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Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Canção da parada do Lucas


Parada do Lucas
— O trem não parou.


Ah, se o trem parasse
Minha alma incendida
Pediria à Noite
Dois seios intactos.


Parada do Lucas
— O trem não parou.


Ah, se o trem parasse
Eu iria aos mangues
Dormir na escureza
Das águas defuntas.


Parada do Lucas
— O trem não parou.


Nada aconteceu
Senão a lembrança
Do crime espantoso
Que o tempo engoliu.
 

 Bronzino, Vênus e Cupido

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Pardalzinho


O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!


Petrópolis, 10-3-1943
 

 Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.
 


Rio, 27 de dezembro de 1947
 

 William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Arte de amar


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.


Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
 

Valdir Rocha, Fui eu

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Cotovia


— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?


— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.


— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.


— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .


— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?


— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.


— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!


— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.
 

Da Vinci, Homem vitruviano

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Minha grande ternura


Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.


Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.


Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.


Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.


Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.
 

Da Vinci, La Scapigliata

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Auto-retrato


Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
 

 

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Evocação do Recife


Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!


A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão


(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.


Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras


Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.
 

Soares Feitosa, dez anos

 

Michelangelo, Pietá

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Poema do beco


Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco
 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

 

Estes poemas belíssimos, de Manuel Bandeira — Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, fone (021)286.78.22, Brasil — foram inspiração (e homenagem a ele) para Soares Feitosa, "in" Do Belo-Belo.
 

Albrecht Dürer, Mãos

 

Culpa