Pero Vaz de Caminha
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Epistolografia
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Visão
do paraíso
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Topônimos
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Sinais e sua interpretação
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O rigor
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Degredados
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Duas missas
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Natureza e cultura
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Paródias de Caminha
1-Epistolografia
Da carta de Caminha, a fortuna guardou
o original. O diário de Colombo e a correspondência de Américo
Vespúcio foram retrabalhados por outras mãos. Para chegar a partes
do diário redigidas pelo próprio Colombo temos que atravessar o
resumo de Las Casas, sacerdote dedicado, que entendeu salvar assim a
memória de Colombo, esmaecida pelos feitos menores de outros
navegadores. O que se passou com a correspondência de Américo foi
mais grave. Compiladores que pensaram misturar cartas dele com
informações de outras fontes levaram a correspondência de Vespúcio
às fronteiras da ficção literária;.
O pulso de Caminha move-se com a
firmeza de quem sabe. A pena dança para a direita e para a esquerda,
traçando enigmas para os intérpretes. O tempo impregna a
escrita de
Caminha e a distancia como acontece na pintura. Os parágrafos se
dispõem emoldurados como quadros. A letra que não é facilmente
legível a outros olhos que não os do destinatário evolui ciosa de
privacidade. Os leitores que desvendam penosamente os seus mistérios
experimentam emoções de quem penetra em recintos secretos. D. Manuel
não a publica. A imprensa nascente não chega a profanar esse
documento.
Sñor (Senhor), essa é a saudação. Sem
a pompa de epítetos majestáticos, Sñor sobrevoa a carta entre
intimidade e respeito. Nas evoluções feitas pelo S, a saudação
lembra a assinatura, em que a personalidade do signatário se revela.
Sñor, na saudação de Caminha, alcança presença ideogrâmica.
Epítetos, se os há, fazem-se visuais.
O S, ao se dobrar sobre o corpo da
palavra, lembra as asas desfraldadas da gaivota, evocação dos mares
percorridos pelas naus do rei navegador. Sigamos as várias
conotações que evoca o
ideograma
. Podemos ver na linha que se dobra sobre Sñor, além de formar o til
sobre o n, velas que se dobram impelidas pelo vento? Se estamos
autorizados ainda a discernir nela a abóbada celeste, podemos
desdobrar Sñor em dois : O Senhor do céu (Jesus Cristo) e o Senhor
da terra (D. Manuel). Favorecido pelo céu, D. Manuel estende o seu
domínio sobre a terra, fazendo de Portugal o reino messiânico de seu
tempo. O absolutismo de D. Manuel não carece de mais eloqüente
representação. A linha ainda desenha a parte superior do coração,
símbolo da bondade do Senhor celeste que se derrama no mundo através
do seu representante terrestre, o monarca do messiânico reino de
Portugal. A soberania celeste se espelha na soberania terrena. A
linha lembra a cabeça coroada.
Quando no século XVIII,
romance s
epistolares disputavam a preferência do leitor, os romancistas já
tinham perdido a arrogância da visão abrangente, a petulância de um
saber que excede todos os saberes, marcas da literatura épica. A
carta fragmenta o saber. Quem escreve cartas fala do seu lugar, de
suas visões e de suas opiniões. Texto de visões abrangentes, síntese
de muitos lugares, de muitas vivências, não é carta.
Se constatamos ao final da Idade Média
a emergência do indivíduo contra a cultura anônima e coletiva, não
surpreende o recrudecimento ímpar da epistolografia, que granjeou
nome a muitos de seus cultores.
Com justiça observa Derrida que, como
há um ser-para-a morte, devemos admitir um ser para o telefone.
Antes do ser-para-o telefone, houve o ser-para-a carta.
A carta nos devolve a uma época em que
a palavra oral, desprovida de aparelhos, circulava no espaço do
contato pessoal, auxiliada pela entonação, pelo gesto, pela
expressão facial. A carta abre distância em direção ao objeto e em
direção ao outro. O epistológrafo inventa recursos que lembram a
viveza da conversa, irrecuperável pela ausência da resposta
imediata. O missivista adivinha as reações do destinatário,
sonda-lhe os sentimentos, responde a perguntas tacitamente
formuladas.
A carta de Caminha vem de um outro
mundo, de um novo mundo embebido de exotismo, esperança e sonhos. A
correspondência dos navegadores abala pretensões de saber total.
Quem atravessa o mar traz informações únicas.
De Caminha não sabemos muito. Não se
conhecem dele outros documentos com os quais a carta possa ser
comparada. Acompanhou Pedro Álvares Cabral até a Índia, onde
sucumbiu vítima da revolta contra a dominação portuguesa.
A carta dá voz às apreensões de D.
Manuel. Uma frota de treze navios é um investimento vultoso e de
alto risco. Se a fúria dos ventos destroçar a frota, planos
cuidadosamente elaborados se afundam nas ondas do mar. Donde buscar
recursos para compensar a perda? Vem a carta. As evasivas de Caminha
deixam sem apoio necessidades imediatas. As imprecisões são
suficientes para desencorajar ocupação imediata. O rei, não tendo
diante de si o informante, vê-se levado a conversar com palavras
grafadas no papel. As lacunas o querem intérprete, convidam-no a
dizer o que elas não dizem. A carta sugere lucro advindo de uma
futura exploração agrícola. Em silêncio fica a falta de interesse
imediato.
Primeiro, o oceano foi atravessado por
navios, agora, por cartas,
textos que
configuram o novo território para cartógrafos, para ficcionistas,
para pensadores, para conquistadores. Os
textos que
atravessam o oceano não são menos importantes do que navios e
mercadorias.
textos conectam, separam, alimentam pensamentos e ambições.
O texto que gera
textos nasce
na periferia e se dirige ao centro, partindo o mundo em dois. Uma
carta não se produz sem geografia. Na carta, grafia e geografia se
enredam. Da grafia, a das cartas, nasce a cartografia.
Caminha mostra, desde as primeiras
linhas, o toque de um humanista. Portugal se renova antes do retorno
de Sá de Miranda da Itália em l527, ano apontado como início do
renascimento português. Mudanças vinham se processando
gradativamente e com firmeza. Múltiplos e freqüentes eram os
contatos entre as cortes européias. O êxito que o país ibérico já
tinha alcançado na tipografia, nas ciências, nas letras, nas viagens
marítimas e nos descobrimentos, conferia aos lusitanos evidência
entre as nações desenvolvidas. Em muitas áreas Portugal se
transforma sem influência italiana. A complexidade européia não se
reduz a uma único renascimento. Há vários, disseminados no tempo e
no espaço.
Já a modéstia inicial que leva Caminha
a declarar que os capitães incumbidos de mandar notícias ao rei o
superam em "bem contar e falar" denuncia formação retórica, não
interrompida ao longo da Idade Média. Na alegação do não-saber
sentimos leve ironia socrática, que ganha na renascença novo alento
com o respeito devotado a Sócrates. A ironia filtra certo ceticismo
que mina a seriedade de episódios imponentes. O ironista se esconde
atrás de máscaras. Máscaras são as palavras, o mundo exótico visto e
oferecido. O narrado não vale só pelo peso referencial, vale também
pela força da contestação. A ironia transforma objetividades em
instrumento retórico. A metáfora toma o lugar da fidelidade do
espelho. Caminha elabora uma carta inteligente, alegre, contidamente
cômica, marcas renascentistas. Unindo relatar e falar, escreve sem
perder o sabor da linguagem coloquial. Estranha a jovialidade no
povo que domina o próspero comércio com as Índias, que avança em
prestígio na comunidade européia, que floresce nas ciências e nas
artes? Comparando a carta de Caminha com as cartas deixadas por
Colombo, notamos a diferença. Colombo é dramático, informativo,
canhestramente repetitivo quando lhe interessa convencer rei e
rainha das riquezas fabulosas nos territórios descobertos. Caminha
sabe construir períodos, introduz com elegância gracejos picantes,
arma cenas de plasticidade pictórica. O idioma português lhe dá
recursos que o latim da época, por ser língua erudita, não tem. A
intimidade entre Caminha e D. Manuel, o rei, alicerçada em serviços
e favores que unem a família de Pero Vaz à casa real desde os tempos
de seu avô, contribuem para excluir da carta a frieza de documentos
oficiais.
