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Joanyr de Oliveira


 

Brasília
 A Lúcio Costa

Amorosa e clara,
a cidade
           voa
                 com as próprias
                 asas.


Alegorias em pluma,
estátuas no rosto das águas.
Arcos, trevos, o verde.
Eixos geram esperança
na fronte do homem.
O lago ama com os braços,
abarcando o equilíbrio.


A terra afina os tímpanos
e as perfeitas retinas:
canta nas noites a fonte.
Artérias humanas e urbanas
em suas vigílias: áureas
dádivas: o branco, as superquadras.

(O pretérito nos mausoléus,
longe de nossos cânticos.)

Amorosa e clara,
a cidade
            voa
                  com as próprias
                  asas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Joanyr de Oliveira


 

As doçuras do Rio Doce


Ah, doçuras do Rio Doce...
Fez-se mausoléu a cheia.
E o soluço dos naufrágios
aprofundou-se na areia.


O argênteo salto dos peixes
abarcou-me o verde susto
originário das noites
que gotejaram do arbusto.


As jornadas das canoas
a desovar nos meus portos
conduzirão seus murmúrios
pelas artérias dos mortos.


Sob as camadas da aurora,
o pescador doura os sonhos.
Das guelras, a haurir mistérios,
saltam bramidos medonhos.


Nas doçuras do Rio Doce
a dor se converte em voz
e rasga as mãos do silêncio
que sempre habitou em nós.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

Joanyr de Oliveira


 

New York City


Os altos ponteiros da noite
apontam exaustos para o céu.
A chuva choraminga e cai
nos pés da Quinta Avenida.


Um negro talvez do Harlem,
rouca voz angelical,
oferta o reino de Deus.
Judeus de barba e casacos
em três manadas de espantos
a derramar-se na esquina.


Trinta passos saltitantes
a expor com jeito os trejeitos
contra vitrinas e nomes.
Um rio a jorrar piranhas
sobre o passeio apinhado.


A Estátua da Liberdade
matreira sorri no escuro
do topo de sua glória
e eis “The New York Times”
a pontificar soberbo
para reinos e universos.


Fumaça apunhala o ar,
conduz o peso das vidas.
Sonhos flutuam seus braços
em altas viagens brancas.
Passam passos de Al Capone,
passam dráculas.
            Passam lânguidos
sobre fantasmas de bondes.
Há mortos embriagados.
Casais de corvos de Pöe
escarnecem da Lei Seca.


***

(Minas Gerais nem suspeita
desde doido mundo esconso.
Juntinhos na madrugada,
seus profetas ressonam...)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Benjamin West, Death on a Pale Horse

 

Joanyr de Oliveira


 

A cidade em sua didática


Esta cidade, qual oleiro, fez-me.
Amoldou-me sua luz
nas engrenagens amenas
de seus ângulos.


A fluir por ásperas veredas,
por vetustos meridianos,
buscava (eu) o alvo, o oásis.
E por aqui pairavam
a promessa e a incógnita,
o ainda pensado, o prenúncio, as teorias,
os embriões da epopéia.


(O Altiplano aguardava
– indocilmente –
no vale dos milênios.)


Esta cidade, em sua didática,
em sua alta pedagogia,
colheu a utopia, os perfis, melodias.
Esta cidade sorveu viajores e,
em sua fusão de almas, em seus traços,
em verde e transparências
fez-nos.


As mãos da cidade,
destras e insones,
delinearam o vaso de barro,
em pertinácias de oleiro. Em seu mister,
em águas e brisas
consumou-nos.
Metamorfoses ditaram-lhe
cantares.


Esta cidade agora é, e celebra-se.
A simbiose nutre-me o olhar
com suas noites e pessoas.
Vaso definido, em madurez,
recebo-a em cada gesto e a cada voz,
proclamando-lhe o perfil e os ângulos
em odes e baladas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Joanyr de Oliveira


 

Os transfigurados
da Main Street



Em casulo de pedras,
na rua em Somerville, Nova Inglaterra,
o estremecer das almas
no cerne das manhãs.


Pelos sopros da nuvens,
ossos e músculos leves e translúcidos
abarcando fermatas
em harpas e sorrisos.


Canções em lábios roxos
de infames e anciãos. Os seus clamores
a voar nas alturas.
(Os corpos a dançar.)


