Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Zemaria Pinto


 

Exercício da crueldade


palavras são serpentes, são navalhas

são balas que explodem dentro do peito

de quem ouve e de quem fala!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

Zemaria Pinto


 

Autocripta

(dedicado à poesia encanecida
das mesas de fins de festas)



não há poeta que resista
passar
24 horas por dia
sem pensar em poesia
durante anos sem fim:
      a cabeça televisiona-se
      a barriga, outrora esguia, encerveja-se
      a poesia é apenas um retrato itabirano
pendurado na parede


e a produção? há produção! haja a promoção
do poeta comportado
gordo e bem/mal passado
que hoje depois de velho
       contempla
velhos tomos coloridos
com a mesma sem-gracice
       com que espia
lombos juvenis


ai de ti, poeta gordo
ex-poeta
poeta de porta de banco e de farmácia
       deixaste
apagar do peito o fogo
com que um demônio incendiaste
há 10 mil anos atrás


pobre de ti, poeta porco
poeta de duplicatas, impostos e carnês
- quem reconheceria nesse cabelo-escovinha
   debaixo dessa gravata
   o adolescente irado
   pregando a paz e a guerrilha?


poeta, meu poetinha de merda,
                          quebra esse espelho!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Gênese


um poema se projeta
- entre sapos, entre grilos -
recortando a madrugada:


      com o fio da navalha
      costuro as sombras do chão
      - viver é imenso


de pedras teço meu canto
recolhido, emimesmado
num redemoinho de enganos


(canto em arco arquitetado:
seta que se completa
no atingimento da meta)


onde ouvi aquelas pedras?
são monolitos de Rosa
ou sussurro minuano?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Exercício n° 5

(para o Alcides Werk)


Trago nas mãos a lâmina dos anos
que passaram por mim tragando sonhos:
sementes de um passado sem memória,
inúteis fragmentos de silêncio.


As velhas alegrias disfarçadas
tatuam sombras em meu rosto pálido.
Sorrio amargo, o limo transparente
refletido nos dentes amarelos.


Meus olhos baços já não sonham luzes
sob o cantar monótono do vento:
palavras surdas nos meus lábios cegos.


Antúrios se renovam no meu peito
e de meus braços pendem sensitivas.
Nos pés carrego o peso desses sonhos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Exercício n° 7


palavras são pedras frias à margem
da estrada que atravessa o automóvel
são peixes mortos de dominga feira
cavalos pastando plástico e aço
palavras são carcaças na corrente
lavada em mercúrio e lama são galos
sem manhã cachorros atropelados
espelhos estilhaçados disparos
dispersos cabe ao poeta cuidar
que o lixo em transubstância invente
a dura geometria do poema
e o barulho o mau cheiro a porcaria
sobrepairem no éter sublimados
em cor ritmo imagem e harmonia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

Zemaria Pinto


 

Exercício n° 13

(ALSO SPRACH ZARATHUSTRA)


Agora vou dizer-vos sobre mim,
ó multidão destino e oceano.
Estai atenta para que as palavras
fundam-se em fogo e bronze na memória.


Dos homens ocos já trilhei caminhos,
plantei sementes de noturnos sonhos,
fiz-me passagem, ponte, travessia:
hoje sou ontem e amanhã e sempre.


Fui peregrino, traduzi montanhas,
levando em mim o caos que poderia
trazer à luz a mais brilhante estrela.


Amei senão a alma transbordante
e a solidão dos poucos que souberam
viver a vida como se extinguindo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

Zemaria Pinto


 

Exercício n° 21


soneto meu, faustino de armação
tramado e arquitetado em vário

desarma-se
em vis desvios vãos
limítrofes
à tinta e ao papel


(meu      canto    fraturado
             é um crânio
             morto
oco        osso
síntese de nada
             ou
cousa alguma:
                   crianças & urubus
canteiros         de       noturnos
                girassóis)


soneto meu de têmpera diversa
forjado em noites
                       sob lamparinas
                       silvos de partidas
                       salvas perdidas


a ti revelo-te
                  tua natureza
a ti entrego-te
                  meu braço destro
                  meu sexo
                  meus olhos
                  e meus delírios

 

 

 

 

 

 

20.10.2005