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Joanyr de Oliveira


 

Haicai


Sempre a olhar os céus,
errei. Bem mais errarei
contemplando a terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

Joanyr de Oliveira


 

Ária


A oficina azul do tempo
deitou-me em conchas de sonhos,
triturou meu rosto oblongo
e o semeou pelo vento.


O cavalo inunda os vales e colinas
com relinchos e trêmulas trombetas.
O compasso de seu trote abre
em duas partes
o mundo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Joanyr de Oliveira


 

O cavalo

 

O cavalo
sob as chamas
a alucinar seres e montanhas
a espargir sortilégios e tormentas
estremece as entranhas do mar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

Joanyr de Oliveira


 

Cantares II
(Colóquio)


Pelas pisadas dos rebanhos
na quietude do outono,
Deus espraia o mel de Sua voz.


Ouvi, ó tendas de pastores
rodas de carros faraônicos,
eqüinos revestidos de auroras.


Tranças debruçadas no silêncio
somam-se à bondade das videiras
e aos cachos bailarinos da seara.


No dorso intangível da solidão
Deus espraia o mel de Sua voz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

Joanyr de Oliveira


 

Compaixão


Piedade dos lábios convexos
dessa pétrea mudez ante a luz,
dos tímpanos de lodo e asperezas,
das cabeças vazias de conceitos,
na escuridão compacta.
Piedade ainda mais de mim,
insone garimpeiro do verbo,
na impotência febril e consciente
no aprendizado infindo,
nas abissais camadas do pensar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

Joanyr de Oliveira


 

Escrúpulo


Deito o poema na aragem,
longe dos sacrilégios.


Os vassalos do metal,
os abismos, os delírios,
os tímpanos de pedra e cal,
as destras mãos na rapina
e as sinistras nos fuzis,
os decibéis desvairados
com quatro pedras nas mãos,
as volúpias dos cifrões,
os parlatórios e fossas,
as fomes palacianas,
os lobos condecorados
pelos guantes do Sistema


não fazem jus ao poema.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

Joanyr de Oliveira


 

Os poetas suicidas
(Empédocles, Cesare Pavesi,
Maiakovski e os outros)


Os emblemáticos poetas suicidas
em áspera vereda.
As mãos a arrastar os estigmas,
retinas flutuantes, sem norte.


Os estribilhos e seus sinos desvairados.
O estro onde o belo, a abrir-se,
detona sob os pés,
rumo às fímbrias do azul.


O incandescer do cérebro
ao ressoar dos mitos e legendas.
Os fragmentos do ser
sugados por lavas e galáxias.


Os poetas suicidas singram
amplidão de estrofes
e expelem mensagens do ignoto
macerando as horas.


Sazonados versos confrangem
sob gumes trágicos.
Seus epílogos e epitáfios,
inebriados, inebriantes.
E abissais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Joanyr de Oliveira


 

O rosto noturno


Bem longe do sol e de meu povo,
indaguei ao rosto soturno
sobre a marca das horas.


Um cão receberia o olhar,
palavras e bandícias talvez,
do frígido ancião noturno.


O ferino silêncio sufocou-me.
Pensei nos negros do Alabama,
nos corações algemados.


Pensei nos sorrisos coagulados
sob iradas botas de fogo.
Pensei nos caninos pontiagudos.


Sou brown e estrangeiro.
Bebo o peso – nos olhos e na alma –
dos velhos ianques de pedra.


(Boston, 20 de junho de 1993)

 

 

 

 

 

 

04.11.2005