender a luz da sala de jantar e antes de bater com o garfo no prato, anunciando a refeição. A maneira como, invariavelmente, servia-se: - Primeiro o arroz, depois o feijão e depois o macarrão, depois, se ainda tiver, pode vir tudo que quiser, dizia ou cantava para fazer graça.

Depois do almoço, o pudim. E o café, cuja xicrinha levava para a varanda, onde estirava as pernas sobre outra cadeira, depois do invariável – Aaahhh! Tinha fama de dengoso, e de teimoso também, o meu avô. Mas teve uma vida bem ativa. Aposentou-se só aos 70 anos de idade, na expulsatória, como Sub-Procurador Geral de Justiça, o que não o impediu de continuar a trabalhar até quase 80, como assessor do Des. Ferreirinha, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Tinha orgulho de ter, em determinado ano, lavrado mais de mil pareceres na Procuradoria de Justiça.

Que a cerveja era a sua bebida preferida, só soube por ouvir dizer. Não alcancei essa época, só bebi com ele uma vez. Cismou um dia que voltaria a beber. Abriu o portão e foi para o bar, sob os gritos de apuros da minha avó. Trouxe ainda duas garrafas, que bebemos na varanda. Foi só, ou desistiu da idéia ou fez aquilo de pirraça com a vovó.

Depois de aposentado, vi-o muitas vezes no seu gabinete, datilografando em uma remington manual. Aquela pequena sala, a qual só se podia atingir passando pelo quarto da vovó e pelo quarto de vestir, era mágica pra mim, tinha uma ampla janela que, nas horas viçosas da manhã, espalhava uma luz leitosa e fresca sobre a escrivaninha negra do vovô, repleta de pequenos cacarecos, canetas, relógios e despertadores de todos os tipos, lanternas, canivetes e, até, uma ou outra ferramenta. A mesa onde apoiava-se a máquina de escrever ficava por trás do bureau e da cadeira giratória, com apoio para os braços, de madeira de lei; mais que isso, cabia apenas a pequena estante com poucos livros e, na parede, um pôster fotográfico, onde eu, com apenas dois anos de idade, sorria em preto e branco.

Foi naquela estante que encontrei, já adolescente, estudando em Fortaleza, uma brochura entitulada O misterioso triângulo das Bermudas. Depois do almoço, o vovô com as pernas esticadas, sentado na dita varanda, palito no canto da boca, vendo-me folhear o livro, falou. - Quer levar? Leve...- Acho que já perdi o livro que, naquele dia, carreguei com rematado orgulho.

Eu morei um tempo perto da casa dele e sempre andava por lá. De certa feita ele me pediu para comprar o leite, deu-me o dinheiro e fui satisfeito como o quê. Voltei com um saco de leite B; o C havia acabado. Ao receber o pacote, não teve dúvidas. - Olhe Wanda! Esse menino é abestado...

Cresci ouvindo ovações ao vovô, mas era a minha avó, as minhas tias, o meu pai. Não se deve dar muito crédito, embora não se desmereça. Quando ingressei na Faculdade de Direito, escutei outras referências a ele. Alguns professores o conheciam e não hesitavam em tecer-lhe comentários elogiosos. Um dia transmiti-lhe que um professor de Direito Penal mandara lembranças e um grande abraço. - Quem?... O Desembargador?... Foooi?... Ehehe. - O professor era um renomado advogado.

Às vezes via-o tão lúcido, escrevendo alguma coisa ou fazendo versos, que me perguntava onde estavam os livros do vovô, a sua grande biblioteca de Direito Penal. Papai me dizia que uns haviam sido emprestados, outros se deterioraram pelo Mondubim, no sítio onde eles moraram por um tempo. Uma vez, num desses momentos pós almoço, não sei por que, o vovô recitou pra mim, como que para testar sua memória, o art. 81 do Código Civil, enunciando o conceito de ato jurídico. Acabara de ser entabulada a nossa mais profícua discussão jurídica.

Jamais o vi lendo coisa diversa dos pocket books de faroeste, deitado de lado na ampla cama, o abajur aceso. Tinha aos montes. Era como se sua vida se tivesse resumido ao essencial: permanecer ao lado da Wanda, montar a árvore, instalar os enfeites luminosos por toda a casa e também no jardim, a cada Natal. Era altiva a maneira como, nas sucessivas vésperas de Natal que passei na casa da vovó, ele permanecia na sua felicidade centrada, indiferente ao fuxico, ao ruge-ruge de gente. Os homens sentavam numa mesinha na varanda, bebiam e conversavam e o meu avô em sua placidez distante, separado dos assuntos mundanos.

Era auto-suficiente. Ele se bastava. Fazia os próprios projetos e os executava, como no dia em que resolveu dirigir seu velho Diplomata SS, rubro-negro. Depois de tanto tempo sem guiar, simplesmente pegou das chaves, deu a partida e a aventura acabou numa frondosa árvore que se erguia na calçada oposta, bem em frente à garagem, com uma lanterna quebrada.

Tive a alegria de vê-lo e ajudá-lo a consertar seus carros. Detinha uma técnica toda especial para fazer com que o motor funcionasse, tampando com a mão a saída de ar do carburador. Por duas oportunidades fui com ele até o Mondubim. Levávamos cloro para a piscina, almoçávamos, e, numa das vezes, o vovô tirou a camisa e se pôs a concertar o motor de puxar água, botava força, praguejava; não havia jeito, não sairíamos dali antes que ele sentenciasse: – Ficou formidável, especial!

Depois de algum tempo que a Trycia freqüentava a casa dos meus avós, ele nos sacudiu a pergunta:

- Porque não casam?

- Com que dinheiro, vovô?

- Ehehehe... Não precisa de dinheiro para casar... – Talvez um dia eu entenda.

O meu avô atingiu um estágio onde os questionamentos e as preocupações cessam. A filosofia resume-se ao ato. Bastava-lhe viver e deixar que os outros, por queridos que fossem, também vivessem. Olhava a vida com um distanciamento confortável, um silêncio cúmplice, uma serenidade de quem sabe que não é preciso se justificar perante ela. Quando me despedia dele, beijava-lhe a cabeça sempre pensando no herpes zoster que lhe atingira a testa alguns anos antes e ele:

- Tá... Felicidades...

Conservava-se austero, as mãos entrelaçadas atrás da cintura e os lábios crispados, fazendo um pequeno beiço. Altivo. Como se não fosse preciso qualquer esforço para se alcançar o sentido da vida.


Nagibe de Melo Jorge Neto

 



NOTA DO EDITOR

Os Soaristas, um magote de poetas
 

Juarez Leitão, poeta e parente, quando escreveu a biografia do tio, o Padre Leitão, mencionou essa história de que os Soares gostam de fazer versos. Soares é o nome matriz de nossa família, Independência, Ceará; tem até um lugarejo com esse nome. Ainda menino, morando na casa do padre Leitão, li, em letra manuscrita, uma genealogia dos Soares, feita pelo irmão do padre, o também padre, Theófilo, a partir de Mamanguape, PB, no século XVIII, quando aportaram em Independência, no criatório de gado.

Juarez é neto de Leônidas Soares Gondim que é irmão de Nazária Soares de Nazareth, minha avô, prima legítima de seu marido, meu avô José Soares Gondim que é irmão da bisavó de Nagibe de Melo Jorge Neto. Bom, é um emaranhado que não tem tamanho. Padre Leitão é filho de Leônidas, irmão de minha avô Nazária e, pelo visto, todos eles faziam versos, menos eu que só vim fazê-los aos 50 anos.