Ao fazer diferença entre embelezar ("afremosentar"),
ver ("vy") e parecer ("me pareceo"), Caminha discute a retórica
medieval, que dispensava a investigação na busca da verdade. Guiado
pela observação, o missivista já se acautela de chamar asiática a
gente da nova terra, ilusão que ainda inflamava os sonhos de
Colombo. Além de informações nada convincentes adquiridas de fontes
espanholas desde l492, ano do descobrimento das primeiras ilhas do
Caribe, os portugueses se beneficiaram dos conhecimentos adquiridos
através de Vasco da Gama, que em l498 coroara o denodado esforço
português de alcançar a Índia por mares do Ocidente. Em oposição aos
falsos índios do Genovês, os lusitanos tiveram o privilégio de
divulgar na Europa conhecimentos sobre os verdadeiros habitantes da
Índia. Prudentemente Caminha elege nomes abrangentes ("homens",
"gente") para designar os exóticos habitantes das descobertas
ocidentais. Atento a fatos e informantes, cumpre-nos reconhecer-lhe
o mérito de manter separadas observação cuidadosa ("vi"), informação
incerta ("me pareceu") e elaboração literária ("embelezar").
Anotações atribuídas ao parecer
pontilham a carta. Parece que os nativos não reconhecem a ninguém
por Senhor. Caminha presume que não têm casas, acredita que sejam
atraídos mais pelo ferro das ferramentas do que pela cruz que está
sendo confeccionada, tem a impressão de que há muito mais aves do
que as que teve oportunidade de ver... As notas, abundantes,
atribuídas ao parecer , salientam a perspectiva do missivista,
sempre favorável à empresa. A rigorosa distribuição das observações
em dias impede que a subjetividade prejudique a credibilidade do
relato. Caminha dispõem-se ao observado sem omitir impressões,
caracterizando-as como tais. Sai e não sai de si. Desenvolve uma
carta que é também revelação a si.
Informações colhidas pelo olhos se
fazem escrita
. A distância, suposta, sonhada, é iluminada por um eu, uma
testemunha. Nas palavras da testemunha, o sonhado ganha proporções
de coisa vista. Caminha descreve cautelosamente. O ver confere
autenticidade ao parecer e ao embelezar. O visto não se rende de
todo ao olhar de quem passa. O parecer solicita atenção de outros
observadores.
Ao passar do observador ao receptor, a
carta se aproxima e se afasta do objeto. Tanto quanto o objeto, ou
até mais, valem as relações pessoais. O eu da testemunha toca o ele
(eles) do objeto, o nós (outras testemunhas), o destinatário e se
distancia. Sñor é pessoa e lugar, lugar aberto a outros lugares, os
membros da corte, Portugal, Espanha, a Europa.
A relação pessoal culmina no pedido de
perdão a um genro preso. Caminha se põe no lugar dos arautos,
recompensados quando portadores de notícias favoráveis.
Carta não é crônica. A crônica,
ignorando o narrador, chama atenção para o narrado. O receptor, não
incorporado na elaboração do texto, dilui-se no geral, sem idade,
sem classe social precisas, fora de tempo e de espaço localizados.
Na carta a relação emissor-receptor ocupa o primeiro plano. O rei
tem em mãos um documento escrito por uma testemunha. Testemunha o
cronista não precisa ser. A carta, vinda do próprio teatro dos
acontecimentos, sublinha o espaço, a distância. Trazida das regiões
de além do oceano, a carta define o outro mundo que, tocado pelos
descobridores, se define como periferia. O espaço distingue esta
carta dos documentos produzidos no continente europeu. Do sonhado
passa-se ao visto. A visão toma o lugar da imaginação.
Percebem-se ao menos duas redações na
carta enviada por Caminha ao rei. Na primeira versão, o
epistológrafo anota minuciosamente o que ocorre desde a chegada,
terça-feira, dia 21 de abril de 1500 até a véspera da partida,
sexta-feira, 1o. de maio. A frota seguiu rumo à Índia no dia 2 de
maio, antes de se completarem duas semanas de permanência na nova
terra. Cabral continuou a viagem com onze navios. Dos treze saídos
de Belém, um naufragou já no início da viagem e outro retornou com a
notícia da descoberta. No dia 1o. de maio, Caminha, a partir das
notas, redige a carta e a assina. A redação final, em que resume o
sucedido entre a partida de Belém, segunda-feira, dia 9 de março,
conta ainda com a conclusão em que se registram as recomendações ao
rei.
A redação final não altera os dados
dia por dia anotados. Se no primeiro contato com os portugueses os
índios rejeitaram os manjares que lhes foram oferecidos, provavam,
depois, tudo o que os forasteiros lhes ofereciam. Percebendo a
índole pacífica dos índios, os portugueses abandonaram a cautela
inicial que os levava a ordenar deposição de armas. A confiança
crescente dispensa cautelas. Caminha deixa intata a anotação feita
no domingo de que os aborígenes não constroem casas, mesmo que anote
no dia seguinte, melhor informado, a existência de uma aldeia com
dezenas de habitações, longas como a nau capitânia, suficientemente
amplas para abrigar muitos, providas de fogo e de redes para o
repouso.
Na elaboração final, crônica e carta
se misturam para acolher várias opiniões do informante. Caminha
salienta a facilidade do processo civilizador. Ao que tudo indica os
nativos não ofereceriam resistência aos costumes europeus. O
epistológrafo acredita que dois degredados bastam para civilizar em
pouco tempo centenas de indígenas. Os portugueses encontrariam numa
segunda visita condições bem mais favoráveis que as presentes. As
considerações finais, subordinadas ao parecer, coroam as anotações
dia a dia feitas.
O parecer, ao se isolar do ver,
destaca a carta de Caminha tanto de narrativas fantasiosas,
correntes na Idade Média, alheias ao cuidado de fidelidade
referencial como da literatura bucólica, eivada de estereótipos
literários. Pelas suas caraterísticas, a carta conquista um espaço
próprio na âmbito da produção literária.
2 - Visão do paraíso
Caminha elege o mais difícil, a
descrição dos homens, da flora, da fauna, da geografia. Não faltavam
conhecimentos aos navegadores para, com o uso de aparelhos e a
leitura dos céus, traçar caminhos no mar ignoto; dar informações
corretas sobre a terra descoberta requeria outras qualidades. Como
falar de plantas e de animais exóticos na falta de sistemas de
classificação? Como entender homens que não se vestem, não vivem em
cidades e emitem sons estranhos? Para não lhes fazer injustiça,
melhor seria situá-los no dealbar da humanidade, longe das
complexidades dos países cultos. Excluindo-os da história, ninguém
estranharia que aparecessem sem religião, sem governo, sem guerra,
inocentes, obedientes e bons como as crianças. Nessas
circunstâncias, acolhê-los como protegidos sem os consultar era até
um ato humanitário.
O epistológrafo recorre ao código
com/sem para classificar a humanidade. Aos homens sem governo, sem
guerra, sem vestes, sem religião, sem maldade, Caminha opõe os
europeus com os atributos negados aos índios. Convívio maior dos
europeus com os povos achados nas novas terras e outros interesses
deverão reconceituar essa polaridade.
Na Europa, os homens refletiam sobre
si mesmos, orientados pela tópica de antigos e modernos. Excluídos
estavam os árabes e a Idade Média, culturas rejeitadas. Antigo era o
mundo recuperado, o mundo dos modelos tidos como eternos, o mundo
greco-romano. Outra é a norma de europeus que saem do seu continente
e se defrontam com novas culturas. Caminha não elaborou o elenco das
negações firmado só na observação; norteava-se também pelo esquema
mítico das Metamorfoses de Ovídio.
Se o homem primitivo vivia próximo da
perfeição sonhada, o europeu moderno só podia considerar decadentes
os seus próprios costumes. Os descobridores se emaranham em
dificuldades classificatórias de que não conseguem sair.
