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Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Gargalhada
 

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:


Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!


Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...


O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.


Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...


Escuta bem:


Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!


Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Fio


No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.


Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.


Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...


— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
 

 William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Atitude


Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.


O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.


Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.


E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.
 

 William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920) , Tha water nixie

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Noções
 

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.


Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.


Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.


Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.


Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...
 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Herança
 

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.


Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?


E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
 

A menina afegã

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, A incredulidade de São Tomé

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Timidez
 

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...


— mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...


— palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,


— que amargamente inventei.


E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...


— e um dia me acabarei.

 

Um cronômetro para piscinas

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Interlúdio
 

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.


Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.


Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.


Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.


Fico ao teu lado.
 

Blake, O compasso de Deus

 

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Encomenda
 

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.


Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.


Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

 

Michelangelo, Pietá

 

Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Reinvenção
 

A vida só é possível
reinventada.


Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.


Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.


Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.


Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

 

Hélio Rola

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Ísis
 

E diz-me a desconhecida:
"Mais depressa! Mais depressa!
"Que eu vou te levar a vida! . . .
 

"Finaliza! Recomeça!
"Transpõe glórias e pecados! . . ."
Eu não sei que voz seja essa
 

Nos meus ouvidos magoados:
Mas guardo a angústia e a certeza
De ter os dias contados . . .
 

Rolo, assim, na correnteza
Da sorte que se acelera,
Entre margens de tristeza,
 

Sem palácios de quimera,
Sem paisagens de ventura,
Sem nada de primavera . . .
 

Lá vou, pela noite escura,
Pela noite de segredo,
Como um rio de loucura . . .
 

Tudo em volta sente medo . . .
E eu passo desiludida,
Porque sei que morro cedo . . .
 

Lá me vou, sem despedida . . .
Às vezes, quem vai, regressa . . .
E diz-me a Desconhecida:
 

"Mais depressa" Mais depressa" . . .
 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair