Nagibe de Melo Jorge Neto
O MEU AVÔ
NAGIBE
Quando eu
nasci, faltavam três dias para o meu avô completar 68 anos. Meus
pais moravam em Quixadá e ele, em Fortaleza. A primeira lembrança
que tenho dele é de uma véspera de natal ou outra comemoração;
minhas tias e tios todos reunidos pela manhã, antes da festa, e eu
brincando com uma bola de encher. - Nagibinho, me dê esse balão, meu
filho. Se estourar, é capaz do seu avô ter um troço com o susto –
eram os cuidados da tia Salete.
Por essa época
o vovô já era meio surdo e estava longe de onde eu brincava; até
hoje me pergunto como se daria o susto.
Uma grande
distância nos separava; mas nem por isso, ele deixou de me
influenciar enormemente. Eu observava de longe aquele velhinho de
andar arrastado, circunspeto, indiferente às superficialidades da
vida, reverencial. O modo cerimonial como se sentava à mesa na hora
do almoço, sempre depois de acender a luz da sala de jantar e antes
de bater com o garfo no prato, anunciando a refeição. A maneira
como, invariavelmente, servia-se: - Primeiro o arroz, depois o
feijão e depois o macarrão, depois, se ainda tiver, pode vir tudo
que quiser, dizia ou cantava para fazer graça.
Depois do
almoço, o pudim. E o café, cuja xicrinha levava para a varanda, onde
estirava as pernas sobre outra cadeira, depois do invariável –
Aaahhh! Tinha fama de dengoso, e de teimoso também, o meu avô. Mas
teve uma vida bem ativa. Aposentou-se só aos 70 anos de idade, na
expulsatória, como Sub-Procurador Geral de Justiça, o que não o
impediu de continuar a trabalhar até quase 80, como assessor do Des.
Ferreirinha, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Tinha
orgulho de ter, em determinado ano, lavrado mais de mil pareceres na
Procuradoria de Justiça.
Que a cerveja
era a sua bebida preferida, só soube por ouvir dizer. Não alcancei
essa época, só bebi com ele uma vez. Cismou um dia que voltaria a
beber. Abriu o portão e foi para o bar, sob os gritos de apuros da
minha avó. Trouxe ainda duas garrafas, que bebemos na varanda. Foi
só, ou desistiu da idéia ou fez aquilo de pirraça com a vovó.
Depois de
aposentado, vi-o muitas vezes no seu gabinete, datilografando em uma
remington manual. Aquela pequena sala, a qual só se podia atingir
passando pelo quarto da vovó e pelo quarto de vestir, era mágica pra
mim, tinha uma ampla janela que, nas horas viçosas da manhã,
espalhava uma luz leitosa e fresca sobre a escrivaninha negra do
vovô, repleta de pequenos cacarecos, canetas, relógios e
despertadores de todos os tipos, lanternas, canivetes e, até, uma ou
outra ferramenta. A mesa onde apoiava-se a máquina de escrever
ficava por trás do bureau e da cadeira giratória, com apoio para os
braços, de madeira de lei; mais que isso, cabia apenas a pequena
estante com poucos livros e, na parede, um pôster fotográfico, onde
eu, com apenas dois anos de idade, sorria em preto e branco.
Foi naquela
estante que encontrei, já adolescente, estudando em Fortaleza, uma
brochura entitulada O misterioso triângulo das Bermudas.
Depois do almoço, o vovô com as pernas esticadas, sentado na dita
varanda, palito no canto da boca, vendo-me folhear o livro, falou. -
Quer levar? Leve...- Acho que já perdi o livro que, naquele dia,
carreguei com rematado orgulho.
Eu morei um
tempo perto da casa dele e sempre andava por lá. De certa feita ele
me pediu para comprar o leite, deu-me o dinheiro e fui satisfeito
como o quê. Voltei com um saco de leite B; o C havia acabado. Ao
receber o pacote, não teve dúvidas. - Olhe Wanda! Esse menino é
abestado...
Cresci ouvindo
ovações ao vovô, mas era a minha avó, as minhas tias, o meu pai. Não
se deve dar muito crédito, embora não se desmereça. Quando ingressei
na Faculdade de Direito, escutei outras referências a ele. Alguns
professores o conheciam e não hesitavam em tecer-lhe comentários
elogiosos. Um dia transmiti-lhe que um professor de Direito Penal
mandara lembranças e um grande abraço. - Quem?... O
Desembargador?... Foooi?... Ehehe. - O professor era um renomado
advogado.
Às vezes via-o
tão lúcido, escrevendo alguma coisa ou fazendo versos, que me
perguntava onde estavam os livros do vovô, a sua grande biblioteca
de Direito Penal. Papai me dizia que uns haviam sido emprestados,
outros se deterioraram pelo Mondubim, no sítio onde eles moraram por
um tempo. Uma vez, num desses momentos pós almoço, não sei por que,
o vovô recitou pra mim, como que para testar sua memória, o art. 81
do Código Civil, enunciando o conceito de ato jurídico. Acabara de
ser entabulada a nossa mais profícua discussão jurídica.
Jamais o vi
lendo coisa diversa dos pocket books de faroeste, deitado de lado na
ampla cama, o abajur aceso. Tinha aos montes. Era como se sua vida
se tivesse resumido ao essencial: permanecer ao lado da Wanda,
montar a árvore, instalar os enfeites luminosos por toda a casa e
também no jardim, a cada Natal. Era altiva a maneira como, nas
sucessivas vésperas de Natal que passei na casa da vovó, ele
permanecia na sua felicidade centrada, indiferente ao fuxico, ao
ruge-ruge de gente. Os homens sentavam numa mesinha na varanda,
bebiam e conversavam e o meu avô em sua placidez distante, separado
dos assuntos mundanos.
Era
auto-suficiente. Ele se bastava. Fazia os próprios projetos e os
executava, como no dia em que resolveu dirigir seu velho Diplomata
SS, rubro-negro. Depois de tanto tempo sem guiar, simplesmente pegou
das chaves, deu a partida e a aventura acabou numa frondosa árvore
que se erguia na calçada oposta, bem em frente à garagem, com uma
lanterna quebrada.
Tive a alegria
de vê-lo e ajudá-lo a consertar seus carros. Detinha uma técnica
toda especial para fazer com que o motor funcionasse, tampando com a
mão a saída de ar do carburador. Por duas oportunidades fui com ele
até o Mondubim. Levávamos cloro para a piscina, almoçávamos, e, numa
das vezes, o vovô tirou a camisa e se pôs a concertar o motor de
puxar água, botava força, praguejava; não havia jeito, não sairíamos
dali antes que ele sentenciasse: – Ficou formidável, especial!
Depois de algum
tempo que a Trycia freqüentava a casa dos meus avós, ele nos sacudiu
a pergunta:
- Porque não
casam?
- Com que
dinheiro, vovô?
- Ehehehe... Não
precisa de dinheiro para casar... – Talvez um dia eu entenda.
O meu avô
atingiu um estágio onde os questionamentos e as preocupações cessam.
A filosofia resume-se ao ato. Bastava-lhe viver e deixar que os
outros, por queridos que fossem, também vivessem. Olhava a vida com
um distanciamento confortável, um silêncio cúmplice, uma serenidade
de quem sabe que não é preciso se justificar perante ela. Quando me
despedia dele, beijava-lhe a cabeça sempre pensando no herpes zoster
que lhe atingira a testa alguns anos antes e ele:
- Tá...
Felicidades...
Conservava-se
austero, as mãos entrelaçadas atrás da cintura e os lábios
crispados, fazendo um pequeno beiço. Altivo. Como se não fosse
preciso qualquer esforço para se alcançar o sentido da vida.
Nagibe de Melo Jorge Neto
NOTA DO EDITOR
Os Soaristas, um magote de poetas
Juarez Leitão,
poeta e parente, quando escreveu a biografia do tio, o Padre Leitão,
mencionou essa história de que os Soares gostam de fazer versos.
Soares é o nome matriz de nossa família, Independência, Ceará;
tem até um lugarejo com esse nome. Ainda menino, morando na casa do
padre Leitão, li, em letra manuscrita, uma genealogia dos Soares,
feita pelo irmão do padre, o também padre, Theófilo, a partir de
Mamanguape, PB, no século XVIII, quando aportaram em Independência,
no criatório de gado.
Juarez é neto
de Leônidas Soares Gondim que é irmão de Nazária Soares de Nazareth,
minha avô, prima legítima de seu marido, meu avô José Soares Gondim
que é irmão da bisavó de Nagibe de Melo Jorge Neto. Bom, é um
emaranhado que não tem tamanho. Padre Leitão é filho de Leônidas,
irmão de minha avô Nazária e, pelo visto, todos eles faziam versos,
menos eu que só vim fazê-los aos 50 anos.
Perante os
parentes, a poesia não me deu alegria alguma. Estão mortos o padre
Leitão, meu segundo pai; o poeta Adaucto Soares Gondim, irmão de
minha mãe, sem saberem que o filho da Anísia, eu, o Chico José, era
dado a poetar. Pior, do lado de pai, também um magote de poetas, com
destaque ao Antônio Souto Teixeira, meu primo, que nunca desconfiou
que eu viesse um dia a meter com versos. Sim, eu teria tido a maior
alegria em mostrar a eles, padre Leitão, tio Adaucto e primo Antônio
Souto qualquer dessas muitas garatujas que andei traquinando.
Pois agora o
neto do primo Nagibe, o jovem juiz federal Nagibe Neto, me diz que o
avô fazia versos. Vejam só! Eu o conheci, mas não me interessava por
poesia. Os Jorges, de Nagibe, de origem árabe, faziam um
reforço culto aos Soaristas. Paulo Petrola, poeta, também
parente, é filho de Paulo Jorge, irmão de Nagibe; e Zélia Petrola,
irmã de Paulo, e não sei quantos mais doutores, de A a Z, Petrolas e
Jorge.
O ladro brenha,
que ficou lá mesmo, nos matos, sertões de Independência, Pedra
Branca, Crateús, Novo Oriente, Arneiroz e Tauá, continua versejando,
e bem, garante Juarez. Vou insultá-lo a ver se a gente colige alguma
coisa. Sim, disto eu lembro: o tio-padre, Leitão, recitando levas e
levas de Os Lusíadas; e de Joaquim, irmão dele, engalfinhando-se com
O Firmamento, belíssimo o lume de frouxo alento no meio à
tempestade, de Soares Passos. Sem esquecer de convocar o magistrado
Nagibe a encontrar os versos do avô.
Ah!, também com
o lado pai, os Souto Teixeira, os Feitosa, meus. Vou falar com meu
Compadre-primo, Luiz Souto Teixeira, que já me disse de muitos bons
versos dessa parentada toda. E com o José Araújo Souto, prefeito de
Monsenhor Tabosa, filho de Antônio Souto Teixeira, poeta.
Em tempo:
Compadre-primo, Luiz Souto Teixeira, mandou-me um acróstico
belíssimo do avô dele, tudo parente meu, lado de pai.
Falo um pouco deles aqui:
Soares Feitosa
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