Adelaide Lessa
Psi, a
penúltima
Minha Querida Raposinha
Agora que nos conhecemos, estou rezando
para o diretor de TV e o diretor de cinema, ou de Teatro, quando
te descobrirem (se já não estão de olho
em ti), respeitem tua simplicidade, tua força moral, tua
coragem, tua inteligência, teu drama, tua pureza, teus compadres,
o de Assis, o do Ceará e o do madeiro Santo.
Entendam esses diretores de Arte que
a tua fábula ultrapassa o diálogo com o Corvo/Urubu,
agora teu amigo, a quem entregas o queijo enviado pelo Santo
franciscano; ultrapassa a fala do Urso Panda, do Mico-Leão
Dourado, das Raposas Azuis do Canadá, da Baleia, dos
pássaros em extinção; ultrapassa o teu direito à
toca bíblica a exemplo d’Ele que até hoje não
tem onde repousar a cabeça porque não está
circunscrito a nenhum limite.
Podes fugir para o sul, para o norte,
o nascente ou o poente, mas teus compadres não te querem
covarde.
Ficaste hidrófoba, sim, de
sagrada indignação, porque te roubaram o direito
de comer, beber e ter filhos, pele sedosa, uvas, maduras, a
toca limpa, decente, e o olhar erguido para as estrelas límpidas
na tua oração na noite da velhice.
Ao contrário, teu sono é
intranqüilo, vozes, distantes de teus companheiros perseguidos,
presos, brutalizados pelo Fogo; japoneses, africanos, bósnios,
judeus, nos guetos assassinos. Teu compadre Chico Pires, piedoso
já te entregou o sudário, o incenso, a mirra;
e os pobre, a compaixão.
Mas tu queres a Vida, não o
apartheid. A chuva torrencial, não o Homem das armadilhas,
raposa de dois-pés. Preferes o risco da Luta, nunca
o adormecer em poeira esplêndida. Assume a consciência
da liberdade, que o nosso Mandela te ensinou, o Cidadão.
Aprendeste muito com Jó e
Luther King. Lambeste os pés dos Migrantes de Portinari
e vieste a mim num pau-de-arara. Limpaste a minha casa. Ajudaste
a lavar e a vestir minha mãe velhinha, cega e paralítica.
Somos amigas de longa data e de antes
desta vida na terra. Raposinha querida, nordestina, cearense,
de Acaraú ou de Jericoacoara, ciosa de teu brasão
de Dignidade e Honra, somos iguais, duas irmãs, filhas
de DeusMãe.
Minha gratidão ao poeta Soares
Feitosa e à cearense Maria Adalgisa Dias.
Muito emocionada para continuar com
esta carta, grata demais.
Roma, uma história de índios
Acabo de receber Roma sobre os jovens
que incendiaram o índio pataxó, Galdino, em Brasília;
o genocídio narrado em Caldeirão, autor e livro
que eu desconhecia; e o Josino assassinado em Diadema; todos
sem Picasso, mas com Soares Feitosa, memorialista:
"Minha pobreza é tanta
que meu pintor pinta de cal,
ele nunca acredita que vá
chover,
quando respinga apaga tudo."
E minha tristeza é tanta, depois
de ler a veja desta manhã (17.08.97), pelos três
meses de seca na Amazônia, 150 km de fogo devorando a
floresta, 4.200 castanheiras queimadas numa noite. Horrendo.
Também são seres vivos. Que Deus os tenha.
Salomão
Recebi Salomão, o abraço
a dedicatória e a cópia do artigo de Wilson Martins.
Riquezas suas, riqueza minha. Riqueza do Brasil. Enviei um
livro meu ao Djalma Cavalcante, o senhor Bibliotecário de
Salomão. Ele apreciou o poema DeusMãe, sem ler o restante,
cuidando, como deve estar, da Biblioteca que lhe chega em prosa
e verso.
