Carine Araújo
Morena Bonita
ou Muito prazer, o quotidiano.
Morena Bonita subia a ladeira
Todo dia, todo dia, todo dia
Morena Bonita descia a ladeira
Todo dia, todo dia, todo dia
Morena Bonita é estudiosa
Quer ser juíza pro mundo ajeitar
Morena Bonita descia a ladeira
Topava com ônibus lotado
Passava da hora de comer
Mas nunca desistia
Morena Bonita subia a ladeira
Olhava bandidos sem medo nos olhos
Prostitutas, drogados, crianças de rua
Ela, um dia, iria socorrer
Morena Bonita era respeitada
Descia e subia sem restrição
Com o corpo delgado pra lá e pra cá
Tentava a muitos
Mas, ai daquele!
Que em Morena Bonita pusesse a mão
Morena Bonita era pra venerar
Diziam as crianças adultas
A quem ensinava a lição
“- No mundo não pode haver
Alguém com tão bom coração!”
Um dia ansioso amanheceu no morro
E encontrou Morena Bonita já no lotação
Tinha as mãos suadas
E grande agitação
Morena Bonita ia fazer a prova
Passaporte a um novo universo
O sonho, a realização
Morena Bonita sentou na cadeira
E por alguns dias a cena se repetiu
Pensava, pensava, marcava, marcava
Foram dias de angústia
Tensão e amarga espera
Até que lá na favela
O grande dia apareceu
Nasceu um tanto amarelo
Com nuvens bem carregadas
Um dia triste, eu diria
Mas para Morena Bonita aquele era o seu dia
Saiu bem apressada
Os dedos cruzados na mão
Comprara o primeiro jornal
Pegara o lotação
Mas a caminho de casa
O presságio se materializa
Atiram contra o ônibus
Adentram para assaltar
Tem dinheiro um ou outro
Resolvem o abandonar
Deixando pra trás um corpo
Seio nascente quase à mostra
Cabelos ondeando pelas costas
Um buraco formado na face
Um filete de sangue a escorrer
Com os olhos entreabertos
A olhar seus assassinos
A futura juíza trazia, inerte
Um jornal enrolado na mão
Seu trunfo, 1º lugar
Na faculdade da região
Nem podia mais comemorar
Pois a justiça mais uma vez
Fugia da sua mão
A chuva fina eram lágrimas
No corpo de Morena Bonita
E um clamor abafado
Devolvia aos céus o choro da chuva
Como vapor de paz...
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