Perante os parentes, a poesia não me deu alegria alguma. Estão mortos o padre Leitão, meu segundo pai; o poeta Adaucto Soares Gondim, irmão de minha mãe, sem saberem que o filho da Anísia, eu, o Chico José, era dado a poetar. Pior, do lado de pai, também um magote de poetas, com destaque ao Antônio Souto Teixeira, meu primo, que nunca desconfiou que eu viesse um dia a meter com versos. Sim, eu teria tido a maior alegria em mostrar a eles, padre Leitão, tio Adaucto e primo Antônio Souto qualquer dessas muitas garatujas que andei traquinando.

Pois agora o neto do primo Nagibe, o jovem juiz federal Nagibe Neto, me diz que o avô fazia versos. Vejam só! Eu o conheci, mas não me interessava por poesia. Os Jorges, de Nagibe, de origem árabe, faziam um reforço culto aos Soaristas. Paulo Petrola, poeta, também parente, é filho de Paulo Jorge, irmão de Nagibe; e Zélia Petrola, irmã de Paulo, e não sei quantos mais doutores, de A a Z, Petrolas e Jorge.

O ladro brenha, que ficou lá mesmo, nos matos, sertões de Independência, Pedra Branca, Crateús, Novo Oriente, Arneiroz e Tauá, continua versejando, e bem, garante Juarez. Vou insultá-lo a ver se a gente colige alguma coisa. Sim, disto eu lembro: o tio-padre, Leitão, recitando levas e levas de Os Lusíadas; e de Joaquim, irmão dele, engalfinhando-se com O Firmamento, belíssimo o lume de frouxo alento no meio à tempestade, de Soares Passos. Sem esquecer de convocar o magistrado Nagibe a encontrar os versos do avô.

Ah!, também com o lado pai, os Souto Teixeira, os Feitosa, meus. Vou falar com meu Compadre-primo, Luiz Souto Teixeira, que já me disse de muitos bons versos dessa parentada toda. E com o José Araújo Souto, prefeito de Monsenhor Tabosa, filho de Antônio Souto Teixeira, poeta.

Em tempo: Compadre-primo, Luiz Souto Teixeira, mandou-me um acróstico belíssimo do avô dele, tudo parente meu, lado de pai.

Falo um pouco deles aqui:


Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto



A mãe vazia


Todos os dias eu via
A mulher sentada, vazia,
Num cruzamento: agonia.
Com um filho no colo,
De quem passava pedia.
Amamentava e pedia.

Tinha dois outros,
Com quem brigava e pedia.
Os filhos inquietos corriam,
Brincavam na rua e pediam,
Mas, de perto da mãe, não saíam

Que paradoxo eu via:
Uma plenitude vazia,
Os filhos dali não saíam.


Fort, 03.08.2005
 

 

 

 

Ticiano, Magdalena

Início desta página

Inez Figueredo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto



Falta


Tua falta é tão presente
Que me faz todo falta.
Descubro-me vazio e
Procuro-te no gosto que de ti
Ficou em mim.
Em pensamentos, odores e risos.
Vejo-te, então, ainda miragem...
Também minha.
Pois quando te tenho,
Faço-me em ti,
Mas quando me faltas,
Faço-me no resto que de ti
Existe em mim.


Fort, 09.11.98
 

 

 

 

Rita Brennand

Início desta página

Astrid Cabral

 


 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

 

 

A VIDA

 

A vida são essas alegrias

Entremeadas de enxaquecas,

Essa luta renhida com Deus,

Esse desejo que não cessa de desejar,

Esse desconsolo, esse abandono,

Essa procura.

 

 

A vida é uma fé que se renova sempre,

Eis que a vida sem fé não é vida

Senão morte não morrida.

 

 

É um clamor que se quer fazer escutar

E não se cansa de clamar.

É uma dor que não quer doer,

Mas dói pra ter prazer.

É o despautério de desafiar o próprio Deus

Para se ver envolvido em Seus braços.

É a vontade de morrer de viver...

Sempre.

