Goya, Maja Desnuda

 

Carine Araújo


 

Espelho, espelho meu...


Um dedo em riste
Nos diz que somos velhos
Gordos
Esquálidos
Antipáticos
Feios
Somos até etc. e tal
E o último espelho
Estilhaçado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

Carine Araújo


 

Figura em código


Ninho de girassóis
Sem flor
Cirandando criança
Feito lua nova encheiando
Vira um vento, de leve...

***

Brinca em teus doces
Cabelos de menina
Revolve , boliçoso,
Tua saia de mulher
Descobre enfim
Ninhos
De frutos maduros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

Carine Araújo


 

Maria da Glória
                 (ou Lucíola insiste em morrer)


I ATO

Cá estamos
E de repente tudo tem gosto de sempre
Olhos que se voltam indagando:
- Quem é a Dama das Camélias?
Sorrisos espalham-se por seu corpo
Em bocas invisíveis
Bocas que procuram sua boca
Num afã momentâneo
Nada mais


II ATO

E de repente até sentir-se feliz
E até gostar dos vários cheiros
Que invadem sua pele
E até gostar de misturar suores
E ver tudo indo embora
Na curva extrema o riacho
Segue circulando nas feridas
Cá estou
E de repente tudo tem gosto de nunca mais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

Carine Araújo


 

Morena Bonita
         ou Muito prazer, o quotidiano.



Morena Bonita subia a ladeira
Todo dia, todo dia, todo dia
Morena Bonita descia a ladeira
Todo dia, todo dia, todo dia
Morena Bonita é estudiosa
Quer ser juíza pro mundo ajeitar
Morena Bonita descia a ladeira
Topava com ônibus lotado
Passava da hora de comer
Mas nunca desistia
Morena Bonita subia a ladeira
Olhava bandidos sem medo nos olhos
Prostitutas, drogados, crianças de rua
Ela, um dia, iria socorrer
Morena Bonita era respeitada
Descia e subia sem restrição
Com o corpo delgado pra lá e pra cá
Tentava a muitos
Mas, ai daquele!
Que em Morena Bonita pusesse a mão
Morena Bonita era pra venerar
Diziam as crianças adultas
A quem ensinava a lição
“- No mundo não pode haver
Alguém com tão bom coração!”
Um dia ansioso amanheceu no morro
E encontrou Morena Bonita já no lotação
Tinha as mãos suadas
E grande agitação
Morena Bonita ia fazer a prova
Passaporte a um novo universo
O sonho, a realização
Morena Bonita sentou na cadeira
E por alguns dias a cena se repetiu
Pensava, pensava, marcava, marcava
Foram dias de angústia
Tensão e amarga espera
Até que lá na favela
O grande dia apareceu
Nasceu um tanto amarelo
Com nuvens bem carregadas
Um dia triste, eu diria
Mas para Morena Bonita aquele era o seu dia
Saiu bem apressada
Os dedos cruzados na mão
Comprara o primeiro jornal
Pegara o lotação
Mas a caminho de casa
O presságio se materializa
Atiram contra o ônibus
Adentram para assaltar
Tem dinheiro um ou outro
Resolvem o abandonar
Deixando pra trás um corpo
Seio nascente quase à mostra
Cabelos ondeando pelas costas
Um buraco formado na face
Um filete de sangue a escorrer
Com os olhos entreabertos
A olhar seus assassinos
A futura juíza trazia, inerte
Um jornal enrolado na mão
Seu trunfo, 1º lugar
Na faculdade da região
Nem podia mais comemorar
Pois a justiça mais uma vez
Fugia da sua mão
A chuva fina eram lágrimas
No corpo de Morena Bonita
E um clamor abafado
Devolvia aos céus o choro da chuva
Como vapor de paz...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

Carine Araújo


 

Pareceres noturnos


A cidade preto-dourada
Em luzes de mercúrio
Ofusca os olhos dos casarões
Que tentam – das janelas -
Espiar o passado passando
O rio – que outrora embebedou suas ruas –
Imerge sombras
Que abarcam a locomotiva azul
Sangrando a cidade
Adormecida ao som do seu trilhar
Embalada em marés de ventos longínquos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

Carine Araújo


 

POEMA DE ANIVERSARIO


Passei muito tempo acreditando em átomos
Vendo Deus onde não havia
Vendo diabo onde havia deus
Não nasci de nove meses
Nem de sete
Só duas décadas depois
Abro os olhos
Ver todo
Saber tudo
Querer tudo
Um bebê
Me pegam pelo braço
E me esmurram a cara
Choro
Mas estou vivo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

Carine Araújo


 

Renoir

Ela colhe no mar gentil criança
E na fé que a embala, ata nós
Reza a força que venha abençoá-las
A quimera de um sonho que foi bom
Traz consigo uma vida que faz falta
E, rebelde, espalha poesia
Em um mundo em que a vida é proibida
E sorrisos já não brotam nos jardins...

 

 

 

 

 

 

24.10.2005