Confrontados com a simplicidade de homens da idade do ouro, são
decadentes, mas olhando para o desenvolvimento da ciência e das
artes, nenhuma cultura presente ou passada excede o florescimento
europeu dos últimos tempos. A beleza inocente das mulheres , que não
está relacionada com o desenvolvimento científico, deixaria as
européias envergonhadas:
E uma daquelas moças era toda
tingida, de baixo a
cima, daquela tintura; e certamente
era tão bem
feita e tão redonda, e sua vergonha
- que ela não
tinha! - tão graciosa, que a muitas
mulheres de
nossa terra, vendo-lhes tais
feições, provocaria
vergonha, por não terem as suas
como a dela.
Esboça-se aqui a tópica das utopias.
Ao idealizarem estranhas civilizações, os autores de fantasias
utópicas condenam, por comparação, o que lhes parece reprovável nos
costumes europeus. O universo da cultura européia se desestabiliza.
Outra cultura julga a própria. Os europeus, quando retornavam aos
seus países de origem, enxergavam com outros olhos. Certezas
seculares vacilam sob a severidade desse olhar.
E o sentimento das européias? Dele não
fala Caminha. Mas dele falam as cantigas d’amigo portuguesas.
Torturadas pela ausência, as mulheres abandonadas sonham com o
retorno do amigo seduzido por exóticas belezas. As cantigas, ainda
que redigidas por homens, recolhem o calor de lágrimas que caem
amargas nas amargas ondas do mar. É a maneira feminina de evocar o
paraíso, simbolizado pelo lar e o companheiro, levado para longe
pelas naus que se perderam no horizonte. Para sempre? Como recuperar
a doçura de olhos seduzidos por belezas distantes?
O olhar europeu faz dos nativos homens
que ainda não acordaram e que por isso são felizes. Por estarem
adormecidos, o olhar não responde ao olhar. A solicitação, não sendo
sentida, não é respondida por oferta ou fuga. Os índios, se fogem, é
do estranho, mas não do olhar dominador. Que se ocultassem desejos e
crimes no olhar estranho, isso os índios não sabiam.
Duas imagens de mulher se estampam na
arte religiosa do renascimento, a da mãe com o menino (Rafael) e a
da mãe com o filho morto nos braços (Miguel Ângelo). Acrescente-se a
essas a mulher desnuda da arte profana (Cranach). Mas dessa os
europeus não tinham experiência pública além do corpo exposto em
estátuas e pinturas. Eis a razão do olhar insistente pousado no
corpo das índias que se movem inocentemente na praia. A carta não é
o lugar para Caminha se demorar na licença dos descobridores, mas a
indiferença infantil registrada nesses primeiros contatos é pouco
convincente, considerando-se a licenciosidade costumeira. Camões
oferece outra imagem dos navegadores, cansados de longas semanas de
labuta no mar. Os folguedos narrados na ilha dos amores em Os
Lusíadas parecem corresponder melhor aos fatos do que os castos
olhares na carta. A arte sabe ser mais verdadeira, por vezes, do que
o registro documental. De qualquer modo, as nativas de Cabral foram
vistas como nunca o tinham sido antes. Caíram sob um olhar que
objetualiza a contemplada.
Embora observador arguto, Caminha não
se desembaraça de informações hauridas em fontes
escrita s.
Observação e texto consagrado se opõem como outros pólos de
conflito. O homem da renascença ora registra o que vê com os olhos,
ora preserva o que lê em livros sem critério que torne menos
problemática a hesitação.
Tomemos três formas de existir: ser,
estar e ponderar. Entenda-se como ser o projeto ocidental de
explorar o invisível atrás do visível, o comum no particular, rumo
ao fundamento de todas as coisas, estável, fecundo, eterno. Seja
estar tanto a imersão no circundante praticada por homens que não
primam pela exercício da reflexão como o viver das sociedades que
Lévi-Strauss considera congeladas, para as quais, acomodadas no
aparente, o ser não faz apelos. Entendamos como ponderar o reexame
radical de quaisquer pressupostos. O confronto de europeus e índios
provoca em ambos a passagem do ser e do estar ao ponderar. Os
portugueses que retornam, depois do que viram no mar e além do mar,
não são os mesmos. O ponderar os leva a novas representações de si
mesmos e do mundo. A transformação dos índios é mais lenta. Muitos
morrem antes de compreender o que ocorreu. Esta primeira visita de
barcos e homens estranhos, seguida por lona ausência, deve ter
entrado no rol do fabulário fantástico. Marcada estava, entretanto,
também para eles, o fim da era do estar no mundo e o início da
sofrida era das ponderações. O viajar de uns envolve todos no viajar
sem fim.
Longe dos territórios civilizados, a
tradição tornara plausível a existência de aparições monstruosas. A
essa falácia não escapam os relatos de Colombo, que confirma a
existência de sereias. Caminha é mais sensato. Prefere seduzir com
as qualidades do texto a despertar interesse com informações que
excedem a observação. Garcia Marques declara o Diário de Colombo a
primeira página de realismo maravilhoso. Mais despertos do que os
espanhóis, os portugueses resguardaram o Brasil desde o princípio da
sedução do fantástico.
O que viu Caminha? Viu o que quis ver.
Viu sonhos. Vindos donde? De esperanças antigas, tão antigas como as
de Hesíodo. Premido pelas agruras de seu tempo, Hesíodo vê uma terra
de paz além das ondas bravias do Oceano. É um sonho em busca de
concretização, suprido de pomos de ouro. O que não está em nenhum
lugar, concretizou-se em algum lugar, o lugar do desejo. Visto que o
lugar dos sonhos não se oferecia na árdua labuta de todos os dias,
os gregos o imaginaram longe, além do Oceano e o designaram de
Hespéridas, Ilhas dos Felizes. A realidade lhes era tão áspera que a
rota à região bem-aventurada só poderia ser aberta por homens
excepcionais, heróis da estatura de Perseu, que encontrou no caminho
monstros como Medusa com poderes de transformar em pedra o corpo que
caísse debaixo de seu olhar. Além do triunfador sobre a Górgona dos
cabelos de serpente, ganharam renome Ulisses e Hércules na luta
contra adversidades superiores em muito a recursos normais. Não se
podem destruir hidras de sete cabeças, não se podem vencer águas em
que rochas moventes espatifam navios, sem esclarecida razão, sem o
amparo dos deuses. A cada vitória, os heróis ampliavam o espaço da
civilização e as Ilhas dos Felizes recuavam, tangidas pela
conquista, para além da linha sedutora em que se afunda a face
inflamada do sol.
Entre os povos cristianizados, o sonho
de uma terra sem dor emaranhou-se com a esperança de achar o
paraíso, primeira morada do primeiro casal humano. Corria a lenda do
monge irlandês São Brandão, que teria levado sete anos para chegar
ao paraíso terrestre, depois de vencer perigos fabulosos. A Viagem
de ultramar de John Mandeville, misturando ficção e fatos, conduzia
ao sonhado destino. Sem derivar para o sobrenatural, o Livro das
Maravilhas de Marco Polo seduzia com um Oriente de riquezas
prodigiosas. Percorria a Europa já há três séculos a lenda do
decantado Preste João, soberano admirável, monarca nas Índias,
agraciadas com um dos rios do paraíso terrestre, rei cristão
riquíssimo, desejoso, segundo uma carta apócrifa endereçada ao rei
bizantino, de unir-se às cruzadas ocidentais para libertar os
lugares santos da lei maometana.
Animados pela ciência e pela fé,
navegadores se fizeram ao mar alto. A tipografia, invenção recente,
misturava na mesa dos estudiosos tratados científicos, relatos
imaginosos e livros devocionais. A carta de Cristóvão Colombo aos
reis católicos, ao detalhar as descobertas da terceira viagem
(l498-1500), é eloqüente. Ares amenos, nativos inocentemente
despidos e pacíficos, vegetação abundante, metais preciosos,
eram-lhe indícios inequívocos da proximidade do Éden bíblico. Tanto
o anseio de um acesso fácil às soberbas riquezas do Oriente como o
empenho de vencer as agruras da vida lançaram os aventureiros ao
mar. Anos de contato com as recém-descobertas terras da América
Central não foram suficientes para extinguir a ilusão em Colombo de
que o paraíso terrestre estava escondido em algum território banhado
de águas mornas. O almirante andava tão convencido de que as naus o
tinham levado às portas do paraíso que chegou a imaginar a terra em
forma de pêra, escondendo no topo a região encantada. Não é
diferente a informação sobre o paraíso terrestre registrada na
Bíblia medieval portuguesa em fins do século XIV:
Este paraiso fez Deus eno Ouriente, e
hé hu~u logar
mui deleitoso, e hé mui alongado
(afastado) per mar, e
per terra,e mui apartado da morada dos
hom~ees, e hé
tam alto, que chega ataa a redondeza
da lu~a em tal
guisa, que as auguas do deluvio nom
chegaram a ele.