Salomão: comecei a leitura
pelas Notas do Autor, páginas 103 a 113, e fui transferindo
informações, comentários e acréscimos às
53 páginas dos Dez Movimentos, de modo a saborear "na
mesma mesa". Só então, li num só
fôlego. Posso estar errada em minha interpretação,
mas comecei sentindo que o Coronel é Soares Feitosa,
o branco, enquanto o Capitão Salomão simboliza a
raça negra. A princípio, Salomão é um negrinho-moleque,
afilhado do branco na religião dos padres judeus, comprado
pelo Coronel para fazer-lhe compra de escravos, só os
fortes, só as bonitas. Aos poucos, Salomão incorpora
o pedreiro que levantou a muralha entre a Cidade Baixa e Cidade
Alta, de Salvador; o Aleijadinho, escultor; o poeta Cruz e
Souza (querido!) tuberculoso como o nosso Menino Antônio
Frederico; Jesse Owens, campeão olímpico; Cassius
Clay, campeão de boxe, da mesma raça dos livres.
Começa então o
4º Movimento: Tam! "Não adejava canto macio porque
o momento não era macio." Todo o gênio de Castro Alves!
Maior só o esturro dos Céus e da Terra na 6ª
Feira Santa. "Varrei os mares, tufão!" (Ah, Soares Feitosa,
isto gravado em sua voz!) E onde foram atirados os navios negreiros?
No morro, na favela, nas palafitas, navios-barrancos, pendentes.
Sofrimentos: o massacre dos
111 do Carandiru. Um preso, de lá, pede um livro de
poesia. O menino e o abutre, ambos famintos, como o do Prozac
em vez de pão.
Então, no 7ª Movimento,
aparece Eliézer, 9 anos, podre. Fico aflita: Quem é
Eliézer, que eu não conheço? Releio, ansiosa, sofrida
todas as Notas do autor, e nada. Preciso perguntar a alguém
porque as Notas não se referem a ele, quem é
Stanislaw? Eliézer, mestre-escola, sem braços,
um mistério.
Chegam os companheiros: Francisquim,
filho do vaqueiro, morto na cidade grande; outro, Josino, morto
pelo PM Rambo em São Paulo; Antônio Rosa, mordomo,
motorista, testemunha da Cantoria pelas Santas Casas, vivo.
8º Movimento: o estudo
em dobro: médico, engenheiro, poeta, romancista, contador,
padre, músico, violeiro, etnólogo, Nobel de Paz,
Nobel de Literatura, pugilista campeão, master de informática.
E os Antônios, de ontem e de hoje. Entre eles, a Voz
de Todos, o Menino amado, Cachoeira de Paulo Afonso, o Navio,
os Escravos. Tam, tão amado.
As comemoraçõe{s-z}inhas
do sesquicentenário e as do ano 10.000. "a montanha
de livros empurra os detentos para fora das celas". Antes,
Eliézer.
Eliézer, páginas 57
e 58, Eliézer, páginas 92, 95, 96, 98 a 101, o calvário
completo. E quem o carregou nos braços, Soares Feitosa,
Tam humano, da raça dos místicos!
Profundamente comovida, curvo-me duas
vezes, ao Chico José da Raposinha e ao Ésquilo-Cantador
de Eliézer.
Em Fortaleza — or elsewhere — onde
for, seu amor e compreensão hão-de atrair os
deuses mais próximos de Deus.
PS - Como a carta anterior, sobre
a Raposinha (Psi, a Penúltima), esta sobre Salomão
foi escrita subitamente, com emoção e sinceridade;
não foi preparada para um público; só quis, ainda
que sem capricho, agradecer o presente poético que generosamente
me enviou.
De sua irmã em Antônio
Frederico; Antônio Fernando Pessoa; Antônio Rodrigues
da Silva, meu avô paterno; Antônio Rodrigues Lessa,
meu pai; Antônio Rodrigues Lessa Filho, meu irmão caçula,
portanto, em família, com você Antônio Francisco
José Soares Feitosa.
Adelaide Lessa
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