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Dora Ferreira da Silva


Mulher e Pássaro


Linha invisível
liga-me àquela andorinha:
tato percorrendo
um trajeto
de comunhão. O pássaro
debate-se em meu peito.
Ou coração? A andorinha
se esvai na tarde. Leva consigo
o que não sei de mim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Dora Ferreira da Silva


Pássaro e Mulher


Quem me prende
mais do que a terra?
Impossível o vôo
agora.
Quente fremente
a intenção de alguém.
Desfez-se a palidez
perdi meu vôo
nas grades de seu peito.
Aprísiona-me - grilhão -
o seio suave e
no calor do instante
a união.

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Aleilton Fonseca

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Dora Ferreira da Silva


Agora


Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras.
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.

Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave
[da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma
[pluma apenas uma
no rio acordado.
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Alphonsus Guimaraens Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Dora Ferreira da Silva



Alguém...


Alguém desfecha a flecha do vôo:
reflexo no vidro onde a chuva
penteia os cabelos.
Cantiva de muitas lágrimas
dos suspiros do vento
nesta casa pousada na montanha
aguardo criança flor anjo ou passaro.
Pensamentos alígeros - andorinhas
nos aguaceiros de verão
traçam oblíquas, desaparecem
no céu que escurece.
Abraçada à minha alma
não sinto o tempo latejar por perto.
O incerto longe é a minha vocação.
O longe do longe onde talvez
estás sempre em despedida
do invólucro que não te retém. E eu
sempre atrás do aceno teu
do aroma que te esquece e se esvai.
Se um lenço de fino linho
se desprendesse de teus dedos (sonho meu)
o caçaria como a um pássaro
que longe vivia
e me pertencia.

   

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Vicente Franz Cecim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Dora Ferreira da Silva


Murmúrios


Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.
Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?

   

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Cussy de Almeida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Dora Ferreira da Silva


Habitas meu coração:


Habitas meu coração: barbas de rei assírio
olhar de extensões alheias
a tempo e medida.
Tua voz tem asas de falcão e pousa
nas torres mais altas do meu ser
onde jamais me aventurei. É minha a tua solidão.
Sirvo-te em silêncio e às vezes
como a uma criança me apertas em teu peito:
acaricio então tua face estranho rei.
Outras vezes ouço passos ecoando
no enlace das colunas em seteiras escadas. Se grito
teu nome - és mil ressonâncias e seu eco em mim.

   

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Dora Ferreira da Silva


Haicai


As sombras amigas
pouco a pouco se adensaram:
agora verei.
 


Ó desesperados:
lamentáveis tartarugas
de pernas pro ar

   

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Jorge Medauar

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Dora Ferreira da Silva


Elegia dos Golfinhos


Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.

   

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Luís Antonio Cajazeira Ramos