(Capítulo X)
Levado pelo sonho, Cabral permitiu que
a frota sob seu comando se afastasse da costa africana. Os
conhecimentos náuticos avolumados ao longo do século XV eram
suficientes para orientar os navegadores com segurança nos salgados
caminhos do mar. O sonho, mais atrativo que a ciência, mais forte
que o sopro do vento, não deteve as velas alinhadas na rota do sol.
Não sonhava apenas Cabral, sonhava também o rei que o nomeara
capitão, sonhavam os portugueses, povo messiânico incumbido de levar
para terras estranhas a cruz de Cristo. A força unida de muitos
sonhadores empurrou a frota de Cabral mar adentro contra a propalada
alegação de que rumava só com fins comerciais para a Índia pela via
divulgada. A aproximação da carta de Caminha aos documentos de
Colombo fortalecem essa suposição. As semelhanças não são apenas
devidas à natureza do objeto mas também ao espaço cultural de que
ambos partiram. Ambos declaram inocentes e pacíficos os nativos,
ambos exaltam a qualidade do clima e a fecundidade do solo, ambos
mencionam ouro, embora o território brasileiro retivesse por mais de
um século os tesouros em serranias inexploradas.
O sonho contou com o apoio do sucesso
das navegações de Espanha. Desde a notícia do achado de 1492,
transmitido por acidente aos portugueses em primeira mão, o trono de
Lisboa se empenhou em empurrar para oeste a linha que deveria
definir territórios portugueses e espanhóis. Se Portugal adiou a
travessia do Atlântico, foi porque a rota costeando a África,
satisfatoriamente compensadora, prometia lucros ainda maiores se
atingisse a Índia. Os resultados da façanha de Vasco da Gama
mostraram que o projeto português estava correto. As empresas
marítimas de longo curso em fins do século XV, que só traziam
despesas a Castela, beneficiaram acima das expectativas os cofres
reais de Portugal.
Os descobridores do Novo Mundo vivem
na confluência de duas idades: a antiga e a moderna. Os
conhecimentos náuticos, os estaleiros e o domínio dos mares os
colocam na alvorada dos tempos modernos; os sonhos desenham o
crepúsculo dos tempos que se apagam. Os períodos não se sucedem com
a nitidez que lhes imprime Foucault. Há confluências, há retenções,
há antecipações. Águas de muitas fontes se derramam no mesmo mar.
Sonhos antigos como o das Espéridas, ampliados e modificados,
convivem com o avanço científico e técnico. As contradições que
marcam os atos dos navegadores exprimem o conflito.
Ainda que levado a atravessar os mares
com o sonho do paraíso terrestre, Cabral se detém ao encontrá-lo. A
reflexão modera o sonho. Cedesse ao sonho, teria que depor sua
condição de civilizado para se tornar silvícola com os silvícolas.
Essa hipótese não lhe ocorre em momento algum. Convictamente
português e europeu, o descobridor sabe que o paraíso, mesmo que
exista, não foi feito para ele. Repete assim o comportamento dos
primeiros navegadores ocidentais. Ulisses, mítico explorador do
Mediterrâneo, resiste à sedução do paraíso, embora a imortalidade
seja o prêmio nas envolventes palavras de Calipso. O rei de Ítaca
prefere ao prazer sem fim a luta, o sofrimento, a história. Desde os
primeiros contatos, percebe-se a convivência impossível do paraíso e
do conquistador. Não se toca no paraíso. Como alterar o que já é
perfeito? Os planos de cultivar a terra, de converter os índios e de
submetê-los ao trabalho não considera a bem-aventurança estática em
que o habitante da nova terra adormeceu. As providências
recomendadas ao rei desencadeiam o movimento, provocando a passagem
da pré-história à história. O paraíso pertence a outro tempo. Ainda
que a aparição utópica incrimine costumes europeus, não se pensa em
reconduzir a agitação portuguesa ao imobilismo dessa utopia. Perdido
como a infância, o paraíso terrestre poderá sobreviver como saudosa
lembrança. A idéia de que sociedades periféricas pertencem a uma
idade separada é acolhida até por antropólogos. Lévi Bruhl distingue
ainda no princípio deste século mentalidade pré-lógica e idade
lógica. Lévi-Stauss se embrenhou na floresta brasileira em meados
deste século, encontrando situações semelhantes as de Caminha:
nativos que viam homens brancos pela primeira vez. Como se vê, a
visão de Caminha, avançando para além de Rousseau, vem até nossos
dias. Derrida indigita com justiça as fantasias do antropólogo.
O não-lugar arma-se em crítica ao
lugar habitado pelos europeus já na correspondência de Caminha e
Américo Vespúcio. Em ambos, a ausência de governo contrasta a
centralização do poder; a ausência de religião, a disciplina
eclesiástica; a ausência de pudor, o cuidado com que se esconde o
corpo; a amizade, a competição desenfreada. Mesmo na correspondência
de Américo, as semelhanças devem-se não só ao visto mas também a
quem viu. Comum é o desejo de reformar a Europa, comum é código que
orienta quem escreve.
Dos três, Colombo, Vespúcio e Caminha,
Colombo é o que mostra maior apego ao passado: crê fervorosamente no
paraíso terrestre e imagina pisar terras governadas pelo Grande Cã.
Na correspondência de Caminha e Vespúcio não se alude ao sonhado
imperador e abranda-se o fervor da visão do paraíso. A vigilância
crítica é nesses dois bem mais acentuada. Não é sem motivo que
Thomas Morus eleja como fonte da Utopia um navegador português,
Rafael Hitloteu, pretenso auxiliar de Américo Vespúcio. Vespúcio
Aproxima-se de Caminha ao alegar que em duas de suas expedições
esteve a serviço de D. Manuel, o mesmo que organizou a frota de
Cabral. Na carta, Vespúcio descreve a terra visitada por Caminha.
Morus muda a fisionomia dos canibais
denegridos pela literatura jesuítica, visto que em meio a
instituições reprováveis têm "leis capazes de esclarecer e regenerar
as cidades, nações e reinos da velha Europa". Através de Rafael,
Morus contesta as guerras de conquista, a intolerância religiosa, a
pena de morte, a nobreza ociosa, o desemprego, a injusta
distribuição das terras, lucros excessivos, o luxo, o sistema
educacional, a concentração das riquezas, a desproporção entre o
crime e a sentença, trabalho penoso e escravo, governo despótico.
Montaigne obtém informações do mesmo
território freqüentado por Caminha através da França Antártica de
Vilegagnon. Como Caminha, Montaigne valoriza o ver contra o parecer.
Encanta-o a sociedade que subsiste com poucos artifícios numa região
sem comércio, sem literatura, sem matemáticas. Os canibais de
Montaigne vivem ociosos e passam o dia a dançar. Sacerdotes não lhes
determinam o comportamento. A moral resume-se à valentia e ao afeto.
Não conhecendo guerras de conquista, vivem fraternalmente. Quanto ao
canibalismo, sentencia: é mais bárbaro comer um homem vivo do que
devorá-lo depois de morto.
A crítica renovadora floresce no
espaço que se abre entre o centro e a periferia, entre o lugar e o
não-lugar.
3 - Topônimos
O missivista desloca-se em poucas
linhas sobre a longa travessia do Oceano e se detém com saborosos
detalhes nos rápidos contatos com os nativos. Não há motivo para
narrar peripécias da viagem. Caminha sublinha o triunfo. Mais lhe
importa contemplar o paraíso achado do que demorar-se em
dificuldades de chegar. Os interesses econômicos da descoberta
insinuam-se bem dosados na caraterização do pitoresco.