A rútila mensagem
vulcão de ungidas lavas, levitadas,
a incandescer os sangues.
(Assim santificando-os.)


Transfigurado templo
em um negro mar de vozes, ígneas sempre,
a edificar seu Deus –
entre a pedra e o etéreo.


(Boston, 18 de agosto de 1995)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

Joanyr de Oliveira


 

Mãos contempladas


As mãos tecem o poema.
O roteiro ignoram
de sua tessitura.
As mãos sempre insones
em conchas misteriosas.


A humildade é a sua glória.
Podem os olhos rutilar
navegando no papel;
pode o sorriso vir
luminoso, à doçura
do cantante estribilho.


As mãos se limitam
ao silêncio e ao labor,
à mudez de um oficio.
Eis o seu ministério:
a penosa colheita.


As mãos transitam
entre as margens e a sede:
o papel as contempla.
Os conceitos e sonhos
seguirão os astros
e os caminhos da terra.
As mãos desconhecem
o sabor perenal
de suas muitas palavras.


(Lisboa / São Paulo, 13.7.98)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

Joanyr de Oliveira


 

As virgens

“E cinco delas eram sábias, e cinco
loucas. E as loucas, tomando suas
lâmpadas, não levaram azeite
consigo” (Mateus 25. 2,3).



Os pés sedentos de sono
no negro tempo avançaram.
Pelos sonhos sem futuro
poliam peças talvez
de inútil ourivesaria.
Ah, que loucura de moças
a queimar do escasso azeite
para esponsais de algum dia.
As línguas do candeeiro
vão-se perdendo no escuro,
o tempo se poluindo
em soturnas caminhadas.
Preparam enxoval talvez
de sedas, linhas e rendas.
Mas que loucura de moças:
o corpo jogam no leito,
erosões perfuram as almas.
O noivo com pés de pluma
não usa brado ou trombeta,
vem bem mais leve que a brisa,
em asas brancas de ave.
Debalde botões e adornos,
enlevo, riso e projeto.
Singular é o noivo e cala
sobre ano, dia e hora.
(A vigília é o passaporte.)
Quem ama persiste e espera:
a candeia e o seu azeite
olham as janelas da noite,
os olhos firmes e sábios:
mas as loucas se estenderam
(quando não tosquenejaram)
nos longos braços do sono.
Veio o noivo e se perderam
no fosso da escuridão,
veio o noivo e as condenou
com aguda ponta de um “não!”.
(Sem bodas, sem matrimônio,
morreu de todo o amanhã.)


Podem chegar os cavalos
que pisam as madrugadas;
como pássaros noturnos
podem despertar as algas
– as virgens sábias vigiam
os quadrantes e hemisférios.
Sejam chuvas, maremotos,
ciclones ou calmarias
– as virgens sábias vigiam
no dorso agudo das noites,
nas retas sendas dos dias.
Não há em seus olhos claros
peso, dor, lágrima ou tédio.
As virgens sábias vigiam
os casulos do silêncio,
camuflagens e mistérios.
O noivo é segredo de ouro
que vem sem anúncio prévio.
Vem com jazidas de encanto,
filões de afagos, ternuras
– contra o sono (fuga e túnel):
as sábias virgens vigiam.
Dormite quem louca for
e tenha amor pouco e frágil,
dormitem montes e praias,
arbustos, nuvens e mares.
Quem ama explode os relógios
e as marcas do calendário.


As virgens sábias vigiam,
importa o rosto do amado,
seu porte exato, a figura
sem dissonâncias ou mácula.
As virgens sábias vigiam
até que seu noivo aporte
das águas do firmamento,
das campinas do infinito,
em corcéis de azul e aromas,
esplendor e encantamento.
Vem maduro para as núpcias,
vem num sorriso de pérola.
As bodas, tecendo flores
sobre o chão da vida e o espaço.
As virgens sábias nem sabem
do peso que há no cansaço.
Os esponsais, luz e pétalas,
o prêmio maior da espera.


As virgens loucas secaram
no vale do Nunca-mais;
perderam mãos e retinas,
nas antípodas da paz.
As virgens sábias já sabem
que vale mais que o Universo
quem sabe ser firme e fiel.
As virgens sábias sim sabem
a vagas de leite e mel.

 

 

 

 

 

 

04.11.2005