 

                                 Fort, 26.01.2006

 

   
 
Culpa

 

Andréa Santos

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

 

 


Para ser poeta

 

Se, por um instante, eu pudesse

Fazerem sentir o que sinto

Traduzir, por um átimo, a beleza

Da mulher nua e seus pêlos

De suas curvas, sua pela, seu cheiro;

 

 

Se me fizesse de ponte

Entre tudo aquilo que sou e

O que não alcanço,

Entre o que me apavora, me angustia

Me enche de medo e espanto

E a pobreza onde descanso;

 

 

Se, por um instante, eu pudesse abarcar o mundo

E traduzir o que me foge e se esconde

O maravilhoso espasmo do ínfimo

Que se depara com o grande

O angustioso êxtase de descobrir-se

Pequeno, pobre: insano?

Inútil, apenas um ganso

E ainda assim me maravilhasse de espanto;

 

 

Se, por um instante, eu pudesse

Beber-te e comer-te,

Perder-me em ti, para me sentir

Vivo, e viver em ti;

 

 

Se eu me confundisse com tudo

Me macerasse, torcesse, esfalfasse

E indissolutamente tentasse

Alcançar o que não posso

O que não vejo, pressinto,

Os livros, as idéias, os sonhos

Tudo aquilo que me orbita, me joga, me supedita

Qual as vagas bravias, endoidecidas,

Às naus perdidas;

Qual a ventania

Nos teus cabelos longos, dourados

Qual o mar do norte

Contra o rochedo escarpado;

 

 

Se eu traduzisse o que ninguém consegue

E sem conseguir não me desse

Por vencido ou violado

Mas continuasse extasiado, louco,

Alucinado;

 

 

Se eu derramasse todo o meu ser

Nessa aventura vã de morrer

Nesse debater-se, nesse esticar-se e ejacular-se

E morresse para, quem sabe,

De pouco, um pouco viver.

 

 

Ah, se eu pudesse alcançar

Traduzir, concretizar

O que me corrói e me mata,

A miséria, o sofrimento, a seca,

O nada,

E, como Borges, continuasse

A construir o fantástico, o impossível,

O etereoblasto, quase ainda casto;

 

 

Mesmo que em holocausto me desse

Ainda inútil seria

De pouco ou nada valeria

Mas um poeta seria.

 

 Fort, 14.01.07

 

 

 

Manoel de Barros

 

Elaine Pauvolid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

 

 


Navegar é preciso

 

 

Navegar é preciso,

Viver não é preciso.

É visceral navegar e amar,

O agitado mar da vida desbravar.

E quando a morte chegar,

Numa enorme vaga escondida,

Que jubiloso será

Perecer n’alto mar,

Entre as vagas bravias,

No maravilhoso explorar.

 

Afaste-se de nós, portanto,

Todo porto seguro,

Todo temor do escuro.

Pois tu já não sabes

Quão impreciso é viver?

Qualquer recurso de guia

A nau da vida não nos dá

Astrolábios, mapas, uma só melodia.

 

Por isso, amigo,

Não calcula, não faz planos.

Antes te deixa levar

Pelo balanço do mar

Pois jamais saberás

Quando e aonde chegar.

 

Volta-te para as estrelas

Em tu’alma escondidas

Elas que mudam de lugar

Que são tão coloridas,

Por vezes impossíveis de achar,

Com sua dança imprecisa,

São que te podem guiar.

 

 Fort, 27.03.2006

 
 

 

Giselda Medeiros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

 

Meus Vinte Anos

 

 

Saindo do mestrado outro dia,

Não mais que meio-dia,

Encontrei meus vinte anos:

Cigarro entre os dedos

Longos, desajeitados,

Soprando insolentes,

Um pouco inseguros,

Uma fumaça leitosa

Que não era danosa.

Fiquei espantado,

Virei para o lado

Meio desconcertado.

Vieram numa menina

Cabelos de milho

Encaracolados,

Presos num rabo,

Cujos óculos escuros

Escondiam uma ilusão, um certo poder,

Que em mim se desfez.

Por que se desfez

Tão cedo, de uma vez?

 

 

                       Fort., 14/06/2006

 

     

   
 
Culpa

 

Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 



01/02/2006