Três propósitos assinalam os
navegadores ibéricos: a busca do paraíso terrestre, a implantação da
cruz de Cristo e a posse. Cabral, ao primeiro contato com a nova
terra, dá nomes cristãos e portugueses aos acidentes geográficos,
não indagando sobre designações nativas de eventuais senhores das
terras. O ato requer atenção a dois processos sintáticos: a parataxe
(coordenação) e a hipotaxe (subordinação). O termo "hipotaxe", sem
uso gramatical na antigüidade, vem das áreas administrativa e
militar e se deriva do verbo hypotasso, que significa submeter, pôr
sob a proteção de, alinhar atrás de. De origem militar é também o
substantivo parataxe. Parataxis significa organizar as linhas de
combate uma ao lado da outra. O que hoje chamamos de coordenação ou
parataxe, Aristóteles designava de lexis eiromene (linguagem falada)
e o que classificamos como subordinação ou hipotaxe foi por ele
apontado como lexis katestramene (linguagem subordinada ou
construída em períodos). O filósofo, no livro terceiro da Retórica,
(Ret. 1409a) desenvolve, em poucas linhas prenhes de sugestões, os
dois processos. Aristóteles prefere a subordinação porque o período
conduzido por ela chega a um fim; os limites são claros. A
coordenação, própria da linguagem falada, perdendo-se no ilimitado,
não apresenta princípio ou fim definidos, não sendo, por isso,
adequada ao pensamento rigoroso.
A nomeação indica a posse. As regiões
nomeadas entram na esfera da língua portuguesa, da cultura européia,
do império marítimo em formação. Sem ouvir nativos, os portugueses
chamaram Pascoal o monte desenhado na linha do horizonte e Vera Cruz
a terra que se erguia do mar. Terra e monte foram eleitos para
monumentos da morte e da ressurreição de Cristo, festejadas à época
do descobrimento. Os nomes atraíam os indígenas para novo tempo e
novo espaço, mesmo antes de terem sido vistos. A nomeação é
agressão. Agressão suave, mas agressão, cuidadosamente conduzida até
o triunfo da língua portuguesa sobre falares autóctones em meados do
século XVIII. Enquanto o dominador impunha a língua portuguesa em
documentos oficiais, as línguas nativas retrocediam aos ambientes
familiares onde pereciam com os mais velhos. A estada de Cabral no
Brasil por alguns dias contrasta com a exploração demorada que
reteve Colombo nas ilhas do Caribe. Mas quanto à nomeação a atitude
é a mesma. Falta tempo a Cabral e a sua equipe para aprenderem
topônimos indígenas. No entanto, mesmo que seus ouvidos se tivessem
acostumado aos sons exóticos, a troca de nomes seria fatal. A
retórica dos descobridores hostiliza o barbarismo, ainda que o
substituto castiço prejudique a inteligibilidade. Não se conhece a
reação dos indígenas ante as vozes que ouviam pela primeira vez.
Certo é que não adivinhavam que os estranhos os privavam da
liberdade, e lhes assinavam a pena de morte. A negação das culturas
periféricas não trazia escrúpulos ao europeu renascentista. Tão
certo de sua grandeza estava, tão seguro dos favores divinos que
esmagava ostensivamente o que se opunha ao seu domínio.
O ritual da troca de nomes não opera
sempre a renovação da existência, nem satisfaz sem reservas as
exigências da poeticidade. Inaugura aqui nova idade sem anunciar
univocamente florescimento, vida - marcas da poiesis. O nomear,
recurso do poiein, denuncia, por vezes, estratégias da destruição.
Retenha-se a duplicidade do nomear para não incorrer em
comprometedora simplificação. Os nomes de Cabral e de seu idioma
serão ressemantizados. A língua dos conquistadores reclamará
naturalização. Os falantes da nova terra sentirão familiar a língua
adotada a ponto de se moverem nela como sua. Isso acontecerá,
entretanto, em outro tempo e outras circunstâncias. Estamos no
início do estágio em que a presença de homens vindos do mar
empobrece, humilha e escraviza populações livres. O novo visto e
antevisto pelo conquistador veste a máscara do obscurantismo, da
tirania, do aniquilamento na ótica do conquistado. O Brasil é desde
o primeiro momento país do futuro.
4 - Sinais e sua interpretação
A frota portuguesa avizinha-se das
terras descobertas com o vigor da retórica subordinativa. Mares,
territórios e homens apenas tocados, apenas vistos, são intimados a
reconhecer a hegemonia portuguesa. A frota comandada por Cabral, que
partiu de Portugal com treze navios, era a mais bem equipada, a mais
imponente na história das navegações modernas. Manuel I quis
confirmar com ela o seu domínio sobre os mares. Coordenação
praticava-se entre estados independentes na Europa. Viagens pelo
continente europeu, cada vez mais freqüentes, ampliavam o campo da
visão, toleravam a presença de iguais. As forças que no pensamento e
na arte romperiam, em breve, a unidade européia já se armavam.
Quando estes mesmos europeus atravessavam os mares, não cessavam os
atos tendentes a submeter o desconhecido aos padrões da civilizada
Europa. O tratado de Tordesilhas e tratados subseqüentes impunham
limites europeus aos territórios que se dispunham parataticamente
antes da visita das naus ibéricas. Já na confecção de mapas, os
primitivos habitantes da América eram arrastados da oralidade sem
limites para as circunscrições da
escrita .
Aprenderam na perda da liberdade, no sofrimento, o rigor da sintaxe
subordinativa, petrificada em monumento na arquitetura barroca.
Subordinante é a atitude do
capitão-mor da esquadra portuguesa no primeiro contato com os
nativos. Chega às raias do grotesco vê-lo assentado num trono , bem
vestido, com uma medalha de ouro ao pescoço, rodeado de seus
dignitários em plano inferior, para receber homens nus. Caminha,
acentuando a ostentação teatral, reflexo do faustoso exibicionismo
das cortes européias, flagra a personalidade do almirante, membro de
uma das mais poderosas famílias da época, casado que estava com D.
Isabel de Castro, neta de reis. A oposição requinte/barbárie marcará
a implantação da cultura portuguesa em território americano. Cabral
não conseguiu impressionar, entretanto, os silvícolas como
pretendia. Entraram no barco sem as esperadas mesuras da requintada
sociedade européia. Não só a linguagem dos sons, também a dos gestos
obedece a códigos. A cena arquitetada por Cabral materializava um
código que aos índios não dizia nada. Gritante é o choque de
culturas quando um índio, tomando nas mãos a insígnia de ouro que
ornava o peito do descobridor, aponta para a terra, repetindo o
gesto ao notar um castiçal de prata. A hilariante resposta nativa à
dominadora atitude de Cabral incendeia a cobiça européia. Para os
portugueses, aqueles gestos diziam que na terra havia ouro e prata.
Não podiam equivocar-se? Visto que os curiosos visitantes viviam
ainda na idade da pedra, não classificavam os metais em outra
categoria, e aquela medalha entrava no rol das superfícies polidas
que sabiam produzir. Caminha é bastante arguto na denúncia do
equívoco: "Isto tomavamonos asy polo desejarmos." Colombo não chegou
a imaginar que significados atribuídos a sinais pudessem ser produto
do desejo. Menos precavido, tomava por verdadeiros os indícios de
riqueza. E é de se compreender. Do valor da descoberta dependiam os
recursos para novas expedições. Cabral, ao contrário, não exigia do
"achamento" lucro imediato. O caminho às Índias estava aberto pelo
sul da África e por ele fluíam riquezas. Caminha exalta o clima, o
solo, águas abundantes e o tronco robusto dos nativos, condições
favoráveis à exploração agrícola, reservada para ocasião propícia.
Com a paciência da gente de Cabral contrasta a enfática urgência de
Colombo, que chega a justificar a escravização de povos que o
acolheram amistosamente para compensar as remessas insuficientes de
metais preciosos. Espanhóis e portugueses divergem na expectativa,
mas quanto ao desejo de domínio são iguais. Não é com interesse
estético que o escrivão de Cabral exalta o corpo dos nativos nem é
por simpatia que sublinha a presteza deles em supri-los de água.
Robustez e docilidade são virtudes que recomendam povos destinados
ao trabalho servil.
Não nos apressemos em denunciar a sede
de ouro, condenada com vigor pela ética medieval. O início do século
XVI já apresenta uma evoluída economia de mercado. Longe vai a época
das trocas diretas. A moeda intermedeia as transações. Capitalistas
financiam expedições militares, investigação científica, construção
naval, viagens comerciais e exploratórias. Avalie-se o custo de uma
frota como a de Cabral com treze navios, mil e quinhentos homens,
entre os quais figuravam muitos profissionais contratados para
serviços especializados. Sem um cuidadoso cálculo de receita e
despesa, os prejuízos poderiam causar muitos danos. O custo elevado
das viagens marítimas levou Portugal a sérias dificuldades
econômicas antes de se despedir o rendoso século XVI. O interesse
por ouro num período altamente competitivo como aquele em que reis
deviam fortunas aos bancos está mais do que justificado. O desejo de
ouro como meio de construir vida fácil contaminava, como sempre,
interesses privados.
Desacertos como o fortalecimento da
Inquisição negaram aos portugueses a organização de sistema bancário
próprio. As riquezas geradas pelas navegações abarrotaram os cofres
de redes estrangeiras. Portugal modernizou-se na aquisição, na
ostentação e no gasto, mantendo-se medieval na falta de instituições
que recebessem aplicações e multiplicassem o capital. Modernizado
pela metade, o pioneiro das grandes navegações sofria a ameaça da
ruína já na fase do seu maior desenvolvimento.
Cortês, o conquistador do México,
lembra Pedro Álvares na inclinação teatral. Aceita dos nativos o
papel de Quetzalcoatl, o deus que parte e que retorna, e como tal o
conquistador legitima o domínio sobre o combalido império de
Montezuma. Cabral não teve a mesma sorte. A irreverência do índio
brasileiro desorganiza o espetáculo. O que foi elaborado para
produzir efeito de tragédia degenera em comédia quando o índio se
aproxima descortês do navegador e passa a examinar sem
constrangimento a medalha que lhe orna o peito. Teremos na atitude
desse autóctone a espontânea aversão brasileira à seriedade ? Ainda
que não seja assim, atitudes que produziram submissão respeitosa no
México, viraram comédia no Brasil.
Obedientes aos acenos da gente de
Cabral, os homens que se aproximam da praia depõem as armas. A
informação é de Caminha. Podemos ter certeza dela? Não espanta que
guerreiros se desarmem em presença de barcos gigantescos e de homens
estranhos? Informados sobre os costumes dos nossos indígenas, a
deposição das armas nos parece menos espantosa. Guerras de conquista
não mobilizam tropas entre tupinambás, espalhados de norte a sul
pelo litoral brasileiro. A vingança os punha em armas. Como os
brancos emergidos do mar não lhes tinham feito nenhum mal nem
sofrido afronta dos silvícolas, não havia razão para ataque e
defesa. Deve-se a isso o convívio fraterno entre nativos e
descobridores durante a primeira semana de mútua observação?
Sendo inviável comunicação verbal
entre navegadores e nativos, outros signos devem falar. Testa-se o
nível civilizacional dos nativos. Reprovados pelas leis da cortesia,
quer-se apurar se ao menos atingem o estágio de um modesto camponês
de Portugal. O resultado é decepcionante: não reconhecem o carneiro,
rejeitam pão, peixe, mel e passas de figos, não sentem atração pelo
vinho. Observa Cabral mais adiante: "de que tiro seer jente bestial
e de pouco saber e que por ysso sam asy esqujvos." Cabral demora-se
no esforço dos portugueses em extrair sinais que desdigam a
impressão de bestialidade. Por mais compreensivo que o epistológrafo
tente ser, permanece a opinião de que se trata de gente com "pouco
saber". Não aventa a hipótese de estarem inseridos em outro saber. A
oposição requinte/barbárie marcará a implantação da cultura
portuguesa em todas as etapas.
Os portugueses incorrem em muitos
equívocos nesses primeiros contatos. A desinteligência não se
restringe à fala e aos gestos. Qual era o sentido das pinturas que
revestiam o corpo dos silvícolas? Os descobridores estavam longe de
imaginar que a finalidade daquelas formas coloridas, resistente ao
contato da água, era mais que estética. Escapava-lhes que naquelas
linhas estava inscrita hierarquia, função, nacionalidade. Advertidos
de que impropriamente restringimos a
escrita ao
alfabeto, devemos considerar aquelas cores e traços signos de um
sistema de
escrita pictórica, exigido pela organização social. Se os
descobridores viessem menos impressionados com a revolução operada
pela imprensa, teriam visto nas epidermes coloridas cartas não
traçadas em pergaminho, cartas pintadas na pele viva dos homens. Se
tivessem adivinhado a mensagem desses documentos ambulantes, podiam
ter revisto o juízo negativo que faziam da civilização estranha.
Depois de muitos enganos, civilizados
e nativos descobrem uma linguagem em que se entendem, a dança.
Quando Diego Dias de Sacavém entrou acompanhado de um gaiteiro numa
roda de dança, esboça-se uma cena de alegria dionisíaca que derruba
a barreira das culturas. Sabendo que a dança indígena tem caráter
ritual, podemos partilhar da certeza dos navegadores? Poderiam os
portugueses imaginar que os passos ritmados tinham significado
sagrado ao nível da missa há pouco celebrada? O riso dos índios era
de aprovação ou riam da inabilidade de Diego em imitá-los? Culturas
diversas se desentendem mesmo em horas de confraternização.
5 - O rigor
O cipoal semiótico em que se enreda
Caminha ao penetrar no mundo estranho não desmerece o propósito de
observação exata. Se, depois da leitura de Homero, passarmos os
olhos pela carta do escrivão de Cabral, notamos que, quanto ao tempo
e ao espaço, o comportamento é bem diferente. Frouxas são em Homero
as indicações que não estejam relacionadas ao alvorecer e ao ocaso;
certos dias inflam-se de episódios, outros registram menos do que
poderiam comportar. Os dias se dilatam e se contraem no interesse do
narrador. Vale o mesmo para as referências ao espaço. Os gregos ora
se encontram tão longe das muralhas de Tróia que se lhes exige força
sobre-humana para atingi-las, ora se movem tão próximos que até as
linhas do rosto podem ser reconhecidos do alto da muralha. A carta
de Cabral está em outro extremo. Não registra apenas dias e meses,
mas também horas e frações de horas: oito horas, nove horas, por
volta das dez horas... O rigor na medição do espaço não é menor.
Quando a frota se aproxima da costa brasileira, Caminha chega ao
requinte de anotar a distância que separa cada uma das naus do
litoral. O leitor, seguramente orientado no tempo e no espaço,
adquire confiança no que lê. A seleção dos assuntos, a disposição
das informações, a escolha do vocabulário, a elaboração dos períodos
obedecem ao mesmo rigor. A carta se fecha como um conjunto exato e
belo. Cabral nos oferece um documento que traz a medida como marca
dos novos tempos. Os índios, familiarizados com o tempo cósmico como
os heróis de Homero, entram na idade do cálculo. Quantos são?
Quantos seriam? Desde o primeiro momento, Caminha os percebe em
grupos de seis, vinte, setenta. O cálculo coopera para sujeitar os
que se perdiam no inumerável.
6 - Degredados
Foram dois. De um deles sabe-se o
nome. Chamava-se Afonso Ribeiro e fora criado de Dom João Toledo.
Condenado pela justiça, conhecemos a sentença, pena de morte,
abrandada com o degrado. Como ignoramos os crimes, não há como
avaliar o acerto do castigo. Se estivéssemos melhor informados,
seriam ainda considerados criminosos? Naqueles tempos os acusados
não tinham acesso ao processo movidos contra eles e não contavam com
defesa de advogado. Qualidades que dignificam o homem foram
reprimidas com tortura e morte. Comportamento contrário aos
interesses do rei ou de algum de seus protegidos podia dia
desencadear ódio e punição. Para Michel Foucault, em Vigiar e punir,
o delinqüente, antes do século XVIII, foi produto do sistema
carcerário. Visto que Caminha espera que os degradados trabalhem
pela coroa portuguesa nas terras descobertas, que difondam o
evangelho entre os nativos, temos prova de que Afonso Ribeiro e seu
companheiro não foram considerados criminosos vulgares nem pelos
seus contemporâneos.
7 - Duas missas
A primeira ocorreu ao domingo, dia 26
de abril, pela manhã. Dita por Frei Henrique, foi ouvida, ao que
pareceu a Caminha, com muita devoção.
O comportamento do missivista não
confirma a observação. Que disse o padre? Num carta em que Caminha
se desculpa da prolixidade; quanto ao sermão, ele se comporta
reticente. Observa que, muito a propósito, o padre falou sobre a
luz. Não é difícil conjeturar que, nas circunstâncias, o sacerdote
tenha se demorado na providência divina que, através dos
navegadores, iluminou os nativos afundados, sem conhecerem Deus, em
trevas. Conjeturas. O brilho dos trópicos atrai o missivista mais do
que o sermão. Caminha se demora no que vê. Fala sobre os movimentos
do sacerdote, perde-se nos arredores, nas distrações dos índios,
finda a parte litúrgica da cerimônia. Que atrativos poderiam
oferecer aos índios palavras ditas em língua estranha? Caminha está
mais interessado nos folguedos dos índios que, ao som de corno e
buzina, dançam antes de se fazerem ao mar em jangadas. O
epistológrafo vai ao detalhe de descrever a embarcação, três traves
atadas entre si.
A pintura de Vítor Meireles é bem mais
enfática do que a prosa chã de Caminha. O pintor eleva a cruz a
proporções gigantescas. Do ângulo escolhido, a cruz, subindo ao azul
iluminado do céu, domina florestas e homens. Esta versão romântica
da missa contradiz o contido equilíbrio renascentista da carta.
A segunda missa foi rezada pelo mesmo
Frei Henrique na manhã do dia primeiro de maio, uma sexta-feira,
véspera da partida para a Índia, data em que Caminha data e assina a
carta. O amigo de D. Manuel torna a exaltar a atitude respeitosa dos
índios, destacando-lhes a inocência e facilidade com que poderão ser
cristianizados. Mas a atitude distraída com que Caminha acompanha as
circunstâncias em que a cerimônia se realiza é a mesma. Sua atenção
fica presa a uma Índia que, presenteada com um vestido, não sabe
cobrir-se com ele.
Trava-se, na carta, o conflito entre a
cultura auditiva medieval e a cultura visual nascente. A visualidade
que desponta, base da observação científica, inundará também a arte
religiosa.
8 - Natureza e cultura
Embora o termo cultura ainda não
exista, invenção do século XVIII que é, a noção de oposição da
natureza à cultura e à civilização se esboça como nitidez. Os
indígenas (sem governo, sem religião, sem cortesia...) pertencem à
natureza. O esforço de impor-lhes hábitos civilizados reitera-se já
nos primeiros contatos. Quanto empenho para convencê-los da
conveniência de esconderem a nudez! Espera-se que a missa desperte
neles sentimentos religiosos. O ruidoso ajuntamento indiático,
qualificado de bárbaro, deverá ser emendado por fala ponderada,
própria de homens cultivados. Em lugar da manifestação espontânea, a
etiqueta.
Ao descrever os índios, Caminha
observa que "nhuu~ deles nõ era fanado (circuncidado) mas todos asy
coma nós". O "como nós" é expressivo, visto que a circuncisão abria
barreiras. Cincuncisos apresentavam-se judeus e árabes, culturas
repelidas e combatidas. A ausência de circuncisão nos moradores das
terras descobertas franqueava acesso negado a povos com os quais os
portugueses conviviam no Europa.
Acontece que a circuncisão não se
restringe à incisão feita no membro viril. A Bíblia fala em
circuncisão dos ouvidos, dos lábios e do coração. Atento ao corpo
dos silvícolas, Caminha, reticente nas informações sobre a natureza,
oferece de um botocudo descrição exemplar. Semelhanças e diferenças
com os europeus orientam a descrição. Os traços dos descobridores
figuram como padrão de perfeição. "Bons" são os rostos e os narizes
por não se distanciarem do modelo. A tez escura não merece apreço.
Mais do que características naturais, chama atenção a "circuncisão"
dos lábios. A diferença naqueles tempos ergue embaraços à
comunicação. O osso introduzido no lábio inferior não afasta menos
do que os sons que soam bárbaros aos ouvidos dos portugueses.
Observa Caminha que o adereço introduzido no lábio não prejudicava o
falar, o comer e o beber. Na verdade, falar comer e beber colocam-se
na mesma categoria do osso, marcas da cultura com que não se podia
conviver. A circuncisão, que deveria ser o lugar de passagem, ponto
em que povos se encontram para confraternizar, excluía.
Vendo os índios, os navegadores
começam a reconhecer sua própria limitação (castração): comparadas
às índias, as européias se envergonhariam de si mesmas, a amizade
dos índios é mais sincera que a dos portugueses.
Embora as deficiências se anunciem, os
portugueses se têm como nação central. Só quando perdemos a ilusão
da centralidade, reconhecemos as marcas que nos colocam ao nível dos
outros, diferenciando-nos. Só então nossas circuncisões,
reconhecidas e expostas, abrirão sendas que aproximem.
A ciência munira os navegadores de
instrumentos para atravessar os mares, mas para vencer barreiras
culturais ainda não existiam aparelhos da mesma precisão.
Minucioso na caraterização e no
comportamento da estranha gente, Caminha torna-se reticente e
incorreto quando anota observações sobre flora e fauna ("ervas
compridas, chamadas botelhos pelos mareantes", "rabo-de-asno",
"grandes arvoredos", "muitas palmeiras, não muito altas, de muitos
bons palmitos", "papagaios" ,"pombas seixas").Iguala-se nisso a
Colombo. Entre os motivos da imprecisão está o estágio precário em
que se encontra a zoologia e a botânica na virada do século em
contraste à ênfase dada ao homem nos
ensaios e
nas artes. Os pintores do século XV retratam a eminência dos
caracteres humanos sobre um fundo em que plantas e animais, quando
presentes, comparecem inexpressivos e diminutos. A
poesia
bucólica, que ambienta conflitos sentimentais e paisagem campestre
não se desprende de estereótipos copiados de Virgílio. A épica
medieval, ainda lida, precisa ao caraterizar trajes e armas, não se
demora na descrição da paisagem.
Na Itália já sopram outros ares. São
Francisco de Assis dirige saudações amigas à natureza desdemonizada.
Dante vê o brilho trêmulo nos movimentos do mar e ouve o rugir da
tempestade na floresta. Petrarca emociona-se ao escalar um monte. A
pintura flamenga de Hubert e Jan van Eyck representa, na entrada do
XV, paisagens de interesse pictórico autônomo. Mas levará algum
tempo para que essas experiências, ainda isoladas e indecisas, se
generalizem. Destacando o homem em detrimento da natureza, Caminha
se comporta como representante do seu tempo.
A natureza comparece, mas subordinada
ao homem. Caminha, que passa em silêncio o comportamento do mar
durante a travessia, alude a ele quando Niciolau Coelho procura
comunicar-se com os indígenas. Observa que "o grande estrondo das
ondas que quebravam na praia" dificultava a inteligibilidade dos
sons emitidos pelos índios. O mar é lembrado, não pela beleza do
espetáculo, mas como empecilho às intenções de comunicação. Vento e
chuva são lembrados quando castigam as naus. À natureza se recorre
como índice de informações sobre a presença de terra, de riquezas,
de possibilidades de exploração. Para a natureza fora dessa
subordinação não há vista.
Os índios resistiram atiladamente à
infiltração dos estranhos. E com razão. As conseqüências da
espionagem nos conta o triste fim do império asteca, esmagado por um
punhado de aventureiros comandados por Cortês. Caminha não diz nada
sobre os sentimentos dos degredados. De como não é cômoda a posição
de quem se sente rejeitado por culturas antagônicas nos falam Martin
Fierro, o poema de Hernandez e o
romance
de Maíra de Darcy Ribeiro. Indícios desse conflito, que atravessa os
séculos, temos no primeiro contato de portugueses com nativos.
Para dois grumetes, recrutados, ao que
tudo indica, à força, a floresta oferecia mais atrativos do que os
trabalhos na gloriosa frota de Cabral. Fugiram para não mais voltar.
9 - Paródias de Caminha
Ao fim de uma tradição milenar, em que
a memória coletiva dos indígenas se desfazia em som, eles ingressam
na literatura
escrita sem terem consciência da passagem para avaliar-lhe a
importância.
Outro é o comportamento do chefe
nhambiquara, visitado no fim da primeira metade do século por
Lévi-Strauss. Segundo o depoimento do antropólogo, os nhambiquara,
perdidos no fundo da floresta amazônica, diferenciam-se pouco dos
índios encontrados por Caminha. Muitos deles viam brancos pela
primeira vez. Lévi-Strauss registra o comportamento do chefe que,
para fazer-se respeitar pelos seus subordinados, finge anotar numa
caderneta os objetos que estavam sendo trocados. Lévi-Strauss deduz
daí que a
escrita é instrumento de dominação. Derrida, ao discutir as
deduções de Lévi-Strauss, observa corretamente que a
escrita só
serve à dominação quando privilégio de alguns, ao passo que favorece
a libertação quando generalizada. Surpreende que a concepção da
pureza edênica dos índios acalentada por Caminha ainda afete um
investigador atual do porte de Lévi-Strauss. Se os políticos
brasileiros fossem sensíveis às conclusões do cientista, as
campanhas de alfabetização brasileiras seriam seriamente
prejudicadas.
Mário de Andrade elabora uma versão
romance
ada da escrita
exercida para dominar populações analfabetas. Ao estilo de
Caminha e de outros descobridores, Macunaíma se põe a escrever às
icamiabas (amazonas), súditas ao que pensa, de seu reino imaginário.
Dentro das inversões operadas pelo romancista, o mundo descoberto é
agora a civilização representada pela cidade de São Paulo. O
imperador da "mata virgem", título que o índio se arroga, pasticha o
estilo bombástico da cultura que o deslumbra. Macunaíma imita os
brancos como o chefe nhambiquara. E sua carta revela o mesmo caráter
jocoso de imitação falida. Os muitos erros que comete ao se exprimir
numa linguagem que não é a sua denunciam assimilação canhestra duma
escrita
estranha para se fazer passar por aquilo que ele não é. Mário de
Andrade denuncia no ridículo comportamento de Macunaíma uma camada
da intelectualidade brasileira que, para se fazer respeitada,
continua a reverenciar gramática e dicionário dos antigos
dominadores. Afrontando preceitos de pureza lingüística, Mário de
Andrade escreve na incorreta linguagem que se ouve nas cidades e no
interior brasileiros.
Outro que volta a Caminha é Oswald de
Andrade. Volta para demolir. Examinemos a primeira página de
História do Brasil.
E asy segujmos nosso caminho per este
mar de lomgo ataa terça feira de oitavas de pascoa
.............
E aa quarta feira segujnte pola manhã
topamos aves que
chamã fura buchos e neeste dia e ora
de bespera
ouvrmod vjsta de terra
..............
PERO VAZ DE CAMINHA
a descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de
longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista da terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e
bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão
saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
As passagens visitadas por Oswald são
estas:
mostraranlhes uma galinha casy aviam
medo dela e no lhe
queriam poer a maão e depois aa
tomaram coma espantados.
...............
aly amdavam entre eles tres ou quatro
moças bem moças
ebem jentijs com cabelos mujto pretos
conprjdos pelas
espadoas e suas vergonhas tam altas e
tã çaradinhas e
tam limpas das cabeleiras que as nos
mujto bem olharmos
nõ tijnhamos nhuuma vergonha.
................
pasouse emtam aalem do rrio Diego Dijz
alxe que foi de
Sacavens que he home~ gracioso e de
prazer e levou
comsigo huu~ gayteiro noso cõ sua
gaita e meteose cõ
eles a dançar tomandoos pelas maãos e
eles folgavam e
rriam e amdavam cõ ele muy bem ao soõ
da gaita. despois
de dançarem fezlhe aly amdando no
chaão mujtas voltas
ligeiras e salto rreal
Recorrendo à montagem, Oswald
desarticula a seqüência cronológica observada por Caminha na
elaboração da carta. O texto, livre de vínculos rigorosos com o
referente, favorece, na rápida justaposição de conjuntos distantes,
reflexões que a mera observação dos fatos desencoraja.
A
colagem
oswaldiana, feita com citações mutiladas agride os preceitos da
poesia e
da retórica vigentes. Contra o período bem construído, o
fragmento ;
contra o verso sonoro, a linha sem adorno.
Oswald devora antropofagicamente o
Brasil do passado e o apresenta reelaborado; devoração e
reelaboração semiótica, intertextual, em que a narrativa histórica
se metamorfoseia em achado poético, conduzida pelo acaso como o
alegado achamento da Terra de Vera Cruz. O requinte parnasiano vira
singeleza, a tristeza cede à alegria, a seriedade importada é banida
pela festa.
Oswald alcança a atualização do texto
antigo com a inserção dos títulos que encabeçam os trechos
destacados
Tendo na lembrança a chave de ouro
parnasiana, Oswald inverte a seqüência dos dois episódios finais. A
notícia hilariante deverá encerrar o poema. O tom irônico deixa
claro, porém, que se trata de crítica, não de homenagem.
O chá não estava nos hábitos dos
homens da renascença. Trazido da Índia e espalhado pelos ingleses,
alude ao expansionismo britânico. O que Vaz de Caminha narrava como
hora de confraternização entre europeus e silvícolas foi, na
verdade, artimanha dos dominadores para conquistar a confiança dos
incautos. O chá alude à perda da liberdade dos índios aos
portugueses e destes aos ingleses. A artimanha da dominação
desenvolve-se em cadeia.
Oswald de Andrade expõe na última
estrofe a verdade que Caminha procurou jeitosamente esconder, as
mulheres brasileiras prostituídas por visitantes licenciosos. O
título "As meninas da gare", além de dar um toque erótico ao texto
inocente de Caminha, justapõe dois estratos temporais, os séculos XV
e XX, a navegação e a estrada de ferro. O que a navegação foi
naqueles tempos, a ferrovia é agora: encurtamento das distâncias. O
futurismo aplaudia a aceleração da velocidade. Com ela vai-se o
estável, em lugar de sólidos vínculos matrimoniais, as ligações
rápidas e inconseqüentes de quem passa.
Ao transformar trechos da carta de
Caminha em
poesia , a data, indispensável à mensagem da carta se apaga. O
texto prosaico, transformado em
poesia ,
já não está preso ao tempo rigorosamente marcado. Acompanhando a
indecisão do tempo, o espaço torna-se impreciso: praia conota gare,
ou qualquer outro lugar de encontros licenciosos, destinatário é o
leitor incumbido de completar vazios, de evocar
textos
antigos e recentes, de completar nexos apenas sugeridos. Com Mário e
Oswald, as qualidades literárias da carta de Caminha, no início
apontadas se desdobram florescentes.
A carta de Pero Vaz de Caminha já foi
declarada a certidão de nascimento do Brasil. Embora ingresse
tardiamente na memória nacional, esquecida por séculos em arquivos
de documentos oficiais, ignorá-la abriria um buraco em nossa
consciência histórica. A carta faz o Brasil nascer. Sem a carta, o
Brasil não teria sido o que foi. A carta lhe deu personalidade,
caráter. Ilumina os poucos quilômetros percorridos, traça os
primeiros contornos depois de milênios de vozes que se perderam no
silêncio azul das tardes tropicais. O retrato da carta não é o
definitivo tampouco se configura como texto invalidado por outros
textos . A
verdade não está em texto nenhum. O perfil, sempre provisório, se
faz e se desfaz no desfilar dos
textos .
Pode-se dispor os
textos
cronologicamente, pode-se arranjá-los sincronicamente, ordem alguma
os desautoriza. Não se trata de evolução, de formação. Por que
solicitar progresso a